sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O LUGAR DA MÍSTICA NA IGREJA LUTERANA - PARTE 1


Representação alegórica da Santa Ceia ou Eucaristia luterana. O sangue de Cristo, que escorre de Suas feridas na cruz diretamente para a fonte sobre o altar, simboliza a doutrina da presença real: para a Igreja Luterana, o Cristo inteiro (corpo e espírito) está presente no Sacramento da Eucaristia.

A relação entre o Luteranismo e a mística sempre foi uma questão controversa, indo desde a aceitação relativa até a rejeição completa. Essa ambiguidade remonta ao pensamento do próprio Lutero, que, se por um lado criticou abertamente luminares da mística cristã, como São Dionísio Areopagita e São Boaventura [1], por outro foi responsável pela publicação e divulgação do tratado místico conhecido como Theologia Germanica. A presença de símbolos típicos da literatura mística medieval também é um traço marcante nas obras do reformador. Por exemplo, nesse trecho do Tratado sobre a liberdade cristã, Lutero descreve a união entre Cristo e a alma nos termos de um “noivado místico”, simbolismo constante na literatura cristã antiga e medieval desde a época de Orígenes:

[...] a alma é copulada com Cristo como a noiva com o noivo, sacramento pelo qual (como ensina o apóstolo) Cristo e alma são feitos uma só carne. Sendo eles uma carne, é consumado entre eles o verdadeiro matrimônio, sim, o mais perfeito de todos, enquanto os matrimônios humanos são figuras tênues desse matrimônio único. Daí se segue que tudo se lhes torna comum, tanto as coisas boas quanto as más, de modo que a alma fiel pode apropriar e gloriar-se de tudo que Cristo possui como sendo seu, e de tudo que tem a alma Cristo se apropria como se fosse seu.” [2]

Como se pode ver, o relacionamento de Lutero com o legado da espiritualidade medieval era mais complexo do que se poderia imaginar à primeira vista. Longe de querer fazer tabula rasa da tradição mística católica-romana, seu objetivo era adaptar os símbolos e temas dessa tradição para o contexto de uma espiritualidade que não fosse mais monástica e ascética, mas que pudesse ser vivenciada em meio às preocupações mundanas. Para isso, em contraste com o training espiritual que caracteriza a mística católica-romana e ortodoxa, Lutero enfatiza a simplicidade e a espontaneidade evangélicas. A ascese se concentra no “templo interior”, morada do Espírito Santo, e não tem necessidade de se exteriorizar por meio de votos monásticos, celibato, etc.. No entanto, se Lutero abriu as portas para a possibilidade de uma mística acessível a todo cristão de boa vontade, esses novos horizontes também trouxeram consigo novos desafios. Afinal, se o monasticismo foi a instituição responsável pela consolidação e florescimento da mística cristã, como seria possível que ela se manifestasse fora dos muros dos mosteiros? Não podendo mais se amparar nas práticas ascéticas que dão o tom da mística católica-romana, a espiritualidade luterana se fundamenta na leitura bíblica, na oração e na participação na vida sacramental da Igreja. Como já notamos acima, existe no Luteranismo uma tendência ao despojamento, uma redução da espiritualidade ao seu núcleo essencial, que também se manifesta na simplicidade dos suportes externos para o processo de santificação. O primeiro deles, a leitura bíblica, se mostra de forma evidente desde o início da Reforma Luterana. Como se sabe, a leitura do texto da Epístola aos Romanos provocou um impacto duradouro na alma de Lutero e estimulou o início de sua atividade reformadora. Muito mais do que um compêndio de doutrinas, o texto bíblico, para ele, era fonte de profundas intuições espirituais:

“Pois o que para nós é ‘o bem’ está oculto, e tão profundo que vem a ficar justamente debaixo do que é o contrário do ‘bem’. Assim, nossa vida está escondida sob a morte, o amor a nós sob o ódio a nós, a glória sob a ignomínia, a salvação sob a perdição, o reino sob o desterro, o céu sob o inferno, a sabedoria sob a insensatez, a justiça sob o pecado, o vigor sob a debilidade. E assim, de forma muito geral, toda nossa afirmação de um bem qualquer está oculta sob a negação do mesmo, a fim de que a fé encontre seu lugar em Deus, o qual é de uma essência, bondade, sabedoria e justiça totalmente distintas, e que não pode ser possuído nem tocado por homem algum, a não ser que neguemos todas as nossas afirmações. De tal sorte, ‘o reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo’ (Mt 13:14). O campo é algo que tem a ver com a sujeira. É o contrário do tesouro, porque o campo é pisoteado, mas o tesouro é escolhido. E, não obstante, o campo esconde o tesouro. Assim também a nossa vida ‘está escondida com Cristo em Deus’ (Col. 3:3), ou seja, na negação de tudo quanto se possa sentir, possuir e entender.” [3]

