quarta-feira, 30 de março de 2016

RESSURRETOS PARA RESSUSCITAR

"Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça" (Romanos 6:10-13).



O maior paradoxo cristão é viver ao mesmo tempo em que se morre. Morte que salta aos olhos, vida que se revela com timidez, mas duas realidades igualmente impactantes. O cristão simultaneamente está morrendo e ressuscitando.
Entramos, então, na atualidade da ressurreição. Não devemos esperar pela ressurreição como coisa que há de vir, mas como realidade concreta, coisa já instaurada e que avança. São Paulo afirma que devemos nos portar como "vivos para Deus" ou "como ressurretos". Apesar de a pregação cristã enfatizar muito a mortificação da carne atual e a ressurreição como evento futuro, devemos crer que a ressurreição atual é tão intensa quanto a morte que está em curso.
A ressurreição é decorrente ou é fruto da justificação. Tendo sido declarado justo no momento em que cri, tornando-me possuidor de uma justiça até então alheia a mim, que é a justiça de Cristo, fui reconciliado com Deus. Essa reconciliação é de tal maneira profunda e abrangente que o profeta diz acerca dos pecados, no contexto da justificação, que foram pisados por Deus e lançados nas profundezas do mar (Miqueias 7:19). A justificação é ato de Deus pelo qual nós recebemos a justiça inteira de Cristo, através da fé. Somos tornados justos tanto quanto Cristo, como se nunca houvéssemos pecado. Portanto, a justificação nos torna melhores que Adão, ao nos conceder uma justiça que ele próprio não possuiu em seu estado de inocência. A justiça que Cristo obteve não foi para si que a obteve, mas para nós. De que serviria a justiça de Cristo a ele, que é Deus e a própria Justiça desde a eternidade? Logo, a justiça que Cristo obteve como homem foi para beneficiar os homens.
É dessa justificação que vem a nossa ressurreição no presente momento. Aqui é importante que destaquemos a justificação como sendo passiva e ativa. A primeira é ato de Deus em nós, em que Deus nos concede a fé em Cristo, por meio da qual somos tornados tão justos quanto Cristo, sem esforço algum de nossa parte. Esta é a justificação sacramental, que recebemos gratuitamente, em virtude da fé. Trata-se de justiça que nos é creditada ou imputada e, portanto, diz-se que é passiva de nossa parte, embora não da parte de Deus. A justificação ativa, por sua vez, provém da justificação passiva, sendo, até certo ponto, desdobramento inevitável ou necessário dela, mas também esforço deliberado nosso. 
A justificação ativa, que é decorrente da justificação passiva, é a ressurreição que podemos provar hoje. Quem recebe a fé no Evangelho e, juntamente com ela, o Espírito santificador, sendo inserido no mistério de Cristo e participando plenamente de sua justiça, sem qualquer reserva, deverá frutificar e é inevitável que frutifique. É evidente que todo homem que participa da natureza de Cristo e que está sendo conformado à figura dele por ação do Espírito Santo irá se tornar cada vez mais semelhante a ele, o que significa amar de verdade e, por meio desse amor, praticar toda a sorte de boas obras. Portanto, é inevitável que quem é justificado passivamente ou sacramentalmente comece a amar, assim como Cristo ama. Disso quem é justificado não tem escapatória, porque já está vivendo a vida de Cristo, cada vez mais, cada vez mais, sendo isto ressurreição no presente momento! Por isso S. Paulo declara: "mas quanto a viver, vive para Deus". É algo necessário e ocorre mesmo contra a nossa vontade, porque quem é inserido em Cristo e justificado não consegue viver em pecado. O justificado peca, é claro que peca! Mas pecar já não é tão fácil e permanecer no pecado se torna uma espécie de agressão à sua nova natureza. Como disse S. João: "Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus" (1 João 3:9).
Você foi justificado? Esta pergunta não é difícil de ser respondida por cristãos maduros, porque já provamos em nós a ressurreição da novidade de vida, da justificação ativa, dessa resistência contínua ao pecado, que o torna detestável aos nossos olhos. O mesmo pecado que antes nos provocava prazer hoje nos incomoda e causa lágrimas. Isto é justificação ativa e ressurreição no momento presente. Aqui está a vida dos filhos de Deus, dos que nasceram da natureza de Deus e que não podem mais ser diferentes.
Incrivelmente, é no pecado cotidiano que detectamos a ressurreição cotidiana, porque é no desgosto do pecado que detectamos nova vida. É assim que, para o cristão verdadeiro, que vivencia a ressurreição, a carne é um fardo pesado, que o puxa para baixo e não permite que ascenda o quanto gostaria. 
O ressurreto S. Paulo assim suspirou, com relação ao fardo de sua carne: "Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte?" (Romanos 7:24).
Por outro lado, a justificação ativa envolve nossa participação e esforço. É por isso que S. Paulo diz: "Não reine", "nem ofereçais" e "oferecei-vos". Também: "Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor" (Filipenses 2:12). É necessário que lutemos! A tristeza e contrição provocadas em nós pelo pecado vêm involuntariamente, da mesma maneira como antes vinha o prazer. Este é o aspecto negativo da justificação ativa, em que repudiamos o pecado como coisa que não condiz com nossa natureza de ressurretos. Mas há um aspecto positivo da justificação ativa que se chama obediência. Como pessoas redivivas, é necessário que amemos contra a nossa carne e que esse amor se expresse em perdão, generosidade, respeito e honradez, de maneira que nossos membros se tornem "instrumentos de justiça". Esse amor requer deliberação e esforço, porquanto nossa ressurreição ainda convive com a morte que, como afirmei, puxa-nos continuamente para baixo.
Para que não deliberemos e atuemos em vão, Deus nos concedeu a Lei do amor, para que nela possamos nos exercitar como pessoas ressurretas. Não devemos inventar obras, mas empenhar-nos nas verdadeiras obras, que encontramos na Lei de Deus. É neste aspecto que a Lei de Deus provoca vida e só neste: em que uma pessoa justificada por Deus, que goza a ressurreição, encontra na Lei de Deus o caminho do amor. Para quem não foi justificado, a Lei não tem esse poder vivificante, porque ainda não há vida, uma natureza que lhe seja conforme, que possa acatá-la e cumpri-la de bom grado.
Entendemos, então, que à justificação passiva que sofremos de Deus, que nos imputa a perfeita justiça de Cristo, segue-se a justificação ativa, em que negativamente nos posicionamos em relação às nossas paixões pecaminosas e positivamente em relação ao amor. É então que a nossa justificação ativa se torna a justificação passiva do mundo. De fato, somos sacramento para o mundo.
Cristo não é teoria, mas vida. Vida só pode redundar em vida. Quem recebe a vida de Cristo doa essa vida a quem o cerca. É um processo dinâmico, em que o homem é justificado passivamente por Deus e ativamente justifica o mundo, trazendo justiça, vida e ressurreição ao que antes era somente morte. Portanto, assim como Cristo não é teórico, o cristianismo autêntico não é teórico, mas prático, através do amor.
Se a justificação ativa de Cristo não serviu a ele, mas a nós, também nossa justificação ativa não nos serve, mas ao mundo, com o intuito de lhe ser vida.
Somos ressurretos para ressuscitar. Somos vida para vivificar realidades que nos cercam. Esta é a verdadeira vocação de quem é ressurreto.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 26 de março de 2016

EU VIM PARA QUE TENHAM VIDA

"Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados. E ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram. Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens" (1 Coríntios 15:16-19).


