quinta-feira, 15 de junho de 2017

O LUGAR DA MÍSTICA NA IGREJA LUTERANA - PARTE 3

Autor: Rodrigo Moreira de Almeida

No último post dessa série, vamos examinar outra vertente da mística luterana, que se diferencia da vertente devocional por seu caráter especulativo. Aparentemente, afirmar a existência de uma mística especulativa no Luteranismo contradiz o que afirmamos no post anterior, quando tratamos da impossibilidade teórica desse tipo de espiritualidade dentro da Igreja Luterana, por conta das rigorosas práticas ascéticas que ela exige. Entretanto, é importante destacar que essa vertente possui uma característica importante, que a diferencia da espiritualidade especulativa de um Mestre Eckhart, por exemplo: ao invés de praticar o Abgeschiedenheit, o voltar-se para dentro de si pelo desprendimento em relação às coisas exteriores, a mística especulativa luterana busca reconciliar natureza e espiritualidade, seguindo aí algumas indicações do próprio cristianismo germânico medieval [1]. Não há uma negação do exterior para a afirmação do Divino no "fundo da alma" do homem: pelo contrário, há uma dialética entre interioridade e exterioridade, pois tanto a alma humana quanto a Natureza têm ambas seu fundamento em Deus. É o que encontramos, por exemplo, nesse trecho de Jacob Boehme:

"Mas, quando, em meu determinado zelo, eu combatia com tanta violência contra Deus e contra as portas infernais, como se eu sempre tivesse novas forças de reserva, decidido a arriscar nisso a minha vida (o que certamente estava acima de minha força, sem a assistência do Espírito de Deus), então subitamente, depois de algumas grandes investidas, meu espírito irrompeu através das portas infernais até à geração mais interior da Divindade e ali foi abraçado pelo amor, como um noivo abraça sua amada noiva [...]. Nessa Luz, meu espírito subitamente viu através de todas as coisas, e em todas as criaturas, plantas e ervas, e através delas, conheceu o que Deus é e como Ele é, e qual é Sua vontade" [2].

O primeiro grande representante da mística especulativa luterana foi Valentin Weigel (1533-1588), pastor em Zschopau, Saxônia. Em contraste com a corrente examinada no post anterior, Weigel vê a necessidade de uma cosmologia que justifique a necessidade do novo nascimento. Assim, ele aplicará as intuições de Lutero a respeito das três partes do homem à organização do próprio cosmos:

"[Para Weigel] o mundo se apresentará composto de três 'mundos': primeiro, o universo material, o universo 'exterior', o dos corpos visíveis e tangíveis, no qual vivemos segundo nossos sentidos exteriores; segundo, o universo astral, dos corpos-forças invisíveis e, terceiro, o mundo de Deus. Estes três mundos procedem de Deus e são 'em Deus', como em sua fonte e princípio, e Deus está nesses mundos por ser a essência última e o ser dos seres que os povoam e os compõem" [3].

Assim como, segundo Lutero, o homem é corpo, alma e espírito, para Weigel o cosmos é composto de três "mundos": material, astral e espiritual, este último equivalente ao que os escolásticos denominavam "eviternidade", a morada dos anjos [4]. Ontologicamente, o "espírito", "a mais alta, mais profunda e mais nobre parte do homem", segundo Lutero, está localizado no mundo espiritual, que não é tanto lugar, mas um estado, no qual a alma se encontra unida a Deus, assim como os anjos no Paraíso. Nesse caso, a união com Deus é vivenciada como uma experiência interior, já que o homem, sendo o "rei da criação", possui dentro de si esses três "mundos": 

"[...] o homem é, ao mesmo tempo, microcosmos e microtheos, imagem, similitude e expressão tanto de Deus como do mundo, o que lhe assegura um posto absolutamente central no universo. Basta, ademais, ler atentamente a Bíblia para convencer-se disso. Com efeito, não sabemos que Deus criou o mundo do nada, enquanto que formou o homem 'do mundo' e lhe insuflou seu próprio espírito? Formou-o do mundo e, portanto, [ele] é o verdadeiro representante do mundo, é o pequeno mundo [microcosmos], o mundo em resumo, e não há nada na natureza que não esteja no homem. É um 'extrato' do mundo. O que explica a possibilidade do conhecimento: ao conhecer o mundo, o homem não faz nada mais do que conhecer a si mesmo [...]" [5].

