segunda-feira, 24 de agosto de 2015

SER EVANGELHO



"Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio" (S. João 20:21).

Hoje o que mais temos são discursos. Principalmente depois que a internet surgiu e tornou-se amplamente disponível, muitos, mas muitos mesmo querem dar uma opinião e discursar sobre qualquer coisa. E como as pessoas, em geral, são corajosas quando estão atrás da tela do computador! 
Mas estamos aí, com o mundo indo de mal a pior, cheio de desonestidade, falta de ética, de princípios, de respeito e de amor. Este é o século da comunicação e também da incoerência. Incoerência porque a maioria reclama, protesta, mas não faz nada de positivo ou pior: é tão desonesta e imoral quanto as pessoas ou condições que denuncia.
Jesus Cristo, revelação do amor de Deus pela humanidade, o próprio Evangelho que, como afirmei na postagem anterior, não é um discurso, mas realidade, quer que também sejamos Evangelho e realidade.
Jesus Cristo é um discurso vivo, de carne e sangue. Ele não disse aos leprosos: "eu os curo", mas os tocou. Ele não disse a Zaqueu: "eu o perdoo", mas comeu com ele. Ele não consolou Maria, dizendo: "meus sentimentos, irmã, pelo falecimento de seu irmão", mas chorou em silêncio com ela. Não orou a Deus pela salvação da samaritana, mas dialogou com ela e diálogo inclui ouvir, prestar atenção, demonstrar interesse. 
Para Jesus era pouco afirmar que as crianças têm que ser respeitadas na Igreja e sociedade. Por isso, tomou-as em seus braços e lhes impôs as mãos, abençoando-as. 
Jesus não quis dar um discurso sobre humildade aos discípulos, mas lavou seus pés. Não ficou gritando pelas praças que devemos nos doar uns aos outros, mas foi e doou-se incansavelmente aos pobres e enfermos, aos gentios; deu seu verdadeiro corpo e seu verdadeiro sangue para serem ceados pelos discípulos; entregou-se na cruz pelos pecados da humanidade. Portanto, Jesus não é um homem de discursos, mas de atitudes.
A questão colocada aqui é que nós, cristãos, fomos enviados por Jesus DA MESMA FORMA que ele foi enviado pelo Pai. Se Jesus é uma pregação viva, de carne e sangue, o autêntico Evangelho, Palavra que anda, chora, aconselha, toca, pega em seus braços, impõe suas mãos, lava os pés dos outros e morre pelos outros, também devemos ser o mesmo.
Nós somos o Evangelho na terra. Bem gostaria que nós, cristãos, ao invés de sairmos discursando por aí, dizendo o que Deus quer ou não quer, fôssemos Pregações vivas, de carne e sangue. Tudo bem, o mundo precisa de que se pregue: "Jesus o ama", ele quer ouvir isso, porém muito mais precioso que pregar isso é amar. O mundo precisa da Pregação do perdão de Deus, entretanto ele precisa muito mais de nosso perdão. O mundo não sabe que Deus está próximo e que o quer, e é necessário que anunciemos isso, porém a melhor pregação é a nossa presença amorosa.
Por favor, não confunda Evangelho com teoria ou doutrina. Evangelho é atitude de Deus para conosco. Se você quer ser um bom pregador do Evangelho, entenda que ser Evangelho é ter carne e sangue, é oferecer carne e sangue para serem consumidos, quer dizer: estar próximo, não julgar, ouvir, prestar atenção, amar, compadecer-se, tocar, chorar junto, olhar nos olhos, silenciar-se, importar-se. O mundo com razão está farto de discursos. A Igreja não deve ser a portadora de mais um discurso. Que sejamos Evangelho vivo, Pregação viva, Jesus Cristo vivo para quem está distante de Deus. Que qualquer pessoa sobrecarregada de pecados encontre descanso ao nosso lado, assim como muitos encontraram em Jesus. E que a partir de nossa vida de entrega, as pessoas sejam atraídas a Jesus, porque é impossível encontrar-se com um cristão autêntico e não encontrar-se com o próprio Senhor.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 23 de agosto de 2015

PREGAÇÃO DE CARNE E OSSO


"Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue permanece em mim, e eu, nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, também quem de mim se alimenta por mim viverá" (S. João 6:51-57).

