sábado, 30 de abril de 2016

CULTOS RESSURRETOS

"Eu sou a videira verdadeira, vós os ramos. Quem permanecer em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer" (S. João 15:5).



Páscoa é vida! Durante sete semanas somos convidados a refletir sobre a vida que desfrutamos graças ao Deus que vive por nós e em nós. Deus está vivo, é fonte de vida e está conosco, de maneira muito mais íntima que a videira a seus ramos.
O culto a esse Deus deveria expressar essa profunda comunhão, pois é Deus visitando seu povo, doando-se a ele, pois para isso tornou-se carne. O culto cristão é essencialmente anamnesis. É na anamnesis que está a vida e ressurreição de Deus no culto cristão, diferenciando-o de qualquer outro existente.
Cada vez mais a presença de Deus no culto está sendo obscurecida pela razão humana. O culto tem sido cada vez mais intelectualizado, de maneira que, em muitos lugares, não passa de simples reunião onde se ouve falar de um Cristo histórico, onde se cultua um Deus incorpóreo e transcendente. A pregação há muito assumiu a forma de palestra e a fé na Palavra degenerou-se em aceitação intelectual do que é ensinado. Cristo não é mais comungado, mas somente seus símbolos: pão e vinho. Ele está tão longe que só podemos apreendê-lo através de símbolos.
Por outro lado, tem aumentado o apelo aos sentimentos, à experiência emocional com Deus, reforçando o princípio racional de que o Deus humanado não está presente no culto, mas somente o Deus não encarnado, com o qual nos relacionamos emocionalmente, extaticamente, fora do corpo. 
Perdoe-me a franqueza, mas Cristo não está mais no meio de seu povo de fato, mas só conceitualmente. Ele foi substituído pelo Espírito Santo, que nos fala dele como de alguém que está distante de nós. Qualquer relação com esse Deus deverá ser fora do corpo, intelectualmente ou extaticamente, não havendo muito espaço para a fé. Aliás, a fé está em vias de se transformar em superstição.
Um dos muitos motivos que têm levado o povo a desinteressar-se dos cultos é a falta do homem Jesus.
Cristo disse: "As palavras que eu vos tenho dito são ESPÍRITO  e são VIDA" (S. João 6:63). Cristo vem misticamente ao encontro de seus fiéis em cada celebração de sua ressurreição. Quer encontrar-se com seus irmãos, pessoalmente absolvê-los de seus pecados, instruí-los, consolá-los e cear com eles. Sua pregação não é um discurso intelectual e frio, mas "espírito e vida", que faz arder os corações (S. João 24:32).
Há quem acredite que Jesus está no Céu, distante de nós, tendo deixado como seu substituto o Deus Espírito Santo. Mas afirmo, com toda a convicção, que o Espírito Santo jamais substituiria o homem Jesus. A função do Espírito Santo é nos "fazer lembrar de tudo o que vos tenho dito" (S. João 14:26). O Espírito Santo traz à fé o homem Jesus, o mesmo que andou neste mundo visivelmente há dois mil anos atrás. A Bíblia diz que o homem Jesus foi OCULTADO da vista dos discípulos por uma nuvem (Atos 1:9). Ela não ensina que ele nos deixou, antes encontramos nela as seguintes promessas: "Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles" (S. Mateus 18:20) e "eis que estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos" (S. Mateus 28:20).
Jesus está presente no culto. Ele nos absolve dos pecados da mesma maneira como absolveu a adúltera. Ele nos prega da mesma maneira como pregou às multidões. Ele está conosco à mesa, parte o pão e entrega o cálice, da mesma forma como o fez na última páscoa. É ele quem nos batiza, quem nos abençoa e envia. Nossos olhos veem um simples ministro, um pobre pecador, indigente como qualquer um de nós, mas é o homem Jesus quem faz tudo através dele. O homem Jesus não é visível, mas está verdadeiramente presente, segundo sua Promessa.
A função do Espírito Santo é trazer-nos o noivo e preparar-nos para o banquete. É ele quem nos permite estar com o homem Jesus, desfrutar sua presença e nutrir-se dele de fato, ainda que não o vejamos. Ele é nossa verdadeira comunhão com o homem Jesus, pois desfaz qualquer barreira material ou imaterial que nos separa dele. Enfim, ele opera a anamnesis
Com o homem Jesus temos uma experiência. A vida do culto repousa nessa experiência com o Jesus ressurreto. O mesmo Jesus que visitou S. Tomé e os outros discípulos hoje nos visita a cada celebração e chama-nos de bem-aventurados, porque não o enxergamos, mas cremos que está presente. Bem-aventurados porque temos o consolo de saber que ele ressuscitou, que está entre nós, que continua pregando, perdoando e doando seu corpo e sangue para a remissão de nossos pecados. Bem-aventurados porque ele pessoalmente nos assiste em nossas fraquezas, pois não delegou essa função aos livros, à memória humana, à teologia, à oratória, nem mesmo ao Espírito Santo. 
Jesus é a videira que nutre os ramos. É dele que recebemos a vida e a capacidade de frutificar. Se os ramos estiverem desconectados da videira irão evidentemente secar. Por outro lado, não devemos crer numa ligação puramente espiritual, pois os ramos estão corporalmente conectados à videira e dela recebem a seiva material. Não há qualquer intermediário entre a videira e seus ramos. Aliás, a videira prolonga-se através dos ramos.
Quão bem essa metáfora sintetiza nossa relação com o homem Jesus! Nossa vida é extensão de sua vida. Ele vive em nós! Enquanto isso, um mesmo Espírito Santo passa da videira para os ramos, mantendo essa comunhão.
Nossos cultos precisam pôr em evidência essa comunhão de nossa humanidade com a humanidade de Cristo, vencer todas as distâncias que nos separam do homem Jesus, pelo poder do Espírito Santo. Só assim nossos cultos serão ressurretos.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


