sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A FRAGILIDADE DE DEUS



"Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta. Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?" (Evangelho segundo S. João 14:9).

Deus é um ser sublime, inefável, incognoscível, transcendente, mas é também um ser que se revela ou imanente. 
Deus revela seu poder, bondade e providência através do que criou e mantém. Como disse o salmista: "Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos".
Deus revela sua justiça através da lei natural que rege nossas consciências. Aprendemos de Deus o que é bom e o que é mau, o que se deve fazer e o que se deve evitar.
Deus falou através de seus profetas a um povo específico: Israel. Portanto, Deus se revela de maneira geral, mas também de maneira especial, através de um povo.
É então que devo confessar a dificuldade que tenho para compreender as escrituras do Antigo Testamento. Deus é anunciado pelos profetas de Israel como um ser severo, duro e implacável. Falam diversas vezes de seu amor, bondade e paciência, porém muito mais vezes de sua ira. Em meio a tantas ameaças desse Deus, seu amor e misericórdia ficam obnubilados, de maneira que o Deus do Antigo Testamento suscita mais medo que amor.
Então Deus se revela através de Jesus Cristo. Aqui está o clímax de sua autorrevelação. Deus se fez homem para que pudéssemos conhecer atributos seus que não estão claramente revelados ao homem através de suas obras: sua humildade, seu apreço pelos pobres e indigentes, sua fragilidade, seu gosto por servir. A criação e os profetas nos mostram a soberania de Deus, seu poder, sua majestade, mas não o seu meigo coração de criança. Deus não se encarnou somente para nos salvar, mas também para nos revelar tudo isso.
Como um ser excelso poderia expressar ao homem seus sentimentos sublimes, mas ao mesmo tempo tão ternos, delicados e comoventes? Como ele haveria de expressar o que ele sente pelos miseráveis deste mundo? Falando? Talvez não. Não iríamos compreender e, se compreendêssemos, não iríamos acreditar. Tudo nos revela um Deus majestático e nossa consciência nos acusa perante ele, transformando-o em um monstro. O profeta Jeremias tenta expressar essa ansiedade de Deus ao proclamar: "EU É QUE SEI que pensamentos eu tenho a vosso respeito, diz o SENHOR; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais" (Jeremias 29:11). Veja a tensão que há em Deus: "EU, SOMENTE EU sei o que penso de bom a vosso respeito, mas não tenho como expressar isso agora".
Vez ou outra os profetas anunciam o arrependimento de Deus (Gênesis 6:7), sua tristeza (Isaías 63:10), seu júbilo (Sofonias 3:17), fazendo-o de maneira desajeitada, porque Deus é imutável e não tem sentimentos humanos. No livro dos Cânticos, Deus se revela um noivo apaixonado pela humanidade. Essa tensão de Deus em revelar o que há de terno, delicado e infantil em sua natureza está muito presente em todo o Antigo Testamento.
Quando Deus se encarnou em Jesus Cristo, ele quis nos mostrar o que não  poderíamos apreender racionalmente de suas obras e aquilo que ele não podia nos expressar através de palavras, por transcender qualquer compreensão. Jesus Cristo é a autêntica revelação de Deus Pai, sua pregação viva, o anúncio humano, inequívoco e livre de seus sentimentos. Foi Deus Filho que se encarnou, mas Deus Pai e Deus Filho são absolutamente um só Deus. Por isso, sem qualquer problema, pode-se afirmar que Jesus Cristo é a revelação de Deus Pai.
Através de Jesus, Deus revelou sua tristeza diante do sofrimento humano, como quando chorou ao ver as lágrimas de Maria (S. João 11:32-36). Mostrou seu amor por aqueles que estão em pecado: adúlteras, prostitutas e ladrões. Quis nos tocar, para que sentíssemos o calor de seu coração. Quis que conhecêssemos seu sorriso, seu cansaço, seu olhar. Lavou nossos pés, para que soubéssemos que ele é Deus que serve. Era inevitável para um Deus tão "humano" humanar-se.
Na verdade, Deus não é "humano". Nós é que somos "divinos". Apesar de o pecado nos ter deformado, há muito de Deus em nós, mais do que imaginamos. O amor de uma mãe pelo filho, o amor entre homem e mulher, a amizade, a solidariedade, a alegria, a dança, a compaixão, a misericórdia, a brincadeira, a gargalhada, tudo o que há de tão humano em nós reflete o que há de "humano" em Deus. Mas como foi Deus quem nos fez e ele veio primeiro, prefiro dizer que tudo isso revela a nossa divindade. Somos assim porque Deus é assim e fomos feitos à sua imagem e semelhança. Os sentimentos de Deus, incomunicáveis à mente humana, estão reproduzidos em nós, de maneira a tornarem-se comunicáveis. E com a encarnação, Deus expressa seus sentimentos sublimes através de nossos próprios sentimentos, para que nunca mais o víssemos como um monstro.
É por isso que eu sempre recomendo a leitura do Antigo Testamento só depois de haver conhecido Jesus Cristo. Se a lei natural nos revela o nosso pecado e a ira de Deus contra ele, Jesus Cristo nos revela o perdão e a paixão que Deus tem pelos perdidos, arriscando-se, inclusive, a deixar noventa e nove ovelhas sem pastor para ir atrás de uma única ovelha desgarrada. Se o Antigo Testamento mostra diversas vezes em que Deus se irou contra seu povo, castigando-o duramente, Jesus Cristo nos revela um Deus que não quer matar, destruir, incendiar, mas dialogar, compreender, instruir e convencer. Se Deus ordena o apedrejamento de adúlteros, Jesus Cristo nos mostra a vontade que Deus tem de dar uma segunda chance a essas pessoas. Se o Antigo Testamento nos mostra a revelação de Deus a um povo, Jesus Cristo vem anunciar o amor de Deus por todos os povos, sua vontade de fazer avançar o conhecimento de seu amor a partir de uma nação para todas as nações. 
Então Jesus Cristo deve nos acompanhar enquanto lemos as escrituras do Antigo Testamento. A partir do pesar de Jesus pela incredulidade de Jerusalém, eu imagino o pesar de Deus ao destruir Sodoma, Gomorra e os povos cananeus. A partir do interesse de Jesus pela salvação da samaritana, da adúltera e dos publicanos, eu imagino com que sentimento Deus feriu Faraó, seu primogênito e Senaqueribe. A partir de Jesus triste pelo apego do jovem rico às coisas deste mundo, eu imagino com que coração Deus puniu os profetas de Baal e vários reis de Israel, como Acabe. 
É assim que devemos ler o Antigo Testamento: tendo Jesus como demonstração do que há no coração de Deus. Por isso, vejo que é hora de reler o Antigo Testamento. Agora sim me acho preparado para isso.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.