quinta-feira, 3 de agosto de 2017

SANTIFICAÇÃO: DA AUTONOMIA À UNIDADE

"A letra mata, mas o espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6).

Quando se fala em Lei, a primeira coisa que nos vem à mente é o quê? Regras. E no contexto religioso, culpa e condenação. Este é o imaginário humano acerca da Lei. Nós temos uma tendência a considerá-la um mal necessário.
Embora haja divergências dentro do luteranismo acerca desse assunto, a Lei é algo que integra a razão e, portanto, faz parte da humanidade. Quando Deus criou os homens à sua imagem e semelhança, a Lei foi igualmente criada. Deus nos criou seres morais, tomando a si próprio como modelo de moralidade. Então, um Deus moral criou o homem à sua imagem e semelhança, igualmente moral. 
As Escrituras nos chamam de deuses, por nossa capacidade de refletir moralmente e julgar: "Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo" (Salmo 82:6). Portanto, o homem foi criado por Deus como um deus, como um ser moral, que ama e busca o que é bom e repele o que é mal. Isso dá à Lei um significado ontológico. É impossível ser um homem sem a Lei.
Como o homem é imagem de Deus, tudo aquilo que o constitui é bom, porque Deus é bom. Logo, a Lei é algo muito bom. Não devemos enxergá-la como um mal necessário. 
O pecado, no entanto, corrompeu todas as faculdades humanas, colocando-as em rebeldia contra Deus. De repente, a imagem de Deus se voltou contra ele, o bom se voltou contra o bom, o justo se voltou contra o justo. E então o que era imagem deixou de ser, o que era bom se tornou mau, o que era justo se tornou injusto. O bom não pode trabalhar contra a bondade, mas a favor dela. Se o bom se volta contra a bondade, então deixa de ser bom e torna-se mau. Assim, enquanto o homem foi expressão da justiça, ele permaneceu justo. Quando imaginou ter justiça própria e, com ela, opôs-se à justiça de Deus, tornou-se injusto. 
A origem do pecado está, portanto, na autonomia humana. Quando o ser humano se sentiu um deus, um ser bom e justo, não mais a expressão de Deus, ele opôs sua justiça à Justiça, sua bondade à Bondade, tornando-se injusto e mau. Agora, portanto, temos duas justiças, duas bondades, que se antagonizam. Não há mais cooperação, mas rivalidade, pois há uma lei contra a Lei. 

Tal foi a desordem estabelecida, que o ser humano é mau ao ser bom e injusto ao ser justo, pois não colabora com a bondade e a justiça de Deus, ele as antagoniza. Não é mais expressão de Deus, mas seu rival. O homem agora é um deus que peleja contra Deus. "Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o SENHOR. Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm a água" (Jeremias 2:12-13).
Aqui está o motivo pelo qual o homem não pode mais ser justificado pela Lei. É que ele não consegue agir de acordo com a Lei de Deus, mas de acordo com sua própria lei e contra Deus. A perversão do homem não está em sua natureza ou substância, mas no fato de ser uma natureza ou sustância autônoma, que não pode colaborar com Deus. E se não pode colaborar, é certo que rivaliza. Hoje, por mais que um ser humano se esmere por ser bom, ele necessariamente o fará contra a Bondade.
É por isso que as Escrituras se opõem à ideia de livre-arbítrio, porque o ser humano, enquanto ser autônomo, não pode realizar nada de bom, pois sua bondade sempre será inimiga da verdadeira Bondade, que está em Deus. Ele não pode mais decidir-se por Deus, pois é autônomo. É um ser que comparece perante Deus, um rosto contra o outro, uma lei contra a outra, uma justiça contra a outra. Ao nos chamar à responsabilidade, Deus nos mostra que estamos contra ele.
A decisão de Deus está em nos fazer retornar à sua comunhão, para que não mais sejamos deuses contra ele, mas deuses nele, que o expressam, que partilham da mesma bondade e da mesma justiça, que atuam em perfeita sinergia. Para isso, é necessário que Deus mate nossa autonomia.
Com esse objetivo, Deus primeiro estabelece a heteronomia. Ele quer que nós, enquanto indivíduos, deixemos de lado nossa própria lei e nos sujeitemos à sua Lei. Não quer que cumpramos a nossa lei, mas a dele. Ele ordena que nos tornemos seus colaboradores, sua expressão, o que não nos é possível, enquanto seres autônomos. Portanto, a Lei de Deus se impõe contra a nossa lei. Como não conhecemos mais o caminho da comunhão, enxergamos a Lei de Deus como nossa inimiga, como algo ruim, uma ameaça. A heteronomia nos mostra que estamos contra Deus, mas não nos informa como estar a favor dele e por ele. Se eu transformar a Lei de Deus em várias regras e propor-me a seriamente cumpri-las, ainda assim estarei agindo contra a justiça de Deus, pois perdi o caminho da comunhão. É por isso que S. Paulo chama a Lei de Deus de letra que mata. Ela não é essencialmente ruim, mas eu a vejo ruim porque ela está fora de mim, contra mim e interpela-me o tempo inteiro. Ela não me agrada, porque lança luz sobre a realidade de ser eu um deus que está contra Deus. Ela transforma em mentira tudo o que julgo ser verdade. Ela converte em injustiça aquilo que considero muito justo. Ela me transforma em um diabo, um inimigo de Deus, mas não só quando erro, inclusive quando sou muito bom e justo.
Depois Deus nos reinsere em sua comunhão, por meio da fé. Conforme o homem vai perdendo sua autonomia perante Deus, ele volta progressivamente a expressá-lo. O estado de confronto vai cedendo espaço ao estado de sinergia. Não mais meu olhar se volta contra Deus, mas torna-se oblíquo e evolui para um mesmo olhar. Isso S. Paulo chama de espírito que vivifica. O objetivo de Deus é que haja uma só Lei, um só Deus, uma só Bondade, uma só Justiça.
A comunhão não é algo que posso operar. Deus é o outro, aquele que me responsabiliza, aquele perante o qual estou. Nossa autonomia nos limita a isso e não podemos, por recurso próprio, desvencilhar-nos. É necessário que Deus nos envolva e permeie com sua justiça. É necessário que sejamos um só Deus e uma só Justiça. Definitivamente, não é de nossa alçada algo tão sublime. Por isso, insistimos que não só a iniciativa é de Deus, mas a obra toda. Não sou eu que entro em comunhão com Deus, mas é ele que entra em comunhão comigo. A sinergia existe e é o objetivo último de Deus, mas é impossível que ela coexista com a autonomia. A sinergia só será possível no estado de glória.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.