Nesse trecho, retirado do Comentário aos Romanos de 1515-1516, podemos ver como Lutero se apropria e transforma um dos temas mais importantes da mística cristã, a teologia negativa. Para ele, Deus só pode ser conhecido pela negação de todas as nossas afirmações. Porém, esse Deus absconditus não é a “divindade superior à divindade” de Dionísio Areopagita, o Deus inefável transcendente ao Ser e à linguagem. O “Deus oculto” é o Deus que se esconde sob o Cristo na cruz, que encobre a glória sob a ignomínia, o vigor sob a debilidade, a vida sob a morte. Toda a vida de Cristo na terra é uma ocultação de Sua glória, que só pode ser apreendida pela fé, a “negação de tudo quanto se possa sentir, possuir e entender”. Se o monge experimenta o contato íntimo com Cristo por meio de uma vida de privações, para Lutero a fé é suficiente para descobrir o Cristo glorioso por baixo do Cristo humilde e desprezado [4]. Daí a importância que a Bíblia assume na espiritualidade luterana: se a fé deve se apropriar do Cristo, a Escritura Sagrada é o lugar por excelência para encontrá-lo.
Segundo pilar, a oração, inclui não só as petições individuais, mas também as orações canônicas (o Pai Nosso e os salmos) e também as orações jaculatórias, que nunca deixaram de ter o seu lugar na prática espiritual luterana [5]. Nesses dois últimos casos, a oração não se articula a partir de palavras escolhidas a esmo pelo homem, mas a partir da linguagem do próprio texto sagrado ou a partir do nome divino, como acontece com a Oração de Jesus. Ocorre, assim, um descentramento, que é a grande vantagem das preces canônicas e jaculatórias em relação à prece individual: ao invés de se concentrar em seus próprios interesses particulares, o fiel permanece totalmente passivo diante da Palavra divina, disposto a ser moldado por ela. 
Por fim, a terceira baliza da espiritualidade luterana é a participação na vida sacramental da Igreja. O Cristianismo não é uma religião individualista: o cristão é chamado a fazer parte da vida comunitária da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Como tal, a Igreja é também beneficiária da vida divina do Cabeça, a qual é distribuída aos fiéis por meio dos sacramentos [6]. Assim, no sacramento do batismo, o crente inicia sua vida cristã unindo-se ao Cristo; no sacramento da Santa Ceia, o crente consolida seu crescimento espiritual reafirmando essa união. Assim, a leitura individual da Palavra escrita, a Bíblia, é equilibrada pela participação na Palavra encarnada, a Santa Ceia.
É a partir desse tripé que a espiritualidade luterana se desenvolve e, com ela, a possibilidade da experiência mística, compreendida aqui como uma interpretação e uma vivência mais profundas da Bíblia, da oração e da vida na Igreja. Nos próximos posts dessa série, veremos como isso se realizou historicamente dentro do Luteranismo.

Autoria: Rodrigo Moreira de Almeida


NOTAS:
[1] Numa das Conversas à mesa, Lutero chama a teologia mística de São Boaventura de “fantasia inútil”. Já a mística de São Dionísio Areopagita é acusada de ser “uma mera fábula e mentira”.
[2] Obras selecionadas de Lutero, Vol. 2: o programa da Reforma: escritos de 1520. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, p. 442.
[3] Comentarios de Martin Lutero: Romanos. Barcelona: Clie, vol. I, pp. 309-310.
[4] Podemos ampliar essa interpretação a partir da referência de Lutero à parábola do “tesouro escondido” (Mt 13:14): o campo representa a terra, que, na cosmologia antiga, era considerado o elemento mais baixo e mais inferior. Entretanto, é dentro dele que está oculto o tesouro, isto é, o ouro, o mais nobre dos metais e também um símbolo da glória divina, que é descoberta pela fé. Por outro lado, essa analogia também corresponde à tendência da espiritualidade luterana de buscar no mundo (e não fora dele) o ouro escondido da santidade.
[5] O Pai Nosso e alguns salmos são parte integrante da liturgia do culto luterano. Sobre as orações jaculatórias, veja o texto de Carlos Alberto Leão sobre o terço luterano, neste mesmo blog: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/08/o-terco-luterano.html .
[6] Embora não seja um sacramento, a pregação pública da Bíblia também é um meio instituído por Deus para dispensar Sua graça aos homens. Por esse motivo, a Igreja é definida no artigo VII da Confissão de Augsburgo como “a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho.”


sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O MONERGISMO E OS SACRAMENTOS - PARTE 3


Para fins didáticos, vou abordar somente os sacramentos que constam da Confissão de Augsburgo, ao analisar a problemática do sinergismo nos sacramentos. Repito que não concordo com a Confissão de Augsburgo ao estabelecer três sacramentos, por não haver respaldo bíblico para isso. Minha convicção é que toda obra verdadeiramente cristã é sacramento. Mas para fins didáticos, irei discorrer sobre os três sacramentos citados ali: Batismo, Eucaristia e Penitência. 
O Batismo é obra de Deus. Somos batizados em sua Promessa: "Quem crer e for batizado será salvo" (S. Marcos 16:16). A eficácia do Batismo ocorre em nossa vida quando cremos na Promessa: "Quem crer e for batizado será salvo". Distanciamo-nos do Batismo e tornamo-lo ineficaz quando descremos nessa Promessa. A Promessa vem de Deus, assim como a fé nessa Promessa. Em nada contribuímos para que o Batismo seja Batismo. A essência dele está na fé, que é dádiva e milagre de Deus.
Então devemos olhar para alguns costumes que introduzem o sinergismo no Batismo, obscurecendo a graça de Deus. Por exemplo, muitos afirmam que crianças não podem ser batizadas, pois são incapazes de crer. Somente adultos, que podem crer, devem receber o Santo Batismo. Bem, se fé é obra exclusiva de Deus em nós, não podemos condicionar essa obra de Deus a uma incapacidade nossa, pois Deus é o Deus dos incapazes. Não só as crianças são incapazes de crer, como adultos também. Ninguém tem condições de crer. No entanto, os "impossíveis dos homens são possíveis a Deus" (S. Lucas 18:27). É Deus quem opera a fé no coração humano, tanto em adultos quanto em crianças, sem qualquer colaboração nossa. Isso é monergismo! A partir do momento em que condicionamos a eficácia do Batismo à profissão de fé do adulto, estamos colocando uma obra nossa, que é a capacidade intelectual de professar a fé, como colaboradora na eficácia do Batismo. Então deslizamos da justificação somente pela fé e do monergismo para a justificação por obras e para o sinergismo.
Quanto à Eucaristia, detectamos o sinergismo em pelo menos três situações. Na primeira, a Igreja colabora no sacrifício de Cristo com os seus próprios sacrifícios. Então a Eucaristia se transforma em sacrifício de obras, em Lei. Na segunda, a Igreja realiza a Eucaristia através do ministério. O poder conferido ao presbítero de "oferecer sacrifício na Igreja pelos vivos e pelos mortos" colabora com Deus para validação da Eucaristia. De acordo com essa opinião, somente o presbítero pode consagrar a Eucaristia devido a um poder que lhe foi conferido, por ocasião de sua ordenação. Então o presbítero se torna peça-chave para que a Eucaristia suceda. Sem esse poder é impossível que haja verdadeira Eucaristia. Na terceira, o homem colabora com a validade da Eucaristia através do "discernimento do corpo de Cristo" (1 Coríntios 11:28-29), entendido erroneamente como compreensão intelectual do que ocorre na Eucaristia, razão pela qual as crianças são excluídas do sacramento. Somente quem está na "idade da razão" teria condições de participar dignamente do sacramento, considerando que é necessária a capacidade de intelectualmente discernir o corpo de Cristo.
Nós, luteranos, confessamos que o próprio Cristo consagra os elementos eucarísticos e os distribui, através do homem investido do ministério. Cristo opera o sacramento por meio do ministério da Igreja e não em virtude da pessoa. O ministro não tem poder algum que lhe permita consagrar os elementos. Cristo poderia muito bem usar qualquer cristão para consagrar os elementos e distribuí-los. Entretanto, ele se serve do ministério por uma questão de ordem e decência (1 Coríntios 14:27-28). Cristo não quer que todos preguem. Ele não quer que todos ministrem os sacramentos. Então, por uma questão de ordem e decência na Igreja, ele designou para isso o ministério. Mas não conferiu a esse ministério um poder especial de sacrificar. Isso é invenção dos homens.
Que a Igreja não pode auxiliar o sacrifício de Cristo com os seus próprios sacrifícios e méritos, isso é por demais evidente. A Igreja não tem qualquer mérito além dos de Cristo, também é incapaz de oferecer a Deus qualquer sacrifício, exceto o louvor. Cristo realizou a obra expiatória sozinho, sem participação ativa da Igreja. A participação da Igreja no sacrifício de Cristo é absolutamente passiva