São Paulo coloca o Senhor Cristo como sentido da vida e a ressurreição como necessidade. Ela tem que ocorrer, para que nos unamos a Cristo para sempre. Não havendo ressurreição, de nada nos vale Cristo!
Cristo crucificado mostra-nos que fim teremos. Os homens são os únicos animais que têm consciência de sua morte. Cristo nos ensina algo ainda mais triste: que fim cada um de nós, cristãos, terá. É certo que iremos nos sentir sozinhos, sobrecarregados de pecados, teremos que lutar contra nossa carne e contra o diabo, movidos pela força da fé. Este fardo chamado morte é sempre solitário. Teremos de enfrentar a morte sozinhos, ainda que nos cerquem amigos, família e o próprio Deus.
Não pensem que Deus se tornará visível a nós em nosso momento. É evidente que não! Seremos mantidos por essa fé que cultivamos. Deus não irá agir contra ela, mas lhe dará espaço para que cresça infinitamente. Neste aspecto, a morte é um Sacramento, o último Sacramento para fortalecimento de nossa fé, na qual iremos descansar. 
Mas o que vem depois? Teremos que ficar especulando se nosso espírito irá regozijar-se no Céu, se é possível existirmos sem nosso corpo? Teremos que ficar especulando se nosso espírito terá lembrança ou não das coisas vividas aqui? Será que continuaremos sendo atribulados por penas temporais? Será que teremos que continuar nossa militância, intercedendo pelos vivos? 
Cristo nos dá a resposta sobre o que vem depois: "Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; chega também a tua mão e põe-na no meu lado; não sejas incrédulo, mas crente".
Cristo não argumenta ou dá uma opinião a respeito da vida após a morte, que é tudo o que o mundo pode oferecer, mas ele se apresenta ressurreto à Igreja e pede que seja tocado, para que vejamos que o mesmo corpo que foi flagelado e que pereceu na cruz ressuscitou.
Salvos no sentido mais abrangente da palavra! Isto Cristo nos revela em sua ressurreição. São Paulo declara enfaticamente, no mesmo texto: "Mas, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem. Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados EM CRISTO" (versículos 20-22). Cristo não ressuscitou para si mesmo. Pelo mesmo motivo que se fez carne, padeceu e morreu, é que ressuscitou. É para o nosso benefício que sua obra inteira foi realizada.
Esta mesma carne que hoje enferma, padece dores e geme será ressuscitada.
Estas nossas mãos que hoje operam a injustiça, que ferem, matam, acusam e roubam serão ressuscitadas.
Estes mesmos pés que insistem em nos levar para longe de Deus serão ressuscitados.
Esta mesma cabeça que pensamentos imundos poluem, que alimenta ódio, amargura, pessimismo e vingança será ressuscitada. Não outra!
Este mesmo corpo que se entrega ao deleite dos sentidos de maneira egoísta e irresponsável será ressuscitado. O mesmo corpo!
No entanto, Cristo nos possibilita uma ressurreição para a vida: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (S. João 10:10). A ressurreição é uma ação transformadora de Deus, não criadora, porque esta mesma carne que hoje nos traz desgosto será ressurreta, porém livre do pecado e da morte que se imiscuíram em sua essência, contanto que estejamos em Cristo, através da fé. Por isso diz S. Paulo: "O último inimigo a ser destruído é a morte" (versículo 26). Através da ressurreição desta nossa carne, a morte será destruída de vez. Seremos plenos de Vida, essencialmente Vida, assim como Cristo é a Vida (S. João 14:6). Deus haverá de devolver a nós a plenitude daquilo que o pecado está destruindo: A Vida!
Com isso, podemos então dizer que esta mesma carne que hoje jaz enferma será ressuscitada vigorosa para a verdadeira alegria.
Estas nossas mãos pecadoras serão ressuscitadas para o afago e comunhão.
Estes nossos pés que nos conduzem à vergonha haverão de ressurgir para nos possibilitar o encontro.
Esta nossa cabeça que produz e guarda pecados haverá de ressurgir para os pensamentos mais excelsos de quem participa do mistério de Deus.
Este nosso corpo que se deleita no pecado haverá de ressurgir para o deleite do Céu, onde tudo é sumamente aprazível. Este mesmo corpo e não outro!
São Paulo conclui o texto assim: "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão" (versículo 58). Ele deseja que nos consolemos com a esperança de que as dores impostas ao nosso corpo pela cruz que carregamos, pelo mundo e pelo pecado serão abundantemente recompensadas quando este mesmo corpo ressuscitar. Cristo não reapareceu aos discípulos como espírito, mas como carne, com as marcas dos pregos e da lança, para nos mostrar que este mesmo corpo que hoje está sofrendo a tirania de Satanás haverá de nos ser devolvido sem qualquer corrupção, ileso, como se nunca a tivesse conhecido. Nisto devemos crer e, incitados por essa fé, vencer todos os inimigos de Deus.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quinta-feira, 24 de março de 2016