Valentin Weigel


Ao conhecer o mundo, o homem conhece a si mesmo, e ao conhecer a si mesmo (isto é, conhecendo-se "em espírito", na parte mais profunda de seu ser), o homem conhece a Deus. Entretanto, esse conhecimento "em espírito" só é possível para o homem regenerado, isto é, para o homem que se "esvaziou" de si mesmo para ser plenificado pelo Espírito Divino. Assim como os três "mundos" estão "em Deus", na medida em que dependem dele, como em sua fonte ou princípio, o homem está "em Deus", na medida em que O reconhece como a raiz de sua existência, "abandonando-se" a ele [6]. De fato, Weigel insiste que o conhecimento sobrenatural é puramente passivo e que quem opera na alma regenerada é o próprio Deus, o que equivale à "passividade" da alma durante o "noivado místico" e sua absoluta dependência de Cristo para realizar qualquer boa obra, dois aspectos importantes da mística devocional luterana, como já foi apontado no post anterior.
A obra de Weigel (toda ela divulgada postumamente) abriu caminho para o trabalho do maior místico especulativo da tradição luterana: Jacob Boehme (1575-1624). Apresentar um resumo do sistema especulativo de Boehme certamente ultrapassaria o escopo deste post. Por isso, exporemos aqui apenas alguns pontos básicos desse sistema.

Jacob Boehme
Seguindo à tradição mística alemã de Mestre Eckhart, que faz distinção entre Gottheit (Deidade) e Gott (Deus), Boehme distingue no Divino uma dimensão apofática, denominada por ele de Ungrund (o "Sem-Fundo"). Este "Sem-Fundo", equivalente à "Deidade" de Mestre Eckhart, é o Divino absolutamente incognoscível, do qual tudo, inclusive o próprio Deus, é uma manifestação [7]. A primeira manifestação do Ungrund é o que Boehme denomina o "primeiro princípio" ou "fogo negro", que gera o segundo princípio, denominado por ele "luz". Sendo a "luz" gerada pelo "fogo negro", não é totalmente oposta a ele, mas é como a manifestação de sua verdadeira natureza [8]. Embora aparentemente estranhas à teologia luterana, essas intuições nada mais são do que uma transposição metafísica de algumas ideias teológicas de Lutero, para quem Deus é não só Amor e Misericórdia, mas também Ira e Rigor. Essas qualidades divinas se expressam na distinção básica, presente na teologia luterana, entre Lei e Evangelho, que não são princípios opostos, mas complementares: assim como a manifestação do segundo princípio revela o "tesouro escondido" por trás das trevas do primeiro princípio, o Evangelho revela a verdadeira essência da Lei: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
Essas duas qualidades inerentes ao Ser Divino estavam em harmonia, mas a queda de Lúcifer transformou-as em potências que se opõem. O primeiro princípio, que antes estava dialeticamente incorporado no Ser Divino, agora se encarna como "Inimigo" de Deus [9]. O resultado é a manifestação do terceiro princípio, o nosso mundo, no qual os dois primeiros princípios se apresentam não mais como harmônicos, mas como antagônicos.
Nessa ilustração de Dyonisius Andreas Freher, é mostrada a criação do mundo segundo Jacob Boehme: o círculo da direita, representando o primeiro princípio, e o círculo da esquerda, representando o segundo princípio, ambos concorrem para a formação do terceiro princípio, o nosso mundo, representado pelo círculo da parte inferior, tendo o sol no centro e a terra abaixo.

Para voltar à harmonia original, é preciso passar pelo mesmo processo que gerou os dois princípios do Ser Divino. No plano humano, isso se manifesta na complementaridade entre Lei e Evangelho no processo salvífico: o rigor da Lei atua de modo puramente negativo, fazendo o homem desesperar-se totalmente de si mesmo. Essa "descida aos infernos", no entanto, deve ser complementada com uma "ascensão aos céus", que só é possível pela atuação da Graça, por meio do Evangelho, pois, com ela, o homem torna-se capaz de agradar positivamente a Deus:

"A Lei pode fazer a pessoa anular-se / autonegar-se diante dos seus pecados, mas esse esvaziamento não salva. O salvo não apenas deixa de desagradar a Deus (esvaziamento), mas deve agradá-lo positivamente (recebimento da fé). Em outras palavras, o processo de esvaziamento não pode ser confundido com salvação, pois vem da Lei, enquanto que a fé outorgada ao esvaziado vem da Graça" [10].

Entretanto, como o ponto de vista de Boehme é cosmológico, toda a criação deve passar pelo mesmo processo das trevas à luz. O que está em jogo não é simplesmente a salvação individual, mas a apocatástase, a renovação de todas as coisas. Nesse processo, é fundamental conhecer a natureza e o mundo corpóreo, pois, como dirá mais tarde F. C. Oetinger, um discípulo de Boehme dentro da comunhão luterana, "Leiblichkeit ist das Ende der Werke Gottes" ("A corporalidade é a finalidade das obras de Deus") [11].