Por fim, crianças podem participar da Eucaristia. Não há qualquer impedimento bíblico quanto a isso. Quando S. Paulo diz: "Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e, assim, coma do pão, e beba do cálice; pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si" (1 Coríntios 11:28-29), ele não está condicionando a eficácia da Eucaristia à capacidade intelectual de confessar o que nela ocorre. Ele está claramente denunciando abusos cometidos contra o sacramento, decorrentes de impiedade. Ele ameaça com o juízo de Deus todos os incrédulos que participam da Eucaristia. Ora, as Escrituras nos ensinam que as crianças creem, mesmo não tendo condições intelectuais de confessar sua fé (Salmo 22:10; São Mateus 18:6). Ao nos ensinar que devemos ser como as crianças para entrar no Reino de Deus, Jesus nos revela que as crianças creem até mais que os adultos (S. Lucas 18:17), sendo-lhes modelo. Portanto, não há impedimento bíblico para admissão de crianças ao Sacramento do Altar. Ao ser questionado quanto a se mudos podiam participar da Eucaristia, Lutero deu a seguinte resposta: "De São Cipriano, o santo mártir, lemos que permitiu que se desse a crianças ambas as espécies, em Cartago, quando era bispo; mesmo que agora esse [costume] tenha se perdido por outros motivos. Cristo ordenou que as crianças viessem até ele, não permitiu que alguém as impedisse; da mesma maneira, não negou seu benefício a mudos, cegos ou coxos. Por que seu sacramento não deveria ser dado também àqueles que o desejam de coração e cristãmente?" (Um Sermão a respeito do Novo Testamento, isto é, a respeito da Santa Missa). Veja que Lutero é favorável à inclusão de deficientes físicos à Eucaristia e cita a participação digna de crianças como argumento. A admissão de crianças à Eucaristia é um costume da Igreja antiga, preservado até hoje pelas igrejas orientais. Ir contra essa tradição inevitavelmente resultará em sinergismo. 
O Sacramento da Penitência consiste, de acordo com a tradição da Igreja, em três obras: contrição, confissão e satisfação. Contrição é a tristeza da alma provocada pelo pecado. Confissão é a enumeração dos pecados ao ministro. Satisfação é a pena eclesiástica prescrita ao penitente, para que este repare o seu erro, aprenda com ele e para testar a sinceridade de sua contrição. Quando não bem compreendidas, essas três obras deixam de ser expressão receptiva da fé para se tornarem obras ativas da Lei, por meio das quais se pretende colaborar com Deus na remissão dos pecados. 
Na contrição, o sinergismo acontece quando se exige determinado grau de tristeza por parte do penitente. Isso é causa de profunda incerteza, porque nunca teremos condições de saber se estamos suficientemente contritos para obtenção do perdão. Quando se sujeita o perdão à contrição, a alma não pode mais confiar na Promessa de Deus: "tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus" (S. Mateus 18:19). Ela terá que confiar na qualidade da contrição, o que é muito perturbador. 
Na confissão, o sinergismo ocorre quando se condiciona o perdão do pecado à sua nomeação ao ministro. Então é necessário que uma das duas coisas aconteça: terei de empobrecer meu conceito de pecado, de maneira a considerar pecado somente o que é feito conscientemente contra a Lei, à maneira dos judeus e muçulmanos, ou entrarei em desespero, nunca achando que confessei todos os pecados, com risco de não ser perdoado. 
Na satisfação, o sinergismo se dá quando o homem se sente merecedor do perdão por meio do cumprimento de alguma obra da Lei. Justificação por obras! Judaísmo do começo ao fim. É com base na satisfação que a Igreja de Roma inventou os méritos supererrogatórios.
Percebemos então que os sacramentos só serão sacramentos quando forem monergistas. Permanecerão sacramentos em sua natureza, em si mesmos, mas deixarão de ser sacramentos para mim se não houver em mim a fé que vem de Deus. Não a fé intelectual ou histórica que eu mesmo posso fabricar, mas a fé que vem de Deus, o milagre que nos salva. 
É Deus quem dá o Evangelho, a fé no Evangelho e a Justiça da fé. É Deus quem dá o sacramento. Não produzo o sacramento, nem mesmo a Igreja. É Deus quem o produz e dá, sem mim. A mim cabe recebê-lo em fé.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O MONERGISMO E OS SACRAMENTOS - PARTE 2