sábado, 16 de abril de 2016

O BOM PASTOR E OS MERCENÁRIOS

"Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então, o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é mercenário e não tem cuidado com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas" (S. João 10:11-15).


Jesus nos declara ser o bom pastor e compara-nos a ovelhas, a quem ele quer salvar e conduzir. Ele falava ao povo de maneira simples, tão simples que os sábios da época não podiam entender. Jesus utilizava cenas do cotidiano dos judeus para comunicar-lhes a Verdade, de maneira que todos pudessem apreendê-la.
O que mais me encanta no Bom Pastor é seu compromisso com as ovelhas e com a vida. Ele dá a sua vida voluntariamente para salvação de suas ovelhas. Ele as deseja vivas e empenha-se até à morte para mantê-las vivas. Este compromisso não encontramos em outros pastores.
Vivemos em um mundo onde há diversos pastores. A difusão de pensamentos nunca foi tão grande quanto nos dias atuais. É muito mais simples que outrora espalhar pensamentos e obter seguidores. Se antes era necessário ter algum tipo de reconhecimento acadêmico para obter a publicação de ideias, hoje o procedimento é muito mais simples, bastando um blog ou site para isso.
Neste aspecto é que podemos pensar nos muitos pastores que têm surgido, pessoas com ideias próprias, formadoras de opinião, que arregimentam seguidores com muita facilidade. Mas será que esses pastores têm compromisso com suas ovelhas e estão dispostos a morrer por elas? Eles conhecem a consequência do que ensinam? Estão preocupados com o destino de seus seguidores ou com seu próprio ventre?
Por favor, não pensem que estou me referindo aos pastores religiosos, mas refiro-me aos pastores ideológicos, religiosos ou não. Eles não possuem qualquer conhecimento de consequência do que ensinam e não estão preocupados com isso. Se suas ovelhas se perderem para sempre, que assim seja, contanto que tenham o lucro devido.
Há sempre pastores mercenários controlando a máquina da intolerância religiosa, da xenofobia e da paganização de nossa sociedade. Quando nos deparamos com a tragédia de adolescentes grávidas e desamparadas pela sociedade, com a triste realidade das drogas, da imoralidade, da descrença em Deus e na vida, da desesperança; quando somos visitados pela violência verbal, moral ou física impingida em nome de Deus; quando ficamos aterrados diante do racismo e da xenofobia, do desprezo aos mais fracos, temos que ter certeza que muitos pastores contribuíram e contribuem por estabelecer e fomentar ideologias que nos condicionam a tudo isso.
Quantos se empenharam no passado por retirar Deus da sociedade? A origem e significado da existência, único consolo dos pobres, padrão de moralidade, base para a fraternidade e para a paz, foi removida sem qualquer pudor, abrindo espaço ao individualismo, ao relativismo, ao niilismo, à imoralidade, à legitimação da perversidade e ao desprezo pela vida alheia. Ninguém mais consegue ter esperança, trabalhar e sorrir como antes. Vazios e tristes, caminhamos por este mundo sem um ideal, senão aquele que criamos para nós mesmos e que sabemos ser falso. As maiores atrocidades se revelaram a partir de então, com seu ápice no holocausto de judeus, memória que nos é sempre terrificante porque sabemos que outros holocaustos vieram e tornarão a vir, já que a fundamentação ideológica está muito bem estabelecida; esta "operação do erro" e "mistério da iniquidade". Então pergunto: cadê os pastores que iniciaram todo esse processo? Tiveram sua inteligência reconhecida e receberam seus aplausos, o que já é suficiente ao mercenário.