UM SERMÃO SOBRE A CONTEMPLAÇÃO DO SANTO SOFRIMENTO DE CRISTO



"Algumas pessoas meditam o sofrimento de Cristo indignando-se contra os judeus, cantando a canção do pobre Judas e censurando-o pelo que fez, e se limitam a isso, da mesma forma como estão acostumadas a acusar outras pessoas e a condenar e denegrir seus adversários. Isto com certeza não significa meditar o sofrimento de Cristo, e sim a maldade de Judas e dos judeus.
Alguns descreveram diversos frutos e proveitos oriundos da contemplação do sofrimento de Cristo. Sobre isso circula por aí um dito enganoso, atribuído a Santo Alberto, segundo o qual seria melhor meditar uma vez superficialmente o sofrimento de Cristo do que jejuar um ano inteiro, orar o Saltério diariamente, etc. Existem pessoas que vão cegamente atrás disso e acabam perdendo, assim, o verdadeiro fruto do sofrimento de Cristo, pois buscam seu próprio interesse. Por isso, ficam carregando consigo figurinhas e livrinhos, cartas e cruzes. Algumas pessoas chegam ao ponto de acreditar que, com isso, estão se protegendo contra inundações, assaltos, incêndios e toda sorte de perigos, e que, assim, o sofrimento de Cristo, contrariando seu próprio caráter e natureza, devesse proporcionar-lhes uma vida sem sofrimento.
Essas pessoas têm compaixão por Cristo, lamentando-o e pranteando-o como um homem inocente. Foi o que fizeram as mulheres que, de Jerusalém, seguiram atrás de Cristo e foram repreendidas por ele no sentido de que chorassem por si mesmas e por seus filhos. Desse gênero são aqueles que, em meio à meditação da paixão, passam a divagar, acrescentando muita coisa a respeito da despedida de Cristo em Betânia e das dores da virgem Maria, o que também não lhes adianta muito. É por isso que a pregação da paixão se prolonga por tantas horas, sabe Deus se é mais para dormir ou para ficar acordado. Desse bando fazem parte também aqueles que aprenderam quão grande proveito traria a sagrada missa e, em sua ingenuidade, julgam que é suficiente ouvir a missa. Somos induzidos a essa atitude por afirmações de diversos mestres no sentido de que a missa seria agradável a Deus opere operati, non opere operantis, por si própria, também sem nosso mérito e dignidade, como se isso bastasse. Na verdade, porém, a missa não foi instituída em função de sua própria dignidade, mas para tornar dignos a nós, e principalmente para meditar o sofrimento de Cristo. Quando isso não ocorre, transforma-se a missa em obra corporal e infrutífera, por melhor que ela seja em si mesma. Pois de que te adianta que Deus seja Deus, se não for um Deus para ti? De que adianta o fato de que comer e beber em si seja sadio e benéfico, se não for sadio para ti? E é de se temer que com muitas missas nada de melhor se conseguirá, caso não se buscar nelas seu verdadeiro fruto.
O sofrimento de Cristo é meditado autenticamente por aquelas pessoas que o encaram de forma tal, que se assustam sinceramente por causa dele e sua consciência logo cai em desânimo. O susto deve provir do fato de veres a severa ira e o inexorável rigor de Deus para com o pecado e os pecadores, tanto é que nem a seu único dileto Filho ele quis dar por resgatados os pecadores, a menos que o Filho por eles fizesse uma penitência tão grande quanto aquela da qual ele diz através de Isaías: "Eu o feri por causa do pecado do meu povo" (Isaías 53:5). O que será dos pecadores, se até o dileto Filho é ferido assim? Só pode tratar-se de uma gravidade indizível, insuportável, para que uma pessoa tão grande e incomensurável se exponha à mesma e sofra e morra por isso. E se pensares bem a fundo que é o próprio Filho de Deus, a eterna sabedoria do Pai, quem sofre, não deixarás de ficar assustado, e quanto mais profunda for tua reflexão, tanto mais assustado haverás de ficar.
É preciso que graves profundamente em teu coração e que não duvides de forma alguma que quem tortura Cristo dessa forma és tu mesmo, pois teus pecados são, com certeza, responsáveis por seu sofrimento. Assim São Pedro, qual trovão, atingiu e assustou os judeus ao dizer a todos eles: "Vocês o crucificaram", etc (Atos 2:37). Por isso, ao vires os pregos atravessarem as mãos de Cristo, podes ter certeza de que são obra tua; ao vires a sua coroa de espinhos, podes crer que são os teus maus pensamentos; e assim por diante.
Vê, pois, que, quando um espinho aguilhoa a Cristo, seria justo que te aguilhoassem mais de cem mil espinhos; mais ainda: eles deveriam espetar-te desse jeito e até pior por toda a eternidade. Quando um prego atravessa torturantemente as mãos ou os pés de Cristo, tu é que deverias sofrer eternamente com pregos tais e até piores. É o que também sucederá àqueles que fazem com que o sofrimento de Cristo tenha sido em vão para eles. Pois esse sério espelho, que é Cristo, não mente nem brinca; o que ele anuncia será cumprido em sua totalidade.
São Bernardo ficou tão assustado com isso que disse: "Eu julgava estar seguro, nada sabia da sentença eterna sobre mim pronunciada no céu, até que vi que o Filho unigênito de Deus se compadece de mim, se apresenta e se submete à mesma sentença por mim. Ai de mim, se a coisa é tão séria, não é hora de brincar nem de estar seguro" (...).
Neste ponto é preciso exercitar-se muito bem, pois todo o proveito do sofrimento de Cristo depende de a pessoa chegar ao conhecimento de si mesma, assustar-se consigo mesma e ficar quebrantada. E se a pessoa não chegar a isso, o sofrimento de Cristo ainda não lhe terá trazido o proveito da forma devida. Pois a obra própria e natural do sofrimento de Cristo consiste em levar o ser humano à conformidade com Cristo. Assim como Cristo é martirizado física e psiquicamente de forma terrível em nossos pecados, também nós, à sua semelhança, devemos ser martirizados na consciência pelos nossos pecados. Também aqui não se trata de fazer muitas palavras, mas de nutrir pensamentos profundos e de levar muito a sério os pecados (...).
Tem razão para temer quem se sentir tão endurecido e empedernido a ponto de não se assustar com o sofrimento de Cristo nem ser levado ao conhecimento de si mesmo (...). Por esta razão, deves pedir a Deus que abrande o teu coração e permita que medites o sofrimento de Cristo de modo frutífero. Pois nem é possível que o sofrimento de Cristo seja meditado com profundidade por nós mesmos, a menos que Deus o derrame em nosso coração (...). É por isso que aquelas pessoas acima mencionadas não lidam adequadamente com o sofrimento de Cristo, pois não invocam a Deus para tal, mas, por sua capacidade própria, inventaram modos próprios de fazê-lo, tratando o sofrimento de Cristo de forma totalmente humana e infrutífera.