A Igreja está saindo de uma maratona de reflexões sobre o rico capítulo 6 do Evangelho  segundo S. João.
Jesus se apresenta como pão vivo que desceu do Céu. Diz que sua carne é verdadeira comida, que seu sangue é verdadeira bebida e que é necessário engoli-los para ter a vida eterna.
A primeira coisa que nos vêm à mente é a Eucaristia. Mas aqui Jesus não trata propriamente da Eucaristia. Ele aborda a sublimidade do Evangelho, sobre o qual dediquei os três capítulos anteriores deste blog.
Como ensinou Dr. Martinho Lutero, há duas pregações de Deus: a Lei e o Evangelho. A Lei suscita o pecado, enquanto o Evangelho suscita a fé.
A primeira pregação de Deus foi feita por intermédio de anjos, conforme atestam Santo Estêvão (Atos 7:38) e S. Paulo (Gálatas 3:19), e tratava-se da Lei, que serviu para firmar uma aliança com os hebreus, baseada na observância de cada um de seus preceitos. O mediador dessa aliança foi Moisés.
Deus não é ingênuo para estabelecer uma aliança dessas pensando na possibilidade de sua observância correta. Como afirma S. Paulo em Gálatas 3, Deus firmou essa aliança para que o pecado, até então subestimado por seu povo, se tornasse enorme, imenso e insuportável, fazendo com que os piedosos se desesperassem de si mesmos e buscassem em Deus a solução.
Através de Moisés e de todos os profetas que vieram depois, Deus começou a anunciar uma Nova Aliança, não baseada em obras humanas e obediência, mas em sua misericórdia imutável e no perdão. A Nova Aliança se chama Evangelho.
A segunda pregação de Deus é esse Evangelho. Não foi proclamada por meio de anjos, mas por seu próprio Filho, através de sua encarnação. Na verdade, erra quem acha que o Evangelho é um conjunto de ensinamentos. Se antes eu falei sobre o erro de confundir o Evangelho com a Lei, de maneira que se deva observá-lo, é importante destacar que o Evangelho não é uma doutrina. Não posso reduzir o Evangelho ao ensino de que Deus nos é propício através de Cristo e que deseja nos perdoar e salvar. Não, o Evangelho tem carne e sangue.
O Evangelho não é teoria, mas realidade viva, carne, sangue, pele, vísceras, ossos e ligamentos. O Evangelho é a encarnação de Deus para salvação do homem. Deus assumiu a nossa carne, o nosso sangue, a nossa condição, para cumprir a Lei em nosso lugar, padecer as maldições por ela estatuídas em nosso lugar, para que pudéssemos ser salvos.
Crer no Evangelho não é crer em uma doutrina, mas no próprio Jesus Cristo: Deus feito carne e sangue. Crer no Evangelho não é apropriar-se de uma teoria, como é feito nas universidades, através do aprendizado, mas engolir a realidade bendita de um Deus que não quis mais ser só Deus. Quis estar conosco, ser um de nós, morrer por nós e nos salvar.
É sobre a experiência da fé que Jesus trata, ao falar sobre comer sua carne e beber seu sangue, porque fé não é obra humana, intelectual, mas é atividade passiva de nossa parte, como o engolir. Ler e estudar são atividades ativas. Engolir é atividade passiva. Por isso, Jesus diz que deve ser engolido pela fé e não estudado em livros.
Por fim, Jesus atesta que quem o engole não mais sentirá fome. 
É claro que Jesus não está falando de fome corporal, que ele inclusive ajudou a aliviar, quando multiplicou os pães. As pessoas que comeram os pães que ele multiplicou logo depois estavam novamente famintas, querendo mais pão, razão pela qual o procuraram. Disse Jesus: "O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita" (versículo 63). Jesus está falando da fome espiritual, suscitada pela pregação da Lei.
O mundo inteiro sente fome e não sabe que fome é essa e de onde ela procede. Por não saber a natureza dessa fome, tenta saciá-la através de prazeres sensuais, boas obras e conhecimento. Mas essa fome é suscitada pela Lei, implantada no coração do homem desde a criação, e não pode ser saciada por nada que existe neste mundo. A Lei natural nos faz sentir que estamos perdidos e que carecemos de redenção. Portanto, a fome que o mundo sente é fome de redenção, fome de perdão! A essa fome Jesus quer saciar, não através de discursos, mas através da realidade de sua encarnação e presença entre nós.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



quarta-feira, 12 de agosto de 2015

MOISÉS E JESUS - PARTE 3



O Evangelho é poderoso demais! Ele cai no coração como brasa viva sobre palhas secas ou como boa semente em terra fofa. É claro que para a folha secar e tornar-se palha será necessário o calor fustigante da Lei. Também a terra do coração só é afofada pelo arado da Lei.
Quando uma pessoa se sente oprimida pela consciência de seu pecado, isso significa que o arado da Lei já passou por ali. Basta  então que a semente do Evangelho seja lançada na terra fofa do coração para que germine em fé. Aqui não se há de falar em predestinação. Deixe isso para os filósofos! O Evangelho produz a fé e isso deve ser compreendido objetivamente. Ele só não cumprirá o seu propósito quando houver resistência de nossa parte (Atos 7:51). 
Infelizmente, esse só é muita coisa. Quando a semente do Evangelho toca o coração do homem com o propósito de ali germinar, o homem arregimenta todo o seu bom senso, sua razão, sua petulância, sua sabedoria e tudo o que existe em si de carnal para pegar essa semente e arremessá-la para bem longe de si, como coisa louca e sumamente absurda, como conto da carochinha e história de criança. Quando mostra alguma receptividade por essa semente, muitas vezes o diabo o instiga a proceder de outro modo.
Por isso, o Evangelho será sempre um caminho estreito (Mateus 7:13-14), não devido aos desígnios de Deus, mas aos nossos.
Mas para aqueles que recebem o Evangelho e, devido ao poder desse Evangelho, passam a crer, a fé se encarrega do resto. Por isso, S. Paulo afirma que os crentes não estão debaixo da Lei (Romanos 6:14; Gálatas 3:24-25). A fé cumpre a Lei de maneira voluntária e alegre, através do amor (Gálatas 5:6). Qualquer deficiência que houver no crente ao cumprir a Lei não é imputada como pecado, devido à fé. É por isso que o cristão verdadeiro é livre. Ele é capaz de viver a Lei sem se lembrar que ela existe. Não deseja nada dela, nem a teme. Ele não está preocupado com suas recompensas, nem com suas ameaças. Esta é a suficiência da fé produzida pelo Evangelho: que consideremos a Lei como alguém de casa, que amamos e respeitamos. 
Aqui é preciso destacar a diferença entre a Lei natural e a Lei dada a Moisés. A Lei natural é a que vale para nós, que cremos (Jeremias 31:33). A Lei de Moisés foi dada aos israelitas e dela estamos desobrigados (Gálatas 3:24-25). 
Então é necessário que se pergunte: Por que ainda mantemos a Lei de Moisés em nossas casas e cultos, se temos a Lei natural?
A relevância de Moisés para nós, que cremos, está no fato de ainda sermos carnais. A nossa carne tende a subestimar a Lei natural, tanto em seu conteúdo, como nas consequências de sua transgressão. Por isso, Moisés é de fundamental importância, porque ele nos apresenta a Lei natural de maneira visível, objetiva e com o acréscimo das ameaças, para que nossa carne não considere nenhum pecado desprezível. Também Moisés não esteve sujeito a erro ao escrevê-la, pois a recebeu do próprio Deus. Então a Lei de Moisés tem o selo de garantia do próprio Deus. Portanto, Moisés deve ficar conosco e devemos ouvi-lo, à medida em que sua Lei se coaduna com a Lei natural, para que nos ajude a mortificar nossa carne. A Lei de Moisés também nos ensina as verdadeiras obras, por meio das quais podemos exercitar nossa fé e servir ao nosso próximo. Sabemos que a carne gosta de inventar boas obras. Por isso, enquanto fé e carne conviverem sob o mesmo teto, a Lei de Moisés nos ajudará a destruir a carne, abrindo espaço à fé.
Quando, porém, formos inteiramente espirituais, ou seja, após a ressurreição dos mortos, não mais precisaremos de Moisés e seremos como Adão e Eva antes de sua queda em pecado, quando cumpriam de maneira perfeita a Lei natural e nela se compraziam.
Por ter ensinado isso, Dr. Martinho Lutero é acusado frequentemente de antinomismo. O que é isso? É ensinar a não necessidade da Lei de Moisés para os que creem no Evangelho. Não, ele não só era contra o antinomismo, como ele ainda nos ensinou a todos os dias recitar ou cantar os Dez Mandamentos, como lembretes ao perigo que a carne nos oferece constantemente e para que nos motivem a buscar o Evangelho e a praticar as verdadeiras obras. Na verdade, Dr. Martinho Lutero se posicionou contra a ênfase que a razão humana dá à Lei, principalmente à Lei de Moisés, em detrimento do Evangelho, mesmo entre os melhores cristãos. Lembremo-nos que a Lei serve ao Evangelho. É Moisés que serve a Jesus, não o contrário. A Lei é uma cooperadora do Evangelho e de acordo com seu ofício é que deve ser honrada entre nós.
Em suma, Lei e Evangelho são opostos entre si, mas são bons amigos. Não podemos abraçar o Evangelho e desprezar a Lei, muito menos o contrário. Precisamos de ambos, até que Cristo seja tudo em todos, até que o Evangelho nos absorva por completo. Se você está cansado e sobrecarregado pela Lei, busque o Evangelho, mas o Evangelho puro! Se você crê no Evangelho e o tem, não despreze Moisés como inimigo. Ele será seu amigo enquanto houver em você alguma carne que ainda necessite de morte.  
Sobre a historicidade da Lei e do Evangelho, recomendo a leitura do texto "De volta ao lar".