O maior perigo oferecido pelo sinergismo, que o torna inaceitável, não é a questão filosófica envolvida. O maior perigo do sinergismo está no fato de ele ser incompatível com a doutrina da justificação somente pela fé, sem as obras da Lei. Quando alguém se propõe a manter a justificação somente pela fé sem abrir mão do livre-arbítrio, inevitavelmente transforma a fé em obra humana. Então o homem não é mais justificado por uma obra de Deus, mas por uma obra sua ou parcialmente sua. Aprendi com a Lei que qualquer coisa do âmbito espiritual que depender de mim, ainda que parcialmente, está fadada ao fracasso.
A questão da justificação somente pela fé é gravíssima. Lutero, com toda a propriedade, reiteradas vezes afirmou que se o homem for justificado por obras, mesmo que por uma só! a Igreja já não é Igreja, mas sinagoga. Já não haverá diferença entre um cristão, um judeu e um muçulmano. Por isso, a doutrina da justificação somente pela fé, sem as obras da Lei, é a doutrina mais importante do cristianismo, que devemos defender, se preciso for, com o nosso sangue. Por essa doutrina todo cristão tem que empenhar-se até o martírio, não havendo nada mais importante no cristianismo que ela. 
Como ensinou S. Paulo, quem deseja ser justificado por uma obra da Lei terá que, necessariamente, cumprir a Lei toda (Gálatas 5:3). Ele clama: "De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na Lei; da graça decaístes" (Gálatas 5:4).
Uma vez estabelecida na mente de todos a diferença entre monergismo e sinergismo, bem como a incompatibilidade entre fé e sinergismo, é hora de ir ao ponto: os sacramentos.
Os sacramentos estão intimamente ligados à justificação somente pela fé. Não posso falar de sacramentos sem falar de fé no Evangelho. Os sacramentos são fé real no Evangelho. Através deles, a fé deixa de ser especulativa para tornar-se realidade. Lutero ensinou que não somente a Eucaristia, Batismo e Penitência são sacramentos, mas tudo aquilo que torna nossa fé real, como perdoar ao próximo e orar. Para ele, toda obra verdadeiramente cristã é um sacramento. Tudo aquilo que faço por fé no Evangelho é sacramento. Tudo aquilo que transforma a fé especulativa em realidade é sacramento. Tudo aquilo que obriga a fé a deixar de ser conceitual é sacramento. É dessa maneira que entendo o Baptismus sanguinis, em que a obra do martírio é um verdadeiro sacramento ou Batismo, pois, por meio do martírio, a fé no Evangelho se torna real. Lutero: "Pois aí não está esquecida a fé; ele toma essa obra [perdoar ao próximo] e a dota de uma promessa, de modo que se poderia chamá-la com boa razão de sacramento para fortalecer a fé (...). Da mesma forma, também nossa oração, como obra nossa, nada valeria nem efetuaria qualquer coisa; o que, porém, a faz [valer e efetuar algo] é o fato de ela ter seu mandamento e promessa, de modo que também pode muito bem ser considerada um sacramento, mais obra divina do que obra nossa (...). Ora, Deus nos apresentou diversas maneiras e caminhos para nos apropriarmos da graça e do perdão dos