Quanto a quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente que procede melhor do que se jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os dias ou mesmo ouvir uma centena de missas; pois essa meditação transforma a pessoa em seu ser quase da mesma forma como o Batismo opera o renascimento. É aqui que o sofrimento de Cristo efetua sua obra autêntica, natural e nobre, estrangula o velho ser humano, espanta todo prazer, alegria e confiança que se possa ter em relação a criaturas, assim como Cristo foi abandonado por todos, até mesmo por Deus.
Visto que semelhante obra não está em nossas mãos, sucede que, às vezes, a pedimos, mas não a recebemos na mesma hora; mesmo assim, não se deve desanimar ou desistir. Às vezes, ela vem quando nem a pedimos, conforme a sabedoria e a vontade de Deus; pois ela quer ser livre e não presa. Então a pessoa fica de consciência aflita e se desagrada de si mesma em sua vida. É bem possível que ela nem saiba que o sofrimento de Cristo é que está efetuando isso nela; talvez não reflita sobre ele. Da mesma forma, outras pessoas concentram-se firmemente no sofrimento de Cristo e, mesmo assim, não chegam ao conhecimento de si mesmas dessa maneira. Naquelas pessoas, o sofrimento de Cristo é oculto e verdadeiro; nestas, é aparente e enganoso (...).
Até aqui falamos sobre a semana da Paixão e a celebração apropriada da sexta-feira santa. Chegamos agora ao dia da Páscoa e à ressurreição de Cristo. Quando a pessoa se conscientizou de seu pecado e ficou profundamente assustada consigo mesma, é preciso cuidar que os pecados não fiquem desse jeito na consciência. Sem dúvida, eles causariam puro desespero. Assim como se manifestaram e foram reconhecidos por intermédio de Cristo, é preciso derramá-los novamente sobre ele e aliviar a consciência.
Tira o teu pecado de cima de ti e o atira para cima de Cristo, crendo firmemente que suas chagas e sofrimentos são teus pecados e que ele os carrega e paga por eles, como diz Is. 53:6: "Deus fez cair sobre ele o pecado de nós todos"; e São Pedro: "Ele carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados"; e São Paulo: "Deus o fez um pecador por nós, para que fôssemos justificados através dele". Em passagens como estas e em outras deves confiar com toda a ousadia; quanto mais te atormentar tua consciência, tanto mais deves confiar nelas (...). Pois se permitimos que nossos pecados ajam em nossa consciência, se permitimos que fiquem conosco e se os enxergamos em nosso coração, eles são fortes demais para nós e vivem eternamente. Mas se vemos que estão sobre Cristo e que ele os vence através de sua ressurreição, e se cremos nisso com ousadia, eles estão mortos e foram destruídos; pois sobre Cristo não puderam permanecer, foram tragados por sua ressurreição (...). 
Se, entretanto, não consegues crer, deves pedir a Deus por isto, como dissemos acima, pois também o crer está exclusivamente nas mãos de Deus, e ele também o dará, ora abertamente, ora ocultamente, como dissemos a respeito do sofrimento. Mas tu podes animar-te com isso: em primeiro lugar, não deves mais contemplar o sofrimento de Cristo (pois agora este já efetuou sua obra e te assustou); deves ir em frente e contemplar seu amável coração, considerando quanto amor ele tem para contigo, amor que o obriga a carregar o fardo tão pesado de tua consciência e de teu pecado. Assim teu coração ficará doce para com ele e a confiança da fé será fortalecida. Continuando, passa então pelo coração de Cristo para chegar ao coração de Deus, e vê que Cristo não poderia ter te demonstrado esse amor caso Deus, a quem Cristo obedece com seu amor para contigo, não o tivesse querido em amor eterno. Assim acharás o coração paterno divino e bom e, como Cristo diz, dessa maneira serás atraído por Cristo para o Pai. Então passarás a entender as palavras de Cristo: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito", etc. É isto o que significa reconhecer a Deus de forma apropriada: apreendê-lo não pelo seu poder ou por sua sabedoria (que são assustadores), mas pela bondade e pelo amor. Então a fé e a confiança podem subsistir e então a pessoa é verdadeiramente renascida em Deus.
Quando, pois, teu coração estiver firmado em Cristo e tiveres te tornado inimigo dos pecados - por amor e não por medo do castigo -, então o sofrimento de Cristo também deverá constituir-se em exemplo para toda a tua vida. Agora queremos refletir sobre ele de outro modo ainda; pois até aqui tratamos dele como um sacramento que atua em nós e que experimentamos passivamente. Agora o trataremos como algo que também nós efetuamos, da seguinte maneira:
Quando fores incomodado por sofrimentos ou por uma doença, reflete quão pouco isto é em comparação com a coroa de espinhos e os pregos de Cristo.
Quando tiveres que fazer ou deixar de fazer algo que te contraria, pensa como Cristo, amarrado e preso, é levado de lá para cá.
Se és atribulado pela soberba, repara o quanto teu Senhor é debochado e desprezado junto com os malfeitores.
Se a incastidade e a concupiscência te atacam, lembra-te quão dolorosamente a tenra carne de Cristo foi açoitada, golpeada e ferida.
Se ódio, inveja ou sentimento de vingança te atribulam, pensa com quantas lágrimas e clamores Cristo orou por ti e por todos os seus inimigos, quando teria sido cabível que ele se vingasse.
Se tristeza ou outras adversidades afligem teu corpo ou teu espírito, fortalece o teu coração e diz: ora, por que eu também não poderia passar por uma pequena tristeza, já que, no Getsêmani, meu Senhor suou sangue, de tanto medo e tristeza? Servo indolente e infame seria quem quisesse ficar na cama enquanto seu senhor tem que lutar na agonia da morte. Como vês, em Cristo se podem encontrar força e alívio contra todos os vícios e desvirtudes. É nisto que consiste a verdadeira meditação do sofrimento de Cristo, são estes os frutos de seu sofrimento (...).
Cristãos autênticos são os que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida da forma descrita por São Paulo: "Os que pertencem a Cristo crucificaram sua carne, com todas as suas concupiscências, juntamente com Cristo" (...). Porém essa contemplação caiu em desuso e se tornou rara, embora as epístolas de São Paulo e São Pedro estejam cheias delas. Nós transformamos a essência numa aparência e pintamos a meditação do sofrimento de Cristo apenas nas folhas e nas paredes" (Dr. Martinho Lutero, Um Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo, datado de 1519, traduzido pela equipe: Annemarie Höhn, Ilson Kayser, Luís M. Sander, Martinho L. Hasse; publicado em Martinho Lutero: obras selecionadas, volume 1, pelas editoras Sinodal e Concórdia. Os grifos são meus).