"Por isso, toma cuidado para não transformares Cristo num Moisés, nem fazeres do Evangelho uma lei ou cartilha (...). Pois o Evangelho, na verdade, não exige nossa obra para com ela ficarmos probos e salvos; na verdade, ele condena tal obra, exigindo, sim, a fé em Cristo, em que ele por nós superou o pecado, a morte e o inferno e nos vivifica, beatifica e nos torna probos, portanto, não por meio da nossa obra, mas por sua própria boa obra, morte e sofrimento, para que aceitemos sua morte e vitória como se nós mesmos o tivéssemos realizado" (Prefácio ao Novo Testamento, Dr. Martinho Lutero, 1545).




Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

MOISÉS E JESUS - PARTE 2


O Evangelho é a revelação da misericórdia de Deus a quem está caído. Não há preceito, nem exigência, nem observância, nem condições, nem preço, somente misericórdia, dádiva e gratuidade. Aqui Deus revela o seu desejo de reconciliar o homem consigo. Deus mesmo é o Evangelho, pois ele se encarnou, tornando-se um de nós, cumpriu rigorosamente sua própria Lei, foi condenado por nossos pecados, tornando-se o pior pecador de todos os tempos; precipitou-se ao inferno em nosso lugar, morreu e ressurgiu para nos outorgar tudo isso, como se nós, e não ele, tivéssemos realizado e padecido todas essas coisas que a Lei ordena e castiga. Ele agora oferece humildemente tudo o que obteve à humanidade inteira e deseja somente uma coisa: receptividade ou fé. Ele não quer colocar preço, porque não há preço que pague. 
O Evangelho é o único caminho da salvação. Aliás, ele opera a salvação. Não é mero convite ou ingresso, nem colar valioso que se pendura ao pescoço. O Evangelho tem o poder de ressuscitar quem está morto e assim o faz. Como disse Jesus: "O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida" (João 6:63).
Onde houver Lei, há sempre morte. Onde houver Evangelho, ali há vida. A Lei deve nos conduzir ao Evangelho assim como a enfermidade corporal nos conduz à morte e a Deus. Com a Lei, Deus quer nos matar para nós mesmos, esvaziar-nos de nós mesmos, para nos preencher com tudo o que ele quer dar. Ora, Deus quer dar a si mesmo, sem qualquer reserva, sem qualquer limite, sem qualquer medida, sem qualquer preço (Romanos 8:32). Por isso ele utiliza a Lei, para expurgar de nós a nossa justiça, que ele chama de "pano de menstruada" (Isaías 64:6), e ser nossa Justiça inteira.
Então percebemos que a Lei, embora seja diametralmente oposta ao Evangelho em sua natureza e ofício, é ferramenta valiosa de Deus para nos conduzir à salvação e está a serviço do Evangelho, como serva obediente. É por isso que S. Paulo a trata respeitosamente de "aio que nos conduz a Cristo" (Gálatas 3:24-25).
Jesus principiou seu ministério público pregando a Lei. Embora tenha vindo ao mundo com o propósito de anunciar o Evangelho, ele não abriu mão da Lei (Mateus 5:17-18). O que os fariseus consideravam justiça perfeita, e por causa dela se envaideciam perante os pagãos e supunham agradar a Deus, Jesus veio questionar. Adultério não é apenas sexo, mas pode ser cometido pela mente (Mateus 5:27-28). Amar o próximo não é amar somente quem nos agrada ou é igual a nós, mas também significa amar nossos inimigos (Mateus 5:43-44). Ao pregar que devemos perdoar sempre e não entrar em disputa com nosso próximo, ele estava interpretando a Lei: "Não aborrecerás teu irmão no teu íntimo; mas repreenderás o teu próximo e, por causa dele, não levarás sobre ti pecado. Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR" (Levítico 19:17-18). 
Até mesmo ao ordenar que abandonássemos tudo, tomássemos a sua cruz e o seguíssemos, Jesus estava apregoando a Lei, chamando todos à verdadeira conversão (Mateus 16:24-25). O mesmo se deve dizer do "amarás a Deus e ao teu próximo" (Lucas 10:26-28) e acerca do "novo mandamento" (João 13:34-35). Tudo isso é Lei. Não confunda com Evangelho. Até mesmo na cruz Jesus proclamou a Lei de maneira veemente: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" Sua dor, vexame, desamparo e inferno nos revelam a gravidade de nosso pecado perante Deus e a consequência dele, descrita em Levítico 26:14-39.
Jesus não veio trazer uma nova Lei. O que muitos pensam ser uma "nova Lei" nada mais é que uma interpretação profunda da velha Lei. Jesus também não queria outro resultado ao proclamar a Lei, senão aquele que sempre quis: tornar-nos cônscios de nossa realidade perante ele.
Então onde está o Evangelho nos evangelhos? Essa pergunta deve estar na mente de alguns, porque aprenderam ao longo da vida que amar ao próximo como a si mesmo é Evangelho, bem como oferecer a outra face a quem lhe esbofeteia o rosto. Para muitos, Evangelho é uma nova Lei, dada por Cristo, preceituando o amor ao próximo e humildade.
Antes de mais nada, é importante que fique claro que o Deus revelado em Jesus Cristo é o próprio Evangelho. O relato de sua encarnação, de seus milagres, de sua misericórdia, de sua morte vicária, ressurreição e ascensão ao Céu é Evangelho. O próprio nome "Jesus" é Evangelho, pois significa: "Jeová salva" (Mateus 1:21). 
Fazer citações textuais é difícil, porque praticamente tudo o que Jesus ensinou é Evangelho, pois para isso ele veio ao mundo. Mas deixo alguns exemplos de anúncio puramente evangélico, para que a distinção entre pregação da Lei e pregação do Evangelho fique clara: 

"Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei".  

"Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus".  

"Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas, e uma delas se extraviar, não deixará ele nos montes as noventa e nove, indo procurar a que se extraviou?".  

"Tomai, comei; isto é o meu corpo (...). Bebei dele todos, porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão dos pecados".  

"Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus pecados estão perdoados". 

"Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos".  

"Quem crer e for batizado será salvo"

"Eu sou a videira verdadeira, vós, os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer". 

"Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas". 

"Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá" 

Outro exemplo magnífico é a parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32). Em tudo isso veja que não há preceito nem ordenança, mas somente misericórdia, gratuidade, promessa, dádiva e fé.
Para que um doente venha a desejar o remédio é necessário primeiramente convencê-lo de sua doença. É só por isso que Jesus fez uso da Lei. Se havia algumas poucas pessoas terrivelmente atribuladas pela culpa, havia inúmeras outras que se julgavam muito santas e sem necessidade de redenção. 
Entretanto, Jesus não veio ao mundo para anunciar a Lei ou uma "nova Lei". Ele é o próprio Evangelho e sua pregação é essencialmente evangélica. "Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele" (João 3:17).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

MOISÉS E JESUS - PARTE 1



"Porque Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (João 3:16).

Eu não sei se existe um evangélico convicto que não saiba esse versículo de cor. Afinal, ele é ensinado às nossas crianças desde cedo e há muito tem sido o nosso emblema. Com poucas palavras, ele informa o modo pelo qual Deus salva o homem: através do sacrifício de Cristo e através da fé. Deus provê tudo o que é necessário à nossa salvação, não exigindo nada de nós, exceto a fé. 
Com muita alegria afirmamos que somos evangélicos, porque temos conosco o Evangelho e nele cremos. Mas você já parou para pensar no que é Evangelho? Porque existe a Lei, igualmente dada por Deus, e frequentemente confundimos Lei com Evangelho. Por isso, é necessário que distingamos um do outro, para que não ocorra que sejamos encontrados "observando" o Evangelho.
É comum ver pessoas tomando todo o conteúdo dos evangelhos de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João como Evangelho, o que não é verdade, porque existe Lei nesses livros. Aliás, em proporções diferentes, praticamente todos os livros da Bíblia contêm Lei e Evangelho. 
Percebo essa confusão principalmente nos hinos que são cantados por nós, evangélicos. Por exemplo: 

A nova do Evangelho vem a todos avisar / do perigo grande e grave para quem se descuidar. / Salvai-vos desde já, não vos detenhais no mal; / não volteis atrás os olhos, pois vos pode ser fatal

É o Evangelho que nos acusa do pecado e nos ameaça? 

Outro cântico tradicional:  

Em Jesus confiar, / sua lei observar. / Oh! que bênção, que gozo, que paz! / Satisfeitos guardar tudo quanto ordenar / alegria perene nos traz. / Crer e observar tudo quanto ordenar; / o fiel obedece ao que Cristo mandar