Hoje há muitos pastores espalhando intolerância e ideologias desumanizantes pelo mundo, em busca de fama, de reconhecimento acadêmico ou dinheiro. Repudie as instituições, principalmente a Igreja, então será aplaudido como gênio. Espalhe a dúvida e ficará muito rico. Desarticule e será um sábio perante um mundo cego.
Os piores pastores, infelizmente, têm sido os pais, que têm incutido na mente dos filhos o individualismo e seus frutos desumanizantes. Como é lastimável ver os próprios pais conduzindo seus filhos à destruição! Estão querendo ensinar a seus filhos que é possível um mundo sem Deus, não se atentando ao fato que, ao retirarem Deus da família, estão transformando seus filhos em ególatras inférteis, que irão buscar no outro a si mesmos, com uma amplitude de visão muito restrita, por não saberem se encontrar em sociedade.
Esses filhos são a infertilidade de hoje e de amanhã. Mas pergunto de novo: quem é responsável por eles? Cadê seus pastores?
O Bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Ele não vem ao encontro das ovelhas pensando em si mesmo, mas pensando somente nelas, em seu bem-estar, em sua paz, em sua felicidade: "O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (S. João 10:10). Doa-se por elas, para que sejam libertas do cativeiro satânico. Caminha com elas, para que continuem livres, não permitindo que sejam enredadas e apartadas do rebanho. 
O Bom Pastor não desarticula, mas conduz cada um de nós como ovelha de um rebanho. Ele nos quer unidos, convivendo pacificamente. 
O Bom Pastor inspira suas ovelhas ao bem. Vá aos campos de refugiados, aos países que estão se autodestruíndo em guerras civis, aos hospitais onde o mundo padece as consequências de suas extravagâncias, às favelas e guetos e confira se não há pelo menos uma ovelha desse Bom Pastor dando sua vida pelos irmãos. Vá e depois me chame de mentiroso, se não encontrar pelo menos uma pessoa defendendo os mais fracos, em nome desse Bom Pastor. 
Não é uma boa ideia defender os fracos. Isso não leva à glória ou lucro. Muitos estão se beneficiando às custas dos fracos, usando-os para obter lucro, como a indústria da moda, do turismo, da música e da política. Mas envolver-se com os pobres e cuidar deles, defendendo sua integridade física, emocional e espiritual não gera um centavo sequer. Muito pelo contrário, espera-se de quem segue o Bom Pastor ter seu mesmo fim: a crucificação. Mas assim como o trabalho do Bom Pastor foi profundamente fecundo, também o trabalho de quem o segue é fecundo, pois é feito para o outro, como filho de Deus e verdadeiro irmão, como ente da família, como ovelha do rebanho, não como fonte de dinheiro, prestígio e prazer.
Amanhã a cristandade irá celebrar o Bom Pastor. Que possamos refletir sobre o fruto de nossas ideologias e comportamento. Amém!