Imagem extraída da internet.


domingo, 20 de março de 2016

UM REI POBRE PARA OS POBRES


Um povo que aguardava um Reino Messiânico na terra certa feita depositou sua confiança em um nazareno chamado Jesus. Ele foi recebido por esse povo com louvores, enquanto ramos e vestes iam sendo lançados sobre a estrada por onde ele vinha, em Jerusalém. Um rei com aspecto pobre, montado em um jumentinho. Cena pitoresca! O desfecho dessa história, porém, foi trágico, pois quem deveria instaurar a paz em Israel e no mundo foi condenado à morte na cruz. Ressuscitou, é verdade, mas pouquíssimas pessoas daquela multidão tiveram a graça de vê-lo redivivo. Anos depois, Jerusalém foi sitiada pelos romanos e devastada, juntamente com seu Templo, e muitos foram levados cativos. Que decepção para esse povo!
É então que devemos refletir sobre as expectativas que temos lançado sobre esse mesmo Jesus de Nazaré. O que temos esperado dele? Muitos ainda estão aguardando um Reino Messiânico na terra, desejando que ele acabe com a pobreza, que instaure a justiça social, que acabe com as enfermidades, que nos liberte de nossos tiranos e que cristianize o Estado. Muitos ainda insistem num Reino deste mundo.
É evidente que irá se decepcionar quem espera tais coisas desse rei chamado Jesus de Nazaré. Ele é Senhor de tudo e assenta-se à destra de Deus, sendo Deus onipotente, mas continua pobre e amante dos pobres. Seu Reino não é de visível aparência, mas espiritual. Governa silenciosa e humildemente um povo pobre.
Ainda prega, mas através da figura de um ministro, homem pecador e pobre. Ainda perdoa, mas pela boca de seus ministros pobres. É recebido por seu povo através da pobreza do Batismo e da Eucaristia. Testemunhas de sua ressurreição são aqueles que conseguem vê-lo redivivo na Palavra. Não adianta clamarmos ao mundo que ele está vivo no meio de nós, porque não temos como demonstrar isso; seremos tidos por loucos! Chamar-nos-ão de Maria Madalena! Pois é com aspecto humilde, sentado em um jumento, que ele continua adentrando a realidade humana. 
Não adianta querer outra coisa dele. Ele continua declarando: "Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes. Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou com o seu selo" (S. João 6:26-27). Não queira sufocar esse Jesus com suas expectativas. Deixe-o ser quem ele é!
"Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino dos Céus" (S. Mateus 5:3). Nenhum rico pode dar com esse Reino que Jesus trouxe. Somente quem é pobre pode ser governado por ele. Jesus é um rei pobre de um Reino pobre. Deus faz questão de uma Igreja pobre.
Não pense que seu cristianismo irá eximi-lo da cruz. Quem é cristão deve ser mortificado pela cruz. Essa cruz foi posta em nossos ombros para ampliar nossa pobreza. Também a paz de Cristo só floresce na aridez dos conflitos, pecado e perdas.
Jesus quer ser nosso único alimento, nosso único bem, nossa verdadeira riqueza. Para isso, é necessário que sejamos despojados de tudo o que tem aspecto de riqueza. Aprendamos com Jesus que o melhor discurso é o silêncio, a maior vingança é o perdão, a maior violência é o acolhimento, a arma mais poderosa é o bem e a maior riqueza é a pobreza. É na condição de pobre, revestido de nossa pobreza, que Deus quer vencer o mundo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.


sábado, 19 de março de 2016

O QUE É SER IGREJA VISÍVEL?


"Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores" (S. Mateus 6:12).

A Quaresma tem, a meu ver, uma forte conotação de Lei. Eu me sinto mais pecador durante a Quaresma que em qualquer outro tempo da Igreja. Essa ênfase dada à Lei é muito sábia, porque a melhor preparação para a Páscoa, que é Evangelho puro,  é deixar-se morrer pela ação da Lei. Tenho que ter plena consciência de minha condição de pecador para que possa apreender com muito maior prazer o Cristo ressurreto que me será oferecido. Também o intuito do Advento é chamar-nos à Lei, para que mais nos deliciemos com o Evangelho da Encarnação. 
Entretanto, quando sentimos o peso do pecado precisamos ter o Evangelho por perto, para que nos consolemos com ele. É muito perigoso pregar somente a Lei, ainda que seja por quarenta dias apenas. Por esse motivo, os textos escolhidos para a Quaresma sempre nos apontam o pecado e nos conclamam a que olhemos para Cristo. Em Cristo está a plena remissão dos pecados.
A Quaresma é, portanto, tempo de perdão. Somos perdoados por Deus!
Ou será que não? Como podemos ter tanta certeza de nossa remissão dos pecados? Cristo de fato morreu por nós, mas impôs uma condição para que nos apropriemos dessa morte vicária: a fé. Como posso ter certeza que de fato creio e, por meio dessa fé, participo do mistério de Cristo? Ainda mais quando me sinto tão pecador, como agora, como posso ter plena convicção de que estou em Cristo?
Esse questionamento é um problema para os cristãos de todos os tempos. Alguns buscam em seu coração a consciência desse perdão, mas isso é entusiasmo, algo muito incerto. Alguns se voltam para suas obras, para a santidade própria, mas essa confiança nas obras é algo extremamente frágil, que não pode oferecer paz. É necessário que creiamos, mas essa fé não é aceitação intelectual de um Evangelho-texto, é algo místico, é a boca mística de Deus que se abre em nós para comer o Evangelho, que é Jesus Cristo, mistério de Deus. Sobre a natureza da fé, São Paulo afirma: "Gostaria, pois, que soubésseis quão grande luta venho mantendo por vós, pelos laodicenses e por quantos não me viram face a face; para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos. Assim digo para que ninguém vos engane com raciocínios falazes" (1 Colossenses 2:1-4).
Nossa razão recebe e sujeita-se obedientemente aos paradoxos envolvidos no mistério de Cristo, mas nossa fé come a carne de Cristo e bebe o sangue de Cristo, dá-nos pleno conhecimento de algo que não conhecemos. Embora a fé seja obra de Deus, ela ocorre em nós, através de nós e para nós, dando-nos, sem que o saibamos, tudo o que Deus é. Como essa obra de Deus ocorre através de nós, podemos só dessa maneira considerá-la obra nossa também.
Fé e Evangelho se pertencem. A verdadeira fé é, antes de mais nada, fé no Evangelho. Quando, porém, Evangelho é entendido não como textos, mas como "mistério de Deus", Cristo inteiro, a fé que comunga esse mistério se torna tão imperscrutável quanto ele. É aí que reside o maior dilema: precisamos de fé para receber a remissão de pecados, que está em Cristo, mas também necessitamos da consciência dessa fé, para que possamos testemunhá-la e descansar nela.
É então que entram os sinais do Evangelho: Pregação, anúncio do perdão, Santo Batismo e Eucaristia. Aqui está a Igreja visível. Eu ouço o Evangelho quando ele é pregado, eu o como através do pão, eu o bebo através do vinho e sou batizado nele através da água. Coisas sensíveis são utilizadas por Deus para veicular o Evangelho. Quando o Evangelho oculto é dado através de coisas sensíveis, a fé oculta imediatamente se manifesta para recebê-lo. Quando o Evangelho é tornado audível ou visível, surge a fé visível para recebê-lo visivelmente. É então que tomamos consciência de nossa fé e, por meio dela, descobrimo-nos como Igreja visível e, como Igreja visível, concluímos que somos Igreja e que estamos em Cristo, visto que não há duas Igrejas. Portanto, é nos sinais que encontramos a certeza de nossa fé, da remissão de pecados e de nossa pertença a Cristo.
Assim como Jesus Cristo andando por este mundo, curando enfermos e perdoando pecados, atraía para si a fé, cuja manifestação se tornou notória em várias situações narradas pelos evangelistas, hoje ela se torna visível quando esse mesmo Jesus Cristo se manifesta publicamente na Pregação, na absolvição, no Santo Batismo e na Eucaristia. Para ele nossa fé nos conduz, revelando-se a nós e ao mundo. É claro que muitas pessoas recebem sem fé alguma esses sinais, mas não cabe a ninguém julgar onde a fé é verídica ou não. Nesse momento, cada um deve cuidar de si, saber de sua fé, alegrar-se nela, descansar nela e nela morrer em paz.
Essa manifestação do Evangelho através de sinais é a base da doutrina dos sacramentos. Quantos sacramentos existem é motivo de controvérsia. A Igreja de Roma, por exemplo, ensina que são sete sacramentos. A Apologia da Confissão de Augsburbo diz que são três. Os reformados e luteranos racionalistas afirmam que são dois. Mas Lutero não se prendeu a isso. Para ele, a apropriação do Evangelho através de sinais visíveis ocorre cotidianamente na vida do cristão. Foi assim que considerou a oração e o perdão ao próximo como sacramentos, como batismos cotidianos, que nos permitem ter posse consciente do Evangelho, destarte descobrindo a fé. Ele coloca qualquer obra cristã como sacramento, já que toda obra do crente é visível, é realizada por fé e a revela. Para Lutero, o próximo está ornado com o Evangelho, devendo ser ele considerado um sinal, através do qual nossa fé se manifesta ao comungá-lo. 
A esposa está ornada com o Evangelho, que é comungado toda vez que o marido cristão se volta para ela e a comunga. Os pais estão ornados com o Evangelho, que igualmente deve ser comungado pelos filhos. Também quem nos ofende e quem passa por necessidade devem ser vistos como sinais do Evangelho, que devemos comungar reverentemente. 
É então que a verdadeira fé se torna clara a nós e ao mundo, quando ela nos arroja famintos ao Evangelho que Deus colocou dentro e fora da Igreja, para o comungarmos.
"Portanto, também o perdão exterior evidenciado por um ato é um sinal seguro de que tenho o perdão do pecado junto a Deus; e, inversamente, onde tal não se evidencia para com o próximo, terei um sinal seguro de que também não tenho perdão do pecado junto a Deus, mas que ainda estou preso na falta de fé (...). Mas quando vejo e sinto que de bom grado perdoo ao próximo, posso concluir e dizer: não faço essa obra por natureza, mas pela graça de Deus, sinto-me diferente de antes. Seja isso dito em breves palavras contra a conversa fiada dos sofistas. Mas também é verdade que tal obra, como ele aqui a chama, não é mera obra como outras que fazemos por nós próprios. Pois aí não está esquecida a fé; ele toma essa obra e a dota de uma promessa, de modo que se poderia chamá-la com boa razão de sacramento para fortalecer a fé (...). Da mesma forma, também nossa oração, como obra nossa, nada valeria nem efetuaria qualquer coisa; o que, porém, a faz [valer e efetuar algo] é o fato de ela ter seu mandamento e promessa, de modo que também pode muito bem ser considerada um sacramento, mais obra divina do que obra nossa (...). Ora, Deus nos apresentou diversas maneiras e caminhos para nos apropriarmos da graça e do perdão dos pecados. Em primeiro lugar, o Batismo e o Sacramento, depois, (como acabamos de expor) a oração, depois, a absolvição e, neste caso, o perdão, para que estejamos abundantemente providos e sempre possamos encontrar graça e misericórdia. Pois onde as buscarias mais perto do que em teu próximo, com quem vives cotidianamente, tendo motivo diário suficiente para praticar tal perdão? (...) Portanto, não é só dentro da Igreja ou junto ao sacerdote, mas em meio à nossa vida que temos Sacramento ou Batismo diário, um irmão para com o outro, e cada qual em seu lar, em sua casa" (Dr. Martinho Lutero, Prédicas semanais sobre Mateus 5-7).
Mas como é que se comunga o Evangelho que Deus inseriu em nosso próximo? Comungar o Evangelho significa recebê-lo como nosso. Entretanto, essa comunhão não é algo dispensável na vida do crente, mas uma necessidade. Logo, comungar o Evangelho que está em nosso próximo é ter o próximo como algo necessário, por meio do qual recebemos o Evangelho e descobrimos a fé. Ele é um sinal exterior que exterioriza nossa fé. É ele que nos torna Igreja visível. Comungamos nosso próximo quando o recebemos de bom grado em nós, permitindo que sua realidade se misture à nossa e assumindo um compromisso com ele. É nesse momento que a fé se revela de maneira mais brilhante, porque sai de sua demonstração a nós mesmos para tornar-se demonstração pública ou testemunho.
Quando ouço a Pregação e recebo a Eucaristia por necessidade e com gratidão, descubro minha fé perante mim mesmo, o que é assaz consolador. Mas quando vou ao encontro de meu próximo para recebê-lo em mim, disposto a perdoá-lo, a aceitá-lo e a amá-lo, então minha fé se torna verdadeiramente pública. Se na primeira situação eu me torno Igreja visível a mim mesmo, na segunda eu me torno Igreja visível ao mundo. Então a Igreja brilha diante dos homens como única luz. Como disse Jesus: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros" (S. João 13:35). Em ambas as situações, porém, irei ter certeza da remissão dos pecados por causa da fé que descubro em mim.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