Por esse hino entendo que Jesus é um legislador, tal como o foi Moisés.
Portanto, é muito comum que se confunda Lei e Evangelho. Entretanto, devemos tomar muito cuidado para manter a Lei e o Evangelho bem distintos um do outro para que não sejamos enredados pela justiça das obras e para que nossas consciências encontrem socorro seguro e descanso, sempre que pecarmos.
Pois bem, Lei e Evangelho são duas coisas absolutamente distintas, com propósitos contrários, mas que atuam de maneira muito harmônica e coordenada na salvação do homem. 
Quer coisas mais contrárias do que vida e morte? No entanto, uma é fundamental à outra. A vida no mundo é mantida pela morte. É por isso que todas as culturas e religiões aprenderam a reverenciar a morte como algo sagrado, necessário e muito salutar.
A morte e vida que percebemos no mundo natural, também podemos enxergar no universo de nossos sentimentos, em nossas estruturas sociais e políticas, e na espiritualidade.
A Lei foi entregue por Deus a todos os homens, indistintamente. Não há ser humano que não tenha a Lei de Deus inscrita em seu coração (Romanos 2:14-15). Deus a entregou de maneira especial ao povo de Israel, ou seja, visivelmente e sob a forma de aliança, por intermédio de Moisés. Entretanto, ela já existia no coração de todos os povos, razão pela qual é chamada de Lei natural. Com isso, Deus resguarda a norma de moralidade à qual todos, sem exceção, devem se sujeitar.
Após a queda de Adão e Eva, no contexto do pecado, a Lei permanece não para salvar, mas para refrear o pecado e para acusar o homem de sua pecaminosidade, com o intuito de trazê-lo de volta a Deus. 
Ninguém é salvo por meio da Lei. Quem se dedica a ela com esmero, como fazem os judeus, muçulmanos, budistas, espíritas e mesmo cristãos pouco instruídos, obterão respeitabilidade, honra e serão bem-sucedidos nesta vida ou temporalmente. Deus, porém, não nos vê como inocentes diante da norma de sua Lei, porque essa Lei não quer somente obras exteriores, mas exige o coração e a alma. Assim disse Moisés: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, DE TODO O TEU CORAÇÃO, DE TODA A TUA ALMA E DE TODA A TUA FORÇA" (Deuteronômio 6:5).
Ora, todos nós transgredimos a Lei a valer e nossas melhores obras não vêm inteiramente de nosso coração e alma. Como afirmou Santo Agostinho, nossa vontade nunca é completa para o bem. Há desejos perversos ocultos em nossas boas obras, que nem sempre somos capazes de discernir. Nosso coração é profundamente pecaminoso e não temos domínio sobre ele. Podemos impedir nossos membros de pecar, mas não temos poder sobre nossa mente. É como declara o profeta Jeremias: "Depravado e inescrutável é o coração do ser humano; quem o conhecerá?" (Jeremias 17:9).
Ao nos ordenar o que não podemos cumprir, a Lei nos mostra quem de fato nós somos, quão débil é nossa força para o bem e o quão vigorosa ela é para o mal. 
O pior é que a Lei ameaça com morte e inferno quem não a cumpre de maneira perfeita, ou seja, de coração e em sua totalidade. "Mas, se me não ouvirdes e não cumprirdes TODOS ESTES MANDAMENTOS; se rejeitardes os meus estatutos, e a VOSSA ALMA se aborrecer dos meus juízos, a ponto de não cumprir TODOS os meus mandamentos, e violardes a minha aliança, então eu vos farei isto: porei sobre vós terror, a tísica e a febre ardente, que fazem desaparecer o lustre dos olhos e definha a vida; e semeareis debalde a vossa semente, porque os vossos inimigos a comerão. Voltar-me-ei contra vós outros, e sereis feridos diante de vossos inimigos; os que vos aborrecerem assenhorear-se-ão de vós e fugireis, sem ninguém vos perseguir" (Levítico 26:14-17). Assim declarou S. Paulo a respeito: "O salário do pecado é a morte" (Romanos 6:23) e S. Tiago: "o pecado, uma vez consumado, gera a morte" (Tiago 1:15).
É por isso que o resultado coerente da análise da Lei é o pavor. Quem se propõe a perpassar sua vida pela Lei e a buscar nela a salvação, desde que o faça honestamente, encontrará a morte e nada mais. A Lei nos mostra "o que devemos fazer", mas não está preocupada com o "como fazer". Para ela pouco importa se somos aptos ou inaptos a cumpri-la. Lembremo-nos que ela foi concedida ao homem quando ele era perfeito e apto a cumpri-la. O homem caiu em pecado, mas a Lei permaneceu de pé, incólume.
Portanto, a Lei, quando bem compreendida, conduz o homem ao terror de consciência e ao medo de Deus. Em outras palavras, a Lei conduz à morte, como expressão da ira de Deus contra o pecado que ela evidencia. É claro que pouquíssimas pessoas chegam a essa percepção da Lei. A maioria faz o que pode e contenta-se com uma análise bem superficial dela, atendo-se a obras exteriores. Alguns poucos, porém, chegam a uma percepção mais profunda da Lei e de seu pecado e então sentem-se condenados. Por isso, S. Paulo chama a Lei de "ministério da morte" (2 Coríntios 3:7). A Lei é morte não em sua essência, mas porque somos morte e ela é um espelho que nos revela isso.
Quando a Lei cumpre o seu propósito e o homem se sente abatido e prostrado pela consciência de seu pecado e perdição, é então que o Evangelho deve entrar em cena.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

OVELHAS INTOCÁVEIS



"O Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados" (Isaías 61:1).