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



domingo, 10 de abril de 2016

SEDE FECUNDOS!

"Cedo de manhã, ao voltar para a cidade, teve fome; e, vendo uma figueira à beira do caminho, aproximou-se dela; e, não tendo achado senão folhas, disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti! E a figueira secou imediatamente" (S. Mateus 21:18-19).



É triste constatar a associação que muitas pessoas insistem em fazer entre Deus e a morte, como tem acontecido entre radicais islâmicos. Mas não só entre eles! Percebo essa associação de Deus à morte entre todos os fundamentalistas religiosos de qualquer tempo. Meditar em Deus paradoxalmente suscita neles ódio. As redes sociais estão cheias dessa perversidade. E como é lamentável que isso ainda exista entre cristãos!
Deus é vida! Ele é fonte de toda a vida. Deus não sabe fazer outra coisa que não seja vida. Todas as suas criaturas são vida; ao menos foi assim que as criou.
Também Deus dotou suas criaturas da capacidade de imitá-lo, concedendo-lhes fecundidade. "Disse também Deus: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas dos mares; e, na terra, se multipliquem as aves. Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a" (Gênesis 1:22,28). 
Fecundidade é a capacidade de produzir vida. Da fecundidade de Deus todas as coisas procedem e são mantidas. Tornamo-nos seus colaboradores à medida em que  buscamos ser fecundos.
Ao falar em fecundidade, a primeira coisa que vem à mente é procriação. De fato, a mais bela fecundidade é a procriação. Nada nos torna mais semelhantes a Deus do que a capacidade de gerar filhos. Mas a fecundidade não se limita à procriação; qualquer atividade criativa é fecunda. Encontramo-la no trabalho, nas amizades, nas palavras, nos gestos, nos olhares, nos afagos, no perdão, nas artes e no pensamento humano.
O amor é sempre a origem da fecundidade.  Ninguém pode ser fecundo se não amar. Por outro lado, qualquer expressão do amor é pura fecundidade, pois o amor é invariavelmente fecundo.
Logo, o que leva a vida de Deus a não fechar-se em si mesma, mas em gerar mais vida, é o amor. Igualmente, nós somos levados à fecundidade pelo amor. Quando nos fechamos em nós mesmos, tornamo-nos infecundos. Somente o amor nos permite doar nossa vida em nossas criações.
No entanto, se Deus é vida e fonte de vida, a quem imitamos ao viver, ao conservar a vida e ao criá-la, existe o pecado, cujo intuito é "matar, roubar e destruir" (S. João 10:10). É o ódio, a inveja, a ganância, o egoísmo, a soberba, a lascívia e outros pecados que infecundam nossas obras. Nossa sociedade está cansada em seus trabalhos não por causa deles, mas da infecundidade que percebe neles. Uma sociedade profundamente individualista, narcisista e hedonista não consegue mais amar de verdade e, por isso, tornou-se estéril. 
Que sente o homem quando percebe que seu trabalho foi em vão? Ele, que foi feito à imagem de Deus, originalmente dotado da capacidade de criar, através do amor, tem que amargar a triste constatação de que tudo foi em vão porque nunca amou, senão a si mesmo. Não teve a ousadia de doar sua vida em suas obras, de maneira a viver nelas.
De que serve a vida quando não é doada? Todo o sentido da vida está na doação da vida em nossas obras, através do amor. Deus nos fez fecundos e quer-nos fecundos! Mas não há outro caminho senão o amor, que nos obriga à entrega. Fecundidade pressupõe entrega!
Entretanto, há algo ainda pior em nossa sociedade: ela tem destruído a vida. Políticas de controle de natalidade, legitimação do aborto, eutanásia, suicídio assistido, intolerância religiosa, injustiça social e xenofobia são formas mais escrachadas de luta contra a vida. Mas existem formas sutis: divórcios, fragilização da estrutura familiar, dissolução das sociedades (dentre as quais fulgura a Igreja), afastamento geográfico e afetivo de nossas origens, relaxamento e relativização dos vínculos afetivos, laicismo, desconstrução cultural, massificação, eugenia, vandalismo, uso irresponsável dos recursos naturais, etc. Cabe a cada um de nós refletir em que aspectos temos combatido a vida.
O homem está tendo que lidar com a frustração da infecundidade. Nunca trabalhou tanto, mas também nunca foi tão infecundo.
É assim que Deus nos castiga, permitindo que soframos a consequência de nossos pecados. Dá-nos o exemplo da figueira infrutífera, que não cumpriu sua missão de viver para o outro, oferecendo-lhe frutos. Fechou-se em si mesma, não quis doar sua vida, mas a guardou consigo.
Vida é frequentemente comparada à água, na Escritura. De fato, belo exemplo de vida, porque a tudo fecunda por onde passa. É vida que se entrega abundante e constantemente. Mas tente um dia guardar uma porção de água em uma vasilha fechada. Vá ao rio, pegue um pouco da água e tente guardá-la. A água apodrece! Também o maná, alimento vindo do Céu, vida ao povo de Israel, apodrecia quando era guardado.
O mesmo se dá conosco, quando resolvemos guardar a nossa vida em nós mesmos, recusando-nos à fecundidade da entrega, da feliz partilha da vida que recebemos, somos e temos. 
Que Deus se apiede de nós. Amém!