sábado, 12 de março de 2016

O QUE ESPERAR DE DEUS?


Quaresma é um período litúrgico voltado para a reflexão sobre nossa indigência e sobre a necessidade de plenitude. Por outro lado, quaresma também é um período de expectativa, pois não queremos ficar para sempre indigentes, mas almejamos a plenitude como coisa certa. Portanto, é tempo de esperança na Igreja.
As pessoas são movidas por esperança. Todo o mundo espera alguma coisa boa. O nosso país, por exemplo, atolado em crise econômica e política, espera tempos melhores. Quem está enfermo espera o restabelecimento da saúde. Quem está de luto espera um dia voltar a retomar a vida, de uma maneira ou de outra. Somos todos movidos a esperança!
Somente se espera algo que não se vê. Como disse S. Paulo, "esperança que se vê não é esperança". É, portanto, a capacidade de enxergar o oposto da realidade que se vive. 
A esperança verdadeira é teimosa. Eu me ponho a esperar algo que certamente virá. A esperança pressupõe uma certeza, que leva ao ato da espera. Esperar é teimar numa realidade que ninguém vê, mas é certa, ao menos a quem espera.
Qual é então a esperança cristã? O que nos move? Sabemos que Deus nos prometeu muitas coisas e nossa fé torna tudo isso certo, razão pela qual nos colocamos em atitude de espera. Mas a pergunta é: o que Deus nos prometeu?
Entusiasmo à parte, atendo-nos somente ao que ele nos prometeu através de seus santos profetas e apóstolos, temos promessas muito numerosas e sublimes nas Escrituras. Algumas dessas promessas já se cumpriram, outras estão se cumprindo e muitas outras hão de se cumprir. Foi então que, ao refletir sobre esta questão ao longo da semana, lembrei-me do credo apostólico. Nele se encontram as principais promessas de Deus: "Creio na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna". Poderia parafrasear da seguinte maneira: espero teimosamente a Santa Igreja Católica, a comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna como coisas certíssimas, pelas quais vale a pena esperar.
Creio na Santa Igreja Católica. A Igreja é uma sociedade que crê no Evangelho. O Evangelho é o único sinal da Igreja, pelo qual ela é reconhecida por si mesma e pelo mundo. A Igreja recebe o Evangelho através da pregação, da absolvição, da eucaristia e do santo batismo. É o Evangelho que dá visibilidade à Igreja, que, de outra forma, não enxergaria a si mesma. Portanto, não devo buscar a resposta quanto a se pertenço ou não à Igreja nos decretos eternos de Deus ou em minha santidade, mas na visibilidade do Evangelho. Se eu busco o Evangelho e recebo-o através da absolvição, da eucaristia e do santo batismo, devo ter certeza que sou Igreja e que, como Igreja, já estou predestinado à salvação. Assim Jesus nos prometeu: "Quem comer a minha carne e beber o meu sangue permanece em mim, e eu, nele" (S. João 6:56). Simples assim! Se você é movido pelo desejo a receber o Evangelho, saiba que é Igreja e não duvide disso. Ainda que não sinta sua fé, o simples fato de desejar o Evangelho é indubitavelmente fé. O que podemos enxergar de nossa fé diz respeito ao que é visível na Igreja, que é o Evangelho. Não temos condições de enxergar nossa fé naquilo que não é visível. Ela realmente se volta para o que está oculto, mas não é em sua apreensão do oculto que iremos identificá-la em nós.
Creio na comunhão dos santos. Aqui está a parte oculta da Igreja, que não enxergamos, muito menos o mundo. A Igreja é um só corpo com Cristo. Isso não é metáfora, poesia ou ideia, mas algo concreto. Todos os que creem no Evangelho tornam-se Evangelho. Todos os que creem em Cristo tornam-se Cristo. Estamos fundidos em Cristo, razão pela qual chamamos a Deus de Pai, somos tratados como Filho e recebemos a herança do Filho, porque com Cristo somos uma só pessoa indivisa. Isso olho humano não pode ver. A fé se volta para isso e, neste aspecto, não temos ciência dela. 
São Paulo escreveu aos coríntios: "Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão". Percebemos aqui a fé que se volta ao visível e a que se volta ao invisível. A primeira se volta para o pão partido e para o cálice abençoado, como distribuição visível do Evangelho. A segunda se volta para a sublimidade de ser um único corpo COM Cristo, inseparável dele, que é uma realidade absolutamente invisível, porém certa e decorrente da participação do que é visível. Nós somos Cristo porque o recebemos como puro Evangelho. Sendo Cristo, tudo o que é dele se torna nosso.
Coisa sublime é a fé! Ela é capaz de apreender  o que somente Deus pode enxergar. Por isso, fé não pode ser obra humana, pois é onisciente, é capaz de apreender o mistério de Deus.
Creio na remissão dos pecados. Uma vez posto que somos Igreja e Cristo, todas as outras promessas contidas no credo apostólico se tornam consequentes. Através da participação de Cristo, não temos pecado algum e somos santíssimos! Através da participação de Cristo, nunca sequer caímos. Esta é uma realidade por demais sublime, coisa ocultíssima, que somente a fé oculta pode apreender. Entretanto, Deus graciosamente nos concedeu sinais certos dessa realidade: a absolvição e os sacramentos. É certo que participo da santidade de Cristo toda vez que me aproprio da absolvição e da eucaristia. Também quem é batizado se apropria imediatamente desse mistério, que é não ter pecado algum perante a justiça de Deus. Desde que receba o Evangelho regularmente, movido pela necessidade, não devo andar por aí duvidando da remissão dos pecados. Devo crer com esta fé que me é visível e crer com força!
Creio na ressurreição da carne. Todos nós estamos envelhecendo e caminhando para a morte. A realidade empírica é de condenação. Sempre que adoeço eu me lembro do pecado como causa, porque esta é a impressão de meu intelecto. A fé, porém, apreende o processo de envelhecimento e morte não como castigo, mas como destruição do velho Adão. É então que a fé apreende a misericórdia divina que existe em nossa corrupção: quem está morrendo é Adão, não eu. 
Mas a fé vai além disso e enxerga a ressurreição da carne. Esta carne que você apalpa e percebe que está envelhecendo é seu velho Adão. Esta mesma carne irá um dia ressuscitar, não mais como Adão, mas como o novo Adão, que é Cristo. Em Cristo está seu verdadeiro Eu, contanto que creia nele. O grande mistério envolvido é que esta mesma carne que está sendo destruída hoje será reconstruída no último dia. Não iremos receber uma nova carne, mas a mesma, porém purificada de toda corrupção. É então que compreendo - e tenho certeza que nisso creio - que a essência humana é a humanidade de Cristo (Filipenses 3:20-21a). Quem está morrendo não é a essência humana, mas o pecador. Uma vez destruído o pecador, terei plena posse de minha essência.
Assim se expressa S. Paulo a respeito: "Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante. E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial" (1 Coríntios 15:45,49).
Creio na vida eterna. Deus não nos criou por acaso. Ele nos criou para si. Não faz o menor sentido pensar que Deus criou o homem como animal racional, imagem sua, com o qual deseja relacionar-se, sem que se conclua que isto será para sempre, não por um tempo curto, menor que o tempo concedido às tartarugas e muitas árvores. O homem foi criado para a vida! Disso nos dá testemunho a razão simples.
A promessa que encontramos aqui, porém, não é negação da morte, mas afirmação da vida. São coisas muito diferentes não morrer e viver para sempre. A vida prometida por Deus está em Cristo. A promessa de Cristo é que "porque eu vivo, vós também vivereis". A vida de Cristo é a causa de nossa vida. Portanto, a vida eterna dos cristãos não decorre da cessação da morte, mas da vida de Cristo. 
Somente tudo isso Deus nos prometeu e estamos aguardando com os olhos, enquanto nossa fé já frui. Para nossa fé visível, espera teimosa de coisas que certamente hão de se tornar manifestas. Para nossa fé oculta, realidade. Por isso, ninguém vive sem fé, mas de "fé em fé" (Romanos 1:17).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da Internet.


