domingo, 31 de julho de 2016

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 3

"No tocante à Ceia do Senhor, elas (isto é, nossas igrejas) ensinam que, com o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo são oferecidos aos que comem na Ceia do Senhor" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1540). 


A modificação do texto original da Confissão de Augsburgo foi feita pelo teólogo humanista Felipe Melanchton (1497-1560), amigo íntimo de Lutero. Ela permite que um calvinista, um luterano e quem sabe até um romano cheguem a um acordo visível, embora cada qual pense bem diferente do outro. Melanchton nunca concordou com o pensamento de Lutero acerca da Eucaristia e, ao conhecer Calvino, encontrou nele a expressão mais próxima de sua opinião pessoal. Não querendo opor-se a Lutero, alterou o texto da Confissão de maneira a permitir que luteranos e calvinistas confessassem juntos a mesma coisa, embora pensando absolutamente diferente. Foi assim que surgiu o criptocalvinismo, ou seja, o calvinismo oculto. 
Não gostaria que calvinistas que porventura me leem, ficassem ofendidos com minha honesta interpretação da visão calvinista acerca da Eucaristia. Eu aqui estou tratando de um problema doutrinário e histórico da Igreja Luterana, que é o criptocalvinismo. É provável que haja problema do "criptoluteranismo" dentro do calvinismo também. Aconselho-os a serem vigilantes quanto a isso. Cada qual deve defender o que é seu.
Eu mesmo fui calvinista e, sem saber, por muitos anos fui um "criptoluterano", pois fixava meus olhos nos elementos eucarísticos, adorava e orava ao Cristo presente "espiritualmente" NOS elementos. Quando me mudei para São Paulo, fiquei muito escandalizado diante do costume local de se comungar sentado. Portanto, embora o risco de um "criptoluteranismo" seja bem menor que o do criptocalvinismo, porque a razão exerce um fascínio muito grande sobre nós, é possível que haja "criptoluteranos" dentro das igrejas calvinistas também.
Como declarei na segunda parte desta série, em que não me posiciono contra o calvinismo, mas contra o criptocalvinismo, a liturgia é a maneira mais eficaz de colocar em evidência o calvinismo oculto.
Embora luteranos e calvinistas possam declarar a mesma fé, suas opiniões divergentes acerca da Eucaristia irão se expressar de alguma forma. A expressão mais clara ocorre na liturgia eucarística e no que vem depois, cessado o rito.
Um calvinista coerente não aceitaria elevar o pão e o cálice a fim de serem adorados pela comunidade, pois afinal não crê que Cristo esteja presente com, em e sob o pão e o vinho. Para ele, o homem Jesus Cristo está em um lugar chamado Céu, de maneira local ou circunscrita, ocupando espaço, deslocando-se de lá para cá. Para ele, elevar o pão pode conduzir o povo à artolatria ou idolatria do pão, exatamente porque acredita que pão simples continua sendo pão simples. Não crê que o pão se transforma em pão-corpo, como afirmou Lutero, na Confissão da Ceia de Cristo.
Um calvinista restringe a participação da substância do corpo e do sangue de Cristo à recepção oral dos elementos e à fé do comungante. Durante toda a Ceia, pão é simples pão e vinho é simples vinho, meros sinais de uma graça secreta, operada pelo Espírito Santo. Para um calvinista, não é o homem Jesus quem celebra a Eucaristia e também não é a Palavra que opera o sacramento, mas o rito é celebrado por um ministro e é a fé do comungante que opera o sacramento. Logo, não é de se esperar que se ajoelhem diante do altar, quando são proferidas as palavras da Instituição. Também não se deve esperar que um calvinista trate respeitosamente os elementos após a celebração eucarística, pois não passam de simples pão e vinho. Soaria supersticioso a um calvinista consumir todos os elementos no altar.
Então me volto à Igreja Luterana e detecto a ideia entusiástica de que a união sacramental se restringe ao consumo dos elementos. Antes e após o consumo, temos sobre o altar simples pão e simples vinho. Não se eleva a hóstia, temendo a artolatria. O temor à artolatria é tão grande que muitos ministros colocam a hóstia diretamente na boca do comungante, não para evitar abusos, como fazem os romanos, mas para evitar a artolatria. Ninguém se ajoelha durante as palavras da Instituição, pois perdemos a noção de que a Palavra opera o sacramento, que depois é apropriado e fruído pela fé. 
Findo o culto, sabe-se lá o que é feito com os elementos eucarísticos. Muitos luteranos descartam o vinho na pia da cozinha paroquial e misturam as hóstias do culto com as hóstias não consagradas, porque não mais creem que todo o pão é consagrado durante o rito. É ideia generalizada entre os luteranos que o pão é consagrado e torna-se pão-corpo somente na boca do comungante. De onde se tirou essa convicção, não sei dizer. Com certeza, não foi da Escritura. 
Minha opinião a respeito é que a Igreja Luterana, temendo que a doutrina romana da transubstanciação entrasse nela, adotou práticas calvinistas, não se atentando ao risco de o calvinismo entrar dentro de nossas comunidades. Pergunto: qual visão é melhor, mais bíblica e menos perigosa? A transubstanciação de Tomás de Aquino ou o espiritualismo de Calvino? Vou deixar que Lutero responda a essa pergunta: "Para mim basta que o sangue de Cristo esteja presente; com o vinho aconteça o que Deus quiser. Antes de optar pelo puro vinho com os fanáticos, iria preferir o puro sangue com o papa" (Confissão da Ceia de Cristo).
Temos que parar de pensar que a opinião de Lutero era apenas uma opinião. Ele foi bíblico! O relativismo da pós-modernidade não aceita opinião alguma como verdade absoluta, mas ela existe e, no que concerne à Eucaristia, ela está com Lutero, sem sombra de dúvida! Que me perdoem cristãos que não pensam como Lutero, mas a verdade da Eucaristia há de ser única e absoluta.
Quem me conhece sabe que sou ecumênico e vejo com bons olhos a amizade entre cristãos orientais, romanos, luteranos e calvinistas. Quem me lê sabe que não entendo por fé salvífica aquilo que nosso intelecto apreende, que há cristianismo autêntico onde quer que haja fé, independentemente da confissão, e que a fé salvífica não é assentimento intelectual com o conteúdo de alguma confissão. Não somos salvos por meio do que sabemos ou entendemos, mas por meio da fé, esta coisa misteriosa que apreende um Cristo misterioso, que atua e salva à parte da intelectualidade. O que une os cristãos não é o que pensam, mas essa fé. Por isso, para sermos amigos, não precisamos confessar a mesma coisa. A amizade ocorre entre indivíduos, entre pessoas com sua opinião formada a respeito de muitas coisas e fundamenta-se no respeito ao que o outro é. Não seria amigo de ninguém se exigisse do outro que pense igual a mim. Isso é narcisismo! Eu tenho que amá-lo como ele é para ser seu amigo. Assim entendo a comunhão que deve haver entre as igrejas. Mas não concordo com uma união às custas do sacrifício relativista da verdade. A amizade só pode acontecer quando as cartas são colocadas sobre a mesa, quando tudo é tratado com a máxima transparência, e mesmo assim somos capazes de nos amar. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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