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 3 de abril de 2016

FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM

"Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Coríntios 11:26).


Antes de doar sua vida como oblação pelos nossos pecados, Cristo instituiu a Eucaristia como celebração de sua vitória sobre o pecado.
Muitos insistem em submeter as sentenças "isto é o meu corpo" e "este cálice é a nova aliança no meu sangue" a esta outra: "fazei isto em memória de mim". Supõem que pão e vinho simbolizam o corpo e sangue de Cristo, já que o propósito de Cristo não era nos dar seu corpo e sangue, mas que nos lembrássemos do que ele fez em nosso favor.
Bem, lembrar o que Cristo fez de maneira alguma conflita com o fato de ele voluntariamente nos dar para comer e beber seu corpo e seu sangue. Muito pelo contrário, é a doação de seu corpo e sangue para remissão de nossos pecados que enche essa memória de significado. Ao instituir a Eucaristia, Cristo não pretendia ser apenas lembrado, mas recebido em ação de graças como sacrifício eterno por nossos pecados. Cristo desejou que seu sacrifício se tornasse propriedade nossa. 
"Isto é o meu corpo" e "este cálice é a nova aliança no meu sangue" enaltecem maximamente essa lembrança, tornando-a bem diferente de qualquer outra que existe no mundo. Portanto, a sentença "fazei isto em memória de mim" é que deve se sujeitar às sentenças "isto é o meu corpo" e "este é o cálice". Não devemos empobrecer a doação de Cristo em nome da "memória" e sim enaltecer a "memória" através dessa doação.
O apóstolo também destaca que a Eucaristia, além de memória, é anúncio. Não podemos nos esquecer disso nunca! Quem comunga o corpo e sangue de Cristo compromete-se com seu sacrifício e assume-o como seu. Ora, se o sacrifício eterno de Cristo é tornado meu, já não tenho mais pecado, mas tenho comigo, como propriedade minha, seu corpo imolado e seu sangue derramado PARA remissão de meus pecados. Continuo padecendo minha condição de pecador, mas tenho comigo o sacrifício de Cristo, que me garante a vida eterna. 
Quando a Igreja se reúne para comungar o corpo e sangue de Cristo, ela está anunciando que o Cristo crucificado é dela. Esse anúncio enriquece sobremaneira as palavras "em memória de mim". Não apenas uma lembrança do que Cristo fez por nós na cruz, mas a recepção desse sacrifício em nós, para perdão dos pecados. Então o coração da Igreja se enche de júbilo e louvor, porque está livre de seus pecados, o que transforma uma ceia em banquete, a lembrança de uma morte em festa e a contemplação em experiência. É por isso que S. Paulo afirma: "anunciais a morte do Senhor"
Anunciar (angello) é um verbo forte, que pressupõe experiência. São João usa esse mesmo verbo duas vezes, quase que seguidamente, como declaração daquilo que experimentou profundamente em si mesmo: "O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida, o que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros, para que vós, igualmente, mantenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo. Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele treva alguma" (1 João 1:1,3,5). De fato, quando a Igreja se reúne para comungar o corpo e sangue de Cristo, ela está anunciando a si mesma e ao mundo inteiro que a morte de Cristo não é somente um acontecimento histórico, mas possessão sua, por meio da qual ela é salva. Foi esse anúncio poderosíssimo que tanta preocupação trouxe aos imperadores romanos.