sábado, 5 de março de 2016

O MODO LUTERANO DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 2



Lutero tinha diante de si a Teologia da Cruz ao interpretar todos os textos escriturísticos. Ele não aceitava o Deus de Aristóteles, o Deus produzido e investigado pela razão natural. Ele queria sempre o Deus revelado, que para ele se chama Jesus Cristo. Lutero confessava que havia um Deus revelado e um Deus não revelado (ou abscôndito). Deus se revelou aos homens através do homem Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo, nada podemos conhecer de Deus e tudo é pura especulação. Como teólogo, ele ficou somente com o Deus revelado e deixou o Deus abscôndito para os filósofos. Ousadamente afirmou, no Colóquio de Marburgo: "Não conheço outro Deus além daquele que se fez carne, nem quero ter outro"
Deus se revela ao homem através da pessoa de Jesus Cristo. Ali está seu amor, misericórdia, humildade, predileção pelos pobres, seu interesse pela salvação de todos, seu sincero pesar diante da tragédia humana e sua verdadeira vontade. Tudo o que se pode conhecer da Divindade ou da Santíssima Trindade está em Jesus Cristo. O clímax dessa revelação é a cruz. Portanto, Deus se revela ao homem fraco não segundo sua força, mas segundo sua fraqueza, que é Jesus Cristo. Deus se torna fraco para comunicar-se ao homem fraco. Isso Lutero aprendeu de S. Paulo: "Visto, como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação" (1 Coríntios 1:21). "Nós dizemos, como já dissemos antes, que não se deve debater acerca daquela secreta vontade da majestade; e a temeridade humana, que com contínua perversidade sempre investe e atenta contra ela, pondo de lado as coisas necessárias, deve ser dissuadida disso e retirada, a fim de que não se ocupe em escrutar aqueles segredos da majestade, a qual não se pode atingir, visto que habita em uma luz inacessível, conforme o testemunho de Paulo. Que se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado ou (como diz Paulo) com Jesus crucificado, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento" (Da Vontade Cativa).
Por pensar assim, Lutero encontrou Jesus em todo o Antigo Testamento. É sempre Jesus quem revela ao homem a vontade de Deus. Os santos do Antigo Testamento experimentaram Deus através de Jesus, conforme ensina S. Paulo: "Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, tendo sido batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. Todos eles comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo" (1 Coríntios 10:1-4). Sobre a interpretação do Antigo Testamento, Lutero declarou o seguinte: "Se quiseres interpretar bem, contempla a Cristo, pois este é o homem ao qual se aplica EXCLUSIVAMENTE TUDO" (Prefácio ao Antigo Testamento).
Fora de Jesus Cristo, nada podemos saber sobre Deus, exceto aquilo que a filosofia já nos havia apresentado. Essa ruptura com o Deus abscôndito é um marco na teologia cristã, porque até então os teólogos se projetavam no cenário acadêmico através de especulações inférteis acerca de Deus, apoiando-se principalmente em Aristóteles.
Lutero tinha um respeito muito grande pelo mistério. Não lidava friamente com as Escrituras como o faziam os teólogos de seu tempo, mas como quem instruía mentes e que iria prestar contas de seu ensino perante Deus. Em sua obra Da Vontade Cativa, apresentou com clareza essa sua preocupação: "Essa vontade (vontade oculta e temível de Deus) não deve ser investigada, mas adorada com reverência como o segredo da majestade divina que mais se deve reverenciar, reservado unicamente a ela e proibido a nós, muito mais venerando do que uma multidão infinita de grutas de Corício".
Outro aspecto da teologia luterana é seu caráter experiencial. Lutero experimentou em sua carne o que leu nas Escrituras. A seriedade com que procurou viver o que era ensinado pela Igreja em seu tempo provocou nele tamanha angústia e inferno que o levou a buscar nas Escrituras a solução, para que não desesperasse de vez. Seus suplícios sempre o ajudaram a interpretar as Escrituras. "Pelo viver, mais ainda, pelo morrer e ser condenado faz-se um teólogo, não pelo compreender, ler ou especular" (Trabalhos nos Salmos).
Em oposição às interpretações alegóricas de seu tempo, Lutero optou pela literalidade. Os textos devem ser compreendidos de maneira histórica e literal, a não ser que se trate de uma metáfora evidente e inquestionável. Todas as heresias surgiram a partir de interpretações alegóricas de textos escriturísticos, por isso Lutero as temia muito. É necessário ater-se ao sentido simples das palavras, porque se permitirmos à razão alegorizar os textos escriturísticos não haverá uma interpretação confiável sequer, visto que a razão irá transformar em alegoria tudo aquilo que considera absurdo. Exemplo disso encontramos na disputa de Lutero com outros teólogos acerca das palavras: "Isto é o meu corpo". Lutero não via nessas palavras uma metáfora, primeiro por não haver elementos comparativos, segundo porque era plenamente possível a Cristo estar no pão. Ele compreendia o Evangelho como sendo o próprio Cristo que nos é dado para que dele façamos uso salvífico. Para ele, Cristo é um mistério, não um Homem-Deus que só pode estar em apenas um lugar, de maneira local, ou seja, ocupando espaço. Foi assim que ele rejeitou a interpretação alegórica dessas palavras e ateve-se à interpretação literal: O verdadeiro corpo de Cristo está verdadeiramente presente no pão. O mesmo raciocínio ele aplicou ao Batismo, como causa de morte literal de nossa natureza pecaminosa. "Assim, somos antes da opinião de que não se deve admitir nenhuma inferência e nenhuma figura em qualquer lugar da Escritura, a não ser que a circunstância evidente das palavras e a absurdidade de uma coisa evidente, que peca contra algum artigo da fé, force a isso. Deve-se, isto sim, ficar preso por toda a parte à simples, pura e natural significação das palavras que a gramática e o uso do falar criado por Deus nos seres humanos possuem" (Da Vontade Cativa). 
Lutero reconheceu o risco de erro ao interpretar as Escrituras de maneira literal, mas considerou ser muito menos arriscado que a interpretação alegórica, que se apoia em nossa razão pervertida. Ele preferia ser "enganado" por Deus que por sua razão. Novamente percebe-se o temor com que ensinava as Escrituras como quem deveria prestar contas ao Senhor delas. "Se é para aceitar um texto e interpretação duvidosos e obscuros, prefiro aquele que foi pronunciado pela boca de Deus, ao invés daquele que foi formulado por boca humana. Se é para ser enganado, prefiro ser enganado por Deus (se isso fosse possível) do que por homens. Se Deus me enganar, ele assumirá a responsabilidade e haverá de reparar isso. Homens, porém, não podem oferecer compensação depois de me terem enganado e conduzido ao inferno" (Da Ceia de Cristo, Confissão).
Imagine a repercussão que teve a teologia de Lutero em seu contexto histórico: a renascença exaltando a razão humana e o entusiasmo, uma teologia muito mais filosófica que bíblica, enquanto o reformador ensinava coisas absurdas e toscas à razão humana, baseando-se no entendimento literal das Escrituras. Ele odiava a intromissão da filosofia de Aristóteles na teologia cristã. Acerca desse filósofo ele declarou: "Dói-me o coração [de ver] que esse maldito, arrogante e astucioso pagão seduziu tantos dos melhores cristãos com suas falsas palavras e os fez de bobos (...). Não é esse homem miserável que ensina em seu livro, Tratado da Alma, que a alma seria mortal com o corpo? Não obstante, muitos procuram salvá-lo com palavras vãs, como se não tivéssemos a Sagrada Escritura, na qual recebemos ensinamento abundante acerca de todas as coisas, das quais Aristóteles jamais sentiu o menor cheiro. Ainda assim o pagão morto saiu vitorioso, barrando e quase suprimindo os livros do Deus vivo, a ponto de eu, ao considerar essa lástima, me ver obrigado a acreditar que teria sido o espírito maligno que inventou o estudo" (À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão).
A busca medieval por conciliar fé e razão, recorrendo à filosofia, sobretudo a Aristóteles, tornou o entendimento das Escrituras altamente complexo. As Escrituras eram obrigadas a se sujeitar à razão humana, principalmente a Aristóteles. Então os teólogos medievais recusavam o entendimento simples de suas palavras toda vez que soava absurdo à razão humana. Com isso as Escrituras se tornaram de difícil compreensão, porque cada texto era explicado à luz da filosofia grega, de maneira obviamente forçada e viciosa.
Ao libertar as Escrituras de Aristóteles e da filosofia o quanto pôde, ao interpretar as Escrituras de maneira literal, ao insistir na distinção entre Lei e Evangelho, ao compreender o Evangelho como sendo Jesus Cristo, única revelação de Deus em todas as Escrituras, e tendo por chave hermenêutica a justificação SOMENTE pela fé, Lutero encontrou nas Escrituras muita clareza. Com algumas poucas exceções, tudo nas Escrituras era tão claro quanto a luz. Os teólogos medievais é que as tornaram obscuras, quando se obrigaram a entender o que deveria ser somente crido. Assim declarou a Erasmo: "Ora, com tais fantasmagorias Satanás desviou da leitura das Sagradas Letras e tornou desprezível a Santa Escritura, para pôr no governo da Igreja suas pestes extraídas da filosofia. Admito, por certo, que nas Escrituras há muitas passagens obscuras e abstrusas, não por causa da majestade dos assuntos, mas por causa da ignorância acerca de vocabulário e gramática. No entanto, elas absolutamente não impedem o conhecimento de todas as coisas nas Escrituras. Pois que coisa mais sublime pode ainda permanecer oculta nas Escrituras depois que os selos foram rompidos e a lápide foi removida da entrada do sepulcro e depois que foi revelado aquele sumo mistério: Cristo, o Filho de Deus se fez ser humano, Deus é trino e uno, Cristo sofreu por nós e reinará eternamente? Acaso não se conhecem e cantam essas coisas até nas escolas primárias? Se tiras Cristo das Escrituras, que  encontrarás nelas ainda? Portanto, todas as coisa contidas na Escritura estão reveladas, embora algumas passagens sejam obscuras porque ainda não conhecemos as palavras. Estulto e ímpio, porém, é saber que todas as coisas da Escritura estão postas na mais clara luz e, por causa de algumas poucas palavras obscuras num lugar, chamar as coisas de obscuras" (Da Vontade Cativa).
Para concluir, aprendemos com Lutero que o menos é mais. Quando estava para me tornar luterano, eu sofri muito por não encontrar uma conexão entre as doutrinas. As doutrinas luteranas me pareciam barcos à deriva e, racionalmente, tentava juntar os barcos através de cordas visíveis, mas sem sucesso. A única coisa que unia os barcos era o misterioso mar. Então ouvi de um amigo: "A teologia luterana não tem lógica". Foi então que cheguei ao ponto de partida de Lutero: as doutrinas cristãs, claramente expostas nas Escrituras, não devem ser entendidas e harmonizadas entre si, mas somente cridas, ainda que isso nos doa e seja verdadeira mortificação.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.