Como tem sido difícil ser cristão e ter um foco nos dias de hoje! Num mundo globalizado, onde a informação cruza o mundo na velocidade da luz, com excesso de informação e avanço sem precedentes das ciências, tem sido cada vez mais difícil saber o que é certo ou errado, o que defender, criticar e o que priorizar, como cristãos, chamados como representantes de Cristo na terra. Nossos pais, os santos apóstolos e mártires, lidaram com um volume muito menor de questões que nós. Sinto-me, às vezes, desamparado por eles e, honestamente, pela própria Bíblia, quando me ponho a meditar no caos em que vivemos. Quando abro minha boca para opinar, aconselhar ou advertir, sempre vem ao meu coração o seguinte questionamento: Estou sendo fiel ao meu Deus?
O Senhor Jesus veio pregar o Evangelho, curar e libertar (Mateus 4:14-21). Delegou à sua Igreja a mesma missão de pregar, curar e libertar: "Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que creem: em meu nome, expelirão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre os enfermos, eles ficarão curados"
É aí onde me estribo: a Igreja mantém Cristo no mundo, ao realizar suas mesmas obras. Enquanto houver Igreja, Cristo não terá morrido para os pobres; ainda há esperança para eles. Como temos a promessa de que a Igreja permanecerá até o fim do mundo, Cristo permanecerá entre os pobres deste mundo até o fim.
De fato, a Igreja tem libertado muitas almas de Satanás, tem alcançado o mundo inteiro com o anúncio do Evangelho em diferentes línguas; tem pegado os hereges pela cabeça ou pelo rabo e, quando é mordida por eles, não tem sofrido dano algum. A Igreja tem levado cura a quem está enfermo espiritualmente, em consequência do pecado. Enfim, a Igreja tem dado continuidade ao que Cristo iniciou.
Embora haja muitos escândalos dentro da Igreja, é necessário crer, e todos nós que cremos testemunhamos isso em algum momento, que a Igreja está muito viva entre os pobres do mundo. Assim como Cristo não teve grande projeção no mundo da época, sendo, em seu tempo, um reles galileu, a verdadeira Igreja também não tem fama alguma. Assim como Cristo foi julgado, difamado e humilhado, também a verdadeira Igreja tem padecido todo o tipo de humilhação e vexame ao longo dos séculos. Mas essa Igreja nunca deixou de estar entre os pobres do mundo, libertando-os de seus cativeiros, assim como Cristo fez.
O mundo foi mudando e a verdadeira Igreja foi se adaptando aos dilemas que foram surgindo, mas sempre com o foco de continuar entre os pobres, pregando o Evangelho, curando e libertando.
Há vários tipos de pobreza. Eu quero mencionar cinco, frequentemente superponíveis: a pobreza material, de quem não possui bens; a pobreza física, de quem se encontra fisicamente enfermo ou deficiente; a pobreza étnica, de quem se torna odioso simplesmente por existir, como ocorre nos genocídios; a pobreza espiritual, de quem se sente abatido pela consciência do pecado e perdição e, por fim, a pobreza moral, de quem é escravo do pecado.
Das cinco formas de pobreza mencionadas, a pobreza que a Igreja mais reluta em alcançar é a moral, que abrange mendigos, usuários de droga, transexuais, travestis, profissionais do sexo, presidiários e moradores de rua. 
A razão disso é que não nos sentimos contaminados quando vamos ao socorro de idosos e crianças, enfermos, moradores de favelas, refugiados de guerra e indígenas. Afinal, são pessoas com vida decente e proba. Mas quando é para corrermos o risco de perder a reputação, de sermos malvistos, de pensarmos ou falarmos algo que vá contra nossos princípios; quando essa pobreza moral nos obriga a retirar a roupa de nosso bom nome e respeitabilidade, para socorrê-la nus, portando somente o Evangelho, temos tremenda dificuldade. Sem dúvida nenhuma, é menos difícil me tornar um idoso, órfão, índio, morador de favela ou enfermo, para socorrer quem vive (ou sobrevive) assim, que tornar-me um usuário de droga, mendigo, transexual, prostituto e presidiário para agir misericordiosamente com quem está perecendo dessa forma. É o medo de nos descaracterizarmos como cristãos que nos dificulta alcançarmos essas pessoas que Deus tanto ama.
De fato, não é tarefa para qualquer um. Há pessoas que Deus reserva especificamente para essa missão e as prepara para isso. Mas você, que não foi chamado para esse trabalho, não permita que o moralismo o descaracterize como cristão. Prefiro mil vezes me descaracterizar para socorrer do que me descaracterizar para julgar. 
Se você não recebeu de Deus a missão específica de ir ao encontro dessa pobreza moral, peço que, por favor, ore por quem o faz, não fofoque, não levante falso testemunho, nem julgue.
Se você não consegue fazer algo por essa pobreza moral, peço que, por favor, não entre nesse esquema individualista e pagão de censurar, julgar, rechaçar e deixar morrer à mingua quem é assim.  
Se você não consegue fazer algo por essa pobreza moral, peço que, por favor, ore sinceramente por essas pessoas, porque elas são muito preciosas para Deus.
E por favor, não revide eventuais ataques à sua fé e aprenda a oferecer a outra face, se de fato é cristão. Estamos falando de pessoas que não conhecem o amor de Deus, foram escorraçadas pela família e pela sociedade, têm muitos traumas, vivem atormentadas por sua consciência, aprenderam a não confiar na Igreja, não têm mais nada a perder e muitas provavelmente não aprenderam com seus pais como se deve sentar, falar e portar-se em sociedade. Quando fazem algo que nos soa muito escandaloso, releve, finja que nada aconteceu e seja Igreja, que, disciplinada pelo próprio Deus a não esperar nada de bom deste mundo, acostumou-se a ser humilhada e a pagar o mal com o bem.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

MEU LIVRO DE HISTÓRIA


Meu livro de História
é assustador
ele clama como profeta
de coisas passadas

Meu livro de História diz
que o homem nasceu para a liberdade
que o homem não suporta opressão
que põe tudo em risco por causa da liberdade

Meu livro de História diz
que os poderosos não abrem mão do poder
que o homem não quer perder
nem mesmo se for para ganhar

Meu livro de História diz
que a sociedade é maniqueísta
que ela se desdobra em bons e maus 
em todo impasse

Meu livro de História diz
que os poderosos são bons
que os oprimidos são maus
e que os maus devem ser eliminados

Meu livro de História diz
que os conflitos irrompem em nome da liberdade
mas que persistem em nome do ódio
porque tudo o que é fermentado pelo ódio cresce mais rápido

Meu livro de História
é assustador
ele clama como profeta
de coisas passadas

Meu livro de História diz
que nos conflitos todos se igualam
todos se descaracterizam
todos se desumanizam

Meu livro de História diz
que nos conflitos não há ideologia
não há bom senso
somente uma coisa: dois partidos

Meu livro de História diz
que nos conflitos o maniqueísmo persiste
porém bom sou eu
mau é o outro

Meu livro de História diz
que o conflito termina
quando os ricos vencem
e os pobres são exterminados

Meu livro de História diz
que terminado o conflito
não se termina o conflito
porque o homem nasceu para a liberdade