pecados. Em primeiro lugar, o Batismo e o Sacramento [do altar], depois, (como acabamos de expor) a oração, depois, a absolvição e, neste caso, o perdão, para que estejamos abundantemente providos(...). Como poderia Deus ter-nos agraciado mais ricamente do que pendurando em nosso pescoço um Batismo tão comum, inserindo-o no Pai nosso, Batismo este que cada um encontra em si próprio ao orar e perdoar a seu próximo?" (Dr. Martinho Lutero, Prédicas Semanais sobre Mateus 5-7, Tradução: Ilson Kayser). Portanto, a essência de todo sacramento é a fé no Evangelho, na Promessa de remissão gratuita dos pecados. A fé no Evangelho constrói os sacramentos.
Se a essência dos sacramentos é a fé no Evangelho, toda vez que um sacramento é espoliado da fé, perde sua essência e deixa de ser. Como a fé é obra exclusiva de Deus em nós, não sendo, sob hipótese alguma, uma obra nossa, somos obrigados a igualmente confessar que um sacramento não pode depender de nós para ser o que é. É Deus que estabelece o sacramento ao nos dar o Evangelho e ao nos conferir a fé nesse Evangelho. Sem Deus, não há Evangelho, nem fé, mas apenas Lei, pecado e perdição. Logo, o sacramento deve ser entendido no contexto do monergismo, caso contrário não é sacramento, mas obra humana, obra da Lei e perdição eterna.
Ah, então vocês, luteranos, são favoráveis à doutrina romana do ex opere operato, que ensina serem os sacramentos sempre eficazes, independentemente da fé de quem o oficia e de quem o recebe? Bem, somos favoráveis a metade da afirmação. Acreditamos que o sacramento é efetuado por Deus através do ministério, através da pessoa investida do ministério, e não em virtude da pessoa. É por isso que muitos ímpios haverão de dizer a Jesus, no Dia do Juízo: "Senhor! Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em seu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?" Ao que Jesus responderá: "Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade"(S. Mateus 7:22-23). Por meio do ministério de Judas Iscariotes, Deus pregou, batizou e curou. Então Deus salva até por meio de ímpios, servindo-se do ministério da Igreja. Entretanto, sem fé por parte de quem recebe o sacramento, não pode haver eficácia alguma, pelo simples motivo que o sacramento é fé concreta no Evangelho. Eu posso ter o próprio Cristo diante de mim, mas se não crer nele, de nada ele me valerá. Em outras palavras, o Evangelho é eficaz em si mesmo, mas não no incrédulo. Também as boas obras, que são sacramentos diários, não têm valor algum e são pecados mortais quando praticadas sem fé no Evangelho. São Paulo chama de condenação e veneno a Eucaristia que é consumida sem fé (1 Coríntios 11:28-30).
Resumindo: o sacramento é fé concreta no Evangelho. O Evangelho vem de Deus, assim como a fé. A essência do sacramento é fé. Não havendo fé, não há sacramento, mas impiedade. Veja então que sacramentos, justificação somente pela fé e monergismo são doutrinas que se pertencem.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O MONERGISMO E OS SACRAMENTOS - PARTE 1