As palavras do apóstolo possuem também um conteúdo escatológico: "até que ele venha". A Igreja recebe o corpo imolado e o sangue vertido no madeiro não como coisas mortas, mas como vida, pois Cristo ressuscitou. Cristo nos concede seu corpo vivo e seu sangue vivo, tornando-nos possuidores não só de sua morte vicária, mas de sua ressurreição também. 
A Igreja recebe com júbilo o sacrifício de Cristo, na perspectiva de sua volta. Ele vive! A Igreja não está recebendo um corpo e sangue mortos, mas o corpo e sangue vivos do Cristo ressurreto. Portanto, a
Eucaristia é também anúncio da ressurreição daquele que há de vir.
Não tomemos a Eucaristia como mera lembrança de um fato passado, mas testemunho de algo que é tornado presente: Cristo morreu e ressuscitou por nós e concede-nos sua morte e ressurreição, com todos os seus méritos e frutos, para que se tornem possessão nossa.
De nada valeria à Igreja saber que Cristo morreu por ela se não lhe fosse concedido esse Cristo para ser seu. O mundo também tem ciência dessa morte redentora, mas nem por isso a possui. Portanto, a Eucaristia não deve se resumir a um ato contemplativo ou intelectual, mas a uma jubilosa recepção do único Sacramento de Deus, que se chama Jesus Cristo.
A correta celebração da Verdadeira Páscoa consiste não só em rememorar, mas principalmente em receber, apropriar-se e proclamar. É assim que Deus quer que sua Páscoa seja celebrada por nós e não de outro jeito. 
"Iniciou-se com este sacramento uma "lembrança" [anamnesis], cujo similar o mundo jamais testemunhara antes. Nenhuma pessoa no mundo foi recordada através dos séculos como Jesus Cristo tem sido. Nenhum evento histórico é comemorado com tamanha frequência e com sentimento tão intenso como a morte e ressurreição de Cristo. "Fazei isto em memória de mim". A lembrança de Cristo na pregação do Evangelho e a lembrança de Cristo no Sacramento do Altar se pertencem (...). O Sacramento não é apenas meio para nos auxiliar a trazer a lembrança do passado, evocar a Jesus Cristo, como um crucifixo nos ajuda a recordar Cristo ou uma festividade nos auxilia a relembrar um evento histórico. Mesmo a lembrança de Cristo por meio do Evangelho é diferente de nossa recordação de Sócrates mediante a leitura do Faedo de Platão, porque na palavra do Evangelho, Cristo, o Verbo Encarnado, nos fala. No Sacramento, ele nos dá o mesmo corpo que deu aos doze na última ceia. Dá-nos seu verdadeiro corpo que foi sacrificado no Calvário e que ressuscitou dos mortos na Páscoa. Isso não apenas nos torna contemporâneos dele, mas nos une a ele num modo que transcende a tudo o que nós, em geral, denominamos de "lembrança". Os séculos que nos separam de sua vida terrena e do tempo de sua morte e ressurreição desaparecem" (Hermann Sasse - Isto é o meu corpo, Editora Concórdia).


Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.