"A doutrina de Boehme constitui uma Naturphilosophie [filosofia da natureza] do tipo mais profundo, um fato que foi reconhecido não apenas por filósofos, começando com Hegel, mas também, ocasionalmente, por membros da comunidade científica. Sabe-se que o próprio Newton foi influenciado pelo teósofo alemão, e mesmo em nossos dias há o exemplo de Basarab Nicolescu, um cientista que voltou aos ensinamentos de Boehme para insights incidindo sobre a física de partículas" [12].

Portanto, a mística especulativa de matriz luterana busca uma integração entre homem e natureza, ausente na mística especulativa católica romana, devido à qualidade mais ascética desta última. Como vimos no primeiro post desta série, o luteranismo, seguindo aí algumas tendências do próprio cristianismo católico medieval, busca uma forma de espiritualidade "que integrasse o natural no sobrenatural, isto é, uma perspectiva tendendo em direção a Deus sem ser contra a Natureza, uma piedade que não é monástica, mas acessível a todo homem de boa vontade em meio às preocupações terrenas" [13]. É essa perspectiva que encontramos na mística de Weigel e Boehme.

NOTAS:

[1] Em conversa com Mateus Soares Azevedo, S. H. Nasr explica que o Cristianismo medieval celta e germânico tinha uma apreciação mais positiva da natureza do que o cristianismo latino: "A civilização medieval latina tinha os 'pontos cegos' em relação à natureza, em razão da perspectiva jurídica do mundo romano, que de fato incorporou o Cristianismo, ao passo que as civilizações do norte da Europa, a céltica e a germânica, tinham uma abertura muito maior para o entendimento da Natureza" (Mateus Soares Azevedo, Iniciação ao Islã e ao sufismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 117). Exemplos dessa devoção do cristianismo germânico medieval pela Natureza podem ser encontrados, segundo Azevedo, nos escritos de Hildegarda de Bingen e Alberto Magno.

[2] Jacob Boehme. A aurora nascente, 19, 11 e 13. 

[3] Alexandre Koyré. Misticos, espirituales y alquimistas del siglo XVI alemán, Madrid: Akal, 1981, p. 155. Tradução minha.

[4] Segundo Tomás de Aquino, a "eviternidade" é um meio-termo entre a eternidade e o tempo, sendo o modo próprio de existência dos seres angélicos (Suma teológica, I, q10, ad5). 

[5] Alexandre Koyré. Misticos, espirituales y alquimistas del siglo XVI alemán, p. 165-166. Tradução minha.

[6] Para falar desse "abandono", Weigel usa o mesmo termo da tradição especulativa de Mestre Eckhart: Gelassenheit

[7] Essa distinção equivale parcialmente àquela presente na teologia ortodoxa entre a Essência Divina, totalmente transcedente e incognoscível, e as Energias Divinas, pelas quais Deus atua no mundo e se torna cognoscível ao homem. De fato, a distinção eckhartiana entre a Deidade (Gottheit) e Deus (Gott) tem como base a afirmação da atividade do segundo e da ausência de atividade do primeiro: "Deus trabalha, a Deidade não trabalha: não há nada para ela fazer, não há nenhuma atividade nela. Ela nunca considerou qualquer trabalho. Deus e a Deidade se distinguem no que diz respeito àquilo que opera e àquilo que não opera" (Sermão 56).

[8]Boehme expressa essa geração como um "processo", mas apenas para fins didáticos: "Esses engendramentos não têm início algum, mas se engendraram assim desde toda a eternidade [...]. Contudo, tenho de colocá-los um depois do outro, segundo a maneira e a linguagem criatural, do contrário não poderias compreendê-lo [...]" (Aurora nascente, 23, 17-18).

[9] Podemos encontrar uma representação simbólica dessa transformação na narrativa de Gênesis: no primeiro dia, Deus cria a Luz e, com ela, seu oposto dialético, as Trevas. No entanto, a sequência da narrativa mostra que as Trevas deixam de ser o complemento necessário da Luz para se personificarem na figura da Serpente, adversária de Deus e dos homens.

[10] Franklin Ferreira. Sobre o arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão. Nota disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=467

[11] Segundo Boehme, tanto o primeiro quanto o segundo princípio se manifestam através de três qualidades ou forças, totalizando seis qualidades mais uma, que representa a passagem do primeiro para o segundo princípio. A última qualidade a se manifestar, no segundo princípio, é justamente a tangibilidade ou corporalidade.

[12] Wolfgang Smith. Christian gnosis: from Saint Paul to Meister Eckhart. San Rafael: Sophia Perennis, 2008, p.127.

[13] Frithjof Schuon. The question of protestantism. Disponível em: http://www.worldwisdom.com/public/viewpdf/default.aspx?article-title=The_Question_of_Protestantism_by_Frithjof_Schuon.pdf. Tradução minha.

Trata-se de uma trilogia sobre o misticismo alemão. Se você se interessa pelo assunto:
Primeiro texto: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html 
Segundo texto: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/11/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html
 
As imagens foram extraídas da internet.













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