"Ao SENHOR pertence a salvação" (Jonas 2:9).
"Porque Deus a todos encerrou  na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todos" (Romanos 11:32).
"Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Filipenses 2:13).


Quero começar com uma pergunta: A justificação é algo que Deus opera sozinho, que nós operamos sozinhos ou colaboramos com Deus?
Para o mundo, onde Deus não tem mais espaço, a justiça é algo inteiramente humano. Justo é aquele homem propenso à justiça ou é aquele homem que pratica a justiça, que habituou-se a ela. É claro que, para o mundo, não há outra justiça senão a exterior. Ninguém é considerado injusto porque sente inveja, rancor, movimentos íntimos libidinosos ou porque despreza a Deus. Nada disso torna um homem injusto perante a sociedade, mas somente a desobediência às suas leis. Religiões pagãs também acrescem às leis civis suas próprias leis, porém não requerem nada do homem justo além de obras exteriores de justiça. É assim que um ateu, um espírita, um budista, um muçulmano e um judeu são justificados: obras exteriores os justificam. 
Na Igreja, porém, não podemos dizer que a justiça é obra exclusivamente humana. Conhecemos a amplitude do pecado e a amplitude da justiça. Sabemos que o homem não pode tornar-se justo apenas por intermédio de obras exteriores, pois o homem verdadeiramente justo não cobiça nada, não sente rancor, ama o próximo como a si mesmo, ama a Deus sobre todas as coisas e nunca busca o seu próprio interesse. Ora, o homem tem controle sobre os seus membros, de maneira a evitar pecados exteriores, mas é incapaz de dominar seus sentidos e seu coração. Isso porque o homem é mau e injusto por natureza. A bondade para o homem não é fruto da natureza, mas de esforço e disciplina. Portanto, a Igreja sabe que é impossível a justiça sem a participação de Deus.
É então que entram duas maneiras de enxergar a justificação: Deus opera a justiça no homem sem o homem, ao que chamamos de monergismo, ou o homem colabora com Deus, ao que chamamos de sinergismo. 
No monergismo, Deus opera a fé no homem caído. Por meio dessa fé, o homem é tornado justo por Deus. A fé, que é obra divina no homem, apropria-se de Cristo e de tudo o que ele é e tem. A justiça perfeita de Cristo é então comunicada ao homem que dele se apropriou por meio da fé. Em outras palavras, Cristo é tornado nosso através da fé. Se ele é nosso, sua justiça é transferida para nós. Por isso, somos tornados justos ou somos justificados no momento em que cremos. 
No sinergismo, é defendido que o homem não está tão inteiramente corrompido pelo pecado que não possa colaborar com Deus através da vontade. Os defensores do sinergismo falam do livre-arbítrio, em que o homem colabora com Deus em sua justificação quando decide por Deus. Então nós decidimos por Deus, que intervém com sua graça, ajudando-nos a crer e a amar. A justiça viria como resultado de um esforço conjunto do homem com Deus. 
A ideia de sinergismo parece mais razoável. Ela combate o relaxamento moral dos que dizem crer, salvaguarda a responsabilidade humana no pecado e a graça universal. Também protege o princípio racional do livre-arbítrio ou da liberdade inerente ao homem.
No entanto, as Escrituras deixam claro que o homem não pode decidir por Deus sem Deus. O homem é profundamente mau e rebelde contra Deus. Mesmo quando faz o que é reto, busca seus próprios interesses e despreza a Deus. Quando Deus o interpela em sua presunção, ele se volta cheio de ódio. Prefere as sombras da hipocrisia à luz da verdade. Ele mesmo inventa seu próprio deus, que o aceite da maneira como é, que exija dele somente o que ele pode dar. 
O homem é incapaz de ter um sentimento puro sequer. Tudo o que ele pensa e faz está contaminado pela autossuficiência, pela soberba, pelo desamor e pela rebeldia contra Deus.
Como disse S. Paulo: "Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus" (Romanos 3:9-12, 19). Também: "E ainda não eram os gêmeos [Esaú e Jacó] nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela [Rebeca]: O mais velho será servo do mais moço. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia" (Romanos 9:11-12, 16). 
Em assuntos espirituais, o homem é tão inapto quanto um morto (Efésios 2:10). Portanto, não é possível ao homem colaborar com Deus, a não ser que Deus o transforme primeiro. Somente quando o homem é mudado por Deus ele pode responder a esse Deus.
Embora a razão natural seja, na melhor das hipóteses, sinergista, as Escrituras são monergistas. A fé é dom de Deus (Efésios 2:8). É Deus quem cria a fé no homem, sem participação do homem, por meio do Evangelho. Essa mesma fé apropria-se de Cristo e de sua Justiça, tornando o homem tão justo quanto Cristo. Essa fé também transforma toda a natureza humana, fazendo com que ela se volte para Deus. Então é Deus que transforma o não querer em querer, a rebeldia em obediência e o ódio em amor, quando opera a fé na alma humana. O homem só pode desejar Deus de fato quando é agraciado pela fé, justificado por ela e transformado por ela. Assim, só é possível falar que o homem decide por Deus quando esse homem recebe antes a fé e é inteiramente modificado por ela. 
Toda vez que as Escrituras chamam o homem à conversão, a decidir-se por Deus, a escolhê-lo, elas chamam àqueles que creem, àqueles que receberam a fé de Deus e foram transformados por ela. O homem incrédulo jamais pode atender a esse chamado. Muito pelo contrário, quando o incrédulo é chamado à conversão, este responde com uma fé intelectual, com uma conversão de fachada e com justiça exterior. O que é tudo isso senão a mais terrível rebeldia contra Deus? Faz-se Deus de bobo! Logo, o homem, quando se propõe a ser de Deus, mais demoníaco ele se torna. Como disse Jesus: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia" (S. Mateus 23:27). 
"O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito" (S. João 3:6). Nascer do Espírito significa nascer do Espírito. Ninguém delibera nascer. São nossos pais que decidiram por nosso nascimento e em nada contribuímos para isso.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.