Meu livro de História
é assustador
ele clama como profeta
de coisas passadas



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 8 de agosto de 2015

ALICES E SEU PAÍS DAS MARAVILHAS



Lá vão as Alices em seu país das maravilhas, espalhando charme, perfumes importados, sorrisos e roupas finas. Lá vão as Alices em seu país das maravilhas, falando de suas viagens, de suas famílias perfeitas e de sua vida sem problemas. Lá vão as Alices em seu país das maravilhas, disputando quem é mais feliz.
Essas Alices vivem em seus mundos hermeticamente fechados, protegidas de todas as desgraças que assolam o mundo. Têm suas sociedades, suas igrejas, seus clubes, suas festas, tudo politicamente correto, limpo, de bom gosto e feliz.
Essas Alices sentem medo somente quando se lembram dos malvados pobres. Eles são bons à medida em que se calam e executam seu serviço sem reclamar. Se lhes servem comidinhas, lavam suas roupas, passam suas roupas, lavam seus carros, trabalham em suas casas e empresas, são muito bons, contanto que fiquem calados. Se abrirem o bico, tornam-se ameaçadores.
Essas Alices acham que tudo tem preço, até mesmo o silêncio desses pobres. Fazem jantares beneficentes,leilões, shows, com os quais, sem muito esforço, aliás, com muito prazer, angariam algum dinheiro, o que baste para manter os pobres quietos.
As Alices nunca sofrem. Afinal, elas têm dinheiro e dinheiro serve para isto: para poupar-lhes do sofrimento. O que chamam de sofrimento, os pobres bem chamariam de frescura. Nunca sofreram, nem sofrerão, enquanto tiverem dinheiro e viverem hermeticamente fechadas em seu país.
Exatamente porque nunca sofreram, não sabem o que é sofrimento, muito menos como lidar com ele. Quando o veem, ligam para a polícia, levantam o vidro do carro, mudam de canal, culpam o governo, isso quando não culpam quem sofre de ser desajuizado, desajustado, vagabundo e imprudente.
Vão por aí as Alices em seu país das maravilhas, com seus sorrisos fabricados por cirurgiões plásticos e seus olhares perversos. Ah, porque olhar não dá para ser corrigido por nenhum ponto de vista, por teorias, muito menos por cirurgia plástica.

"Quando andarem dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição" (S. Paulo).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

PAIS E HERANÇAS



Confesso que dia dos pais é um dia frustrante para mim. Eu perdi meu pai e não sou pai. Para mim essa data é angustiante: faz-me lembrar de uma perda irreparável e vem me lembrar que não sou pai.
Tive um pai formidável. Homem simples, muito simples. Tinha uma mercearia e ajudava muitas pessoas. O bairro era pobre, a inflação atormentava o país, ninguém tinha dinheiro para nada, o dinheiro não valia nada, e lá estava meu pai, vendendo fiado, facilitando os pagamentos e perdoando quem não o pagava, mesmo a contragosto de minha mãe. Com isso ele estava incutindo em mim a generosidade e o despojamento. Ao ler sobre a ética do comércio de Dr. Martinho Lutero, Comércio e Usura (1524), eu achei a princípio que ele estava sendo assaz utópico, até que me lembrei de meu pai: Homem extremamente ético.
Ele era semianalfabeto e escrevia muito mal. Quem preenchia os cheques eram seus próprios fornecedores. Ele apenas confiava em Deus e isso me parecia loucura, mesmo sendo eu um menino. Nem uma criança agiria com tanta imprudência. Mas Deus nunca permitiu que meu pai fosse roubado por alguém. Ele então me ensinou o que era correto até mesmo quando agia de maneira errada. Aprendi que a verdadeira confiança em Deus transforma qualquer coisa errada em santa, inclusive a imprudência. Pois que era a imprudência de meu pai senão autêntica fé em Deus?
Mesmo pobre, criou seus filhos dignamente e me formou médico.
Não era bom com palavras. Talvez por isso, e por ser muito humilde, atraía como ninguém as crianças. Ele próprio parecia uma criança.
Quando morreu, seu caixão foi seguido por uma numerosa multidão de pessoas simples, do próprio bairro onde viveu. Quem visse o cortejo acharia que alguém muito importante ou um político havia morrido. Mas era só meu pai, seguido por uma multidão de pessoas gratas a ele.
Há lágrimas em meus olhos, enquanto escrevo, porque perdi uma pessoa formidável e insubstituível. Tenho certeza que nunca encontrarei uma pessoa sequer parecida com ele.
Então me lembrei do valor da memória na construção de quem somos. Os pais continuam formando seus filhos mesmo depois de mortos, através da memória.
Por outro lado, há pais que continuam destruindo seus filhos mesmo depois de mortos, igualmente através da memória.
Um paciente me perguntou se eu era pai. Eu disse que não. Ele então me falou: "Tomara que você não venha a ser um pai como o meu. Ele também é médico e nunca me deu atenção". Como me compadeci dele ao ouvir essas palavras!
Pais, deixem boas recordações no coração de seus filhos. A melhor herança que vocês poderão legar são essas boas recordações. Encham seus filhos de memórias boas: presença, aconchego, ética, conselhos amorosos, sorrisos, olhares, prazer e segurança. Porque seus filhos continuarão fruindo essas recordações e aprendendo com elas, mesmo quando você estiver ausente.
Presentes materiais se vão com o tempo. Eu ainda tenho alguns brinquedos. Mas o que faço com eles hoje? Meu pai se esforçou sobremaneira para me formar médico. Trabalhava até aos domingos! Mas meu irmão é caminhoneiro e é tão feliz quanto eu. Portanto, o que me mantém até hoje, bem como aos meus irmãos, não são bens materiais, herança material, como diploma de medicina, por exemplo, mas a memória de muitas felizes horas de com-vivência.
Feliz dia dos pais!



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

CIDADE DE DEUS




"Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei" (Manuel Bandeira).

Existe um Reino não muito distante em que todos são amigos do Rei. Na verdade, todos são estimados pelo Rei como verdadeiros irmãos.
Nesse Reino, ninguém é melhor do que ninguém. Todos são pobres materialmente e ricos espiritualmente. Também ninguém é senhor de ninguém. Todos estão gratamente sujeitos ao Rei e voluntariamente sujeitos uns aos outros.
Ninguém é ocioso, nem falta trabalho. Todos executam a mesma missão em diferentes ofícios.
Também não há preocupação com salário. O Rei não permite que nada falte aos seus súditos e todos eles vivem satisfeitos. 
Não há individualidade, propriedade privada, heranças, moeda e comércio. Tudo é compartilhado pelos concidadãos de maneira muito responsável e digna. Quem ganha muito, distribui muito. Quem ganha menos, recebe mais.
Há somente duas leis nesse Reino: Amar a Deus e amar ao próximo. Todos sabem como proceder, julgam tudo e deliberam tudo de acordo com essas duas leis.
Quando alguém falha, não há julgamento nem condenação. Essa pessoa é aconselhada amorosamente por outra pessoa ou pelo próprio Rei e é sempre perdoada.Por isso mesmo, não há tribunal, nem juiz, nem cadeia, nem polícia.
Nesse Reino, o Rei é facilmente alcançado. Não há burocracia nem qualquer empecilho para falar com ele. O Rei não dorme, não se cansa, é tão humilde quanto um infante e está sempre disponível. 
Esse Rei também delega suas funções aos súditos, permitindo-lhes o aconselhamento e o perdão mútuos, em seu nome. Tal confiança ele tem em seus súditos, que lhes dá seu nome e autoridade para fazerem o que tem que ser feito.
Nesse Reino, os súditos são até chamados de reis, exatamente porque recebem do próprio Rei a dignidade e a autorização para executarem a sua vontade. Na verdade, todo o reino é constituído de reis.
O sistema religioso desse Reino é muito curioso. Todos são sacerdotes e servem seu Rei como único Senhor. Não há altares, nem templos, nem sacrifícios, nem rituais; somente fé, verdadeira gratidão e intimidade.
As crianças são muito valorizadas pelo Rei. Ele as chama para brincar consigo, reserva muito tempo para elas e leva a sério tudo o que elas dizem e querem, pois as considera fonte de sabedoria.
Esse Reino é peregrino em terras alheias. Assim como os curdos e os ciganos, os cidadãos desse Reino não têm, por enquanto, uma terra que seja sua. É um povo que tem nação, mas que peregrina por nações estrangeiras, fortalecido pela esperança. O Rei lhe é invisível, entretanto muito real e presente, caminhando com ele em direção à terra que lhe promete dar.
É um povo extremamente serviçal. Eles amam aqueles que os acolhem como a si mesmos e de bom grado os servem como se fossem seus irmãos. Respeitam a cultura, leis e governo dos lugares por onde peregrinam, como se fossem da terra. 
Não se importam em conceder sua cidadania a quem queira. Muito pelo contrário, andam pelos povos oferecendo essa cidadania e fazem-no como sua única missão. Diferentemente dos reinos que conhecemos, esse povo quer conceder sua cidadania aos pobres, vagabundos, doentes, moribundos, bandidos e outros imorais. Não querem chamar para si quem está bem alojado e satisfeito em sua terra. Eles querem aqueles que foram enjeitados por seu próprio povo.
Esse Reino geralmente não é benquisto pelas nações por onde passa, nem tanto interesse provoca nas pessoas, porque esse povo tem uma aparência pobre e parece estar desolado, sem pátria, governo e lei. O mundo o enxerga como verdadeira ralé. 
É triste constatar que um povo tão bondoso seja hostilizado por onde quer que passe, sem que haja um motivo claro para isso. Pacífico e resignado, sofre pacientemente as humilhações e de maneira esquisita gloria-se nelas. Ninguém consegue entender esse comportamento absurdo. É que se trata de povo humilde e muito fiel ao seu Rei, que lhes ordena amar seus ofensores.
Esse povo peregrina pelas nações, ajudando-se mutuamente. Quando alguém se cansa, todos o socorrem. Quando alguém desmaia, todos o carregam. Quando alguém se perde, o Rei deixa os demais súditos e vai atrás de quem se perdeu, esteja onde ele estiver. A fraqueza é valorizada como virtude. Não há inimizades, contendas e porfias entre eles; lobos e cordeiros pastam juntos e os leões comem palha com os bois.
O Rei é Deus do povo e seu herói. Ele mesmo retirou cada um de seus súditos de nações estrangeiras cujo sistema de governo era opressor. Livrou-os de muitos tiranos e pagou o preço de seu resgate. Não os furtou de seus reis, mas pagou o devido preço. É por isso que o povo ama tanto esse Rei. Eles sabem que são muito amados por ele e querem sempre retribuir esse amor através do amor. Nesse Reino, o respeito à única autoridade não é fruto de lei e espada, mas resultado do amor. Todos sabem quem foram e de que opressor foram tomados.
Reino estranho esse. Ninguém, absolutamente ninguém, nasceu nele. Ele todo é constituído de pessoas que pertenceram a outros reinos e foram de lá tomadas pelo Rei. Não se casam, nem se dão em casamento, mas vivem todos uma relação livre de amizade e afeto. Não geram filhos, mas os recebem de outras nações, pelas mãos do próprio Rei. 
Esse Reino é constituído de nobres soldados que não utilizam armas visíveis. A propósito, é o único exército no mundo que não utiliza armas visíveis. Eles vencem todas as batalhas através da firme confiança em seu Rei, que chamam de fé. Quem trata diretamente com os tiranos e os destrói é o seu Rei. E assim como esse Rei é invisível, seu modo de agir contra a tirania é invisível.
Todos nesse Reino sabem que seu Rei é o único Deus e, portanto, senhor de tudo, até das nações por onde peregrinam. Por isso avançam confiantes, sem armas corporais, porque sabem que seu Rei é forte, dono de tudo e os defende perante os opressores.
Homens que são, todos morrem e são sepultados no país de sua peregrinação. Entretanto, seu Rei recolhe zelosamente as suas almas como tesouro de valor inestimável e as oculta em seu coração. No dia derradeiro, essas almas voltarão aos seus corpos para poderem habitar seu verdadeiro país. Todos nesse Reino têm ciência disso e com isso se confortam. 
Diferentemente de Pasárgada, esse Reino existe e está bem perto de você. Na verdade, não há lugar no mundo onde esse Reino não esteja implantado. Se você não procurar esse Reino, esteja certo que, mais cedo ou mais tarde, esse Reino irá ter com você. Quando esse dia chegar, saiba que esse povo é todo constituído de pessoas que não nasceram nele e que seu Rei não faz acepção de pessoas. Portanto, haverá lugar para você também, caso queira.

"Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós" (Lucas 17:20-21).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.