sábado, 27 de fevereiro de 2016

O MODO LUTERANO DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 1



Uma querida amiga, que é espírita, perguntou-me como é que nós, luteranos, interpretamos o primeiro capítulo de Gênesis, acerca da criação. Isso deu início a um diálogo muito fecundo, em que ela própria concluiu que nós, luteranos, interpretamos a ressurreição de Cristo (e a nossa) como sendo literal. Começamos e terminamos o diálogo com a literalidade, assim como começamos e terminamos o diálogo com as Escrituras.
Para entender quão inovador foi o modo de Lutero interpretar as Escrituras, é necessário conhecer como elas eram interpretadas na época em que viveu. Durante a Idade Média, a teologia era ao mesmo tempo muito mística e filosófica. Mística porque muitos teólogos eram entusiastas, quer dizer: falavam de seu relacionamento com Deus à parte das Escrituras e sem um Mediador, com base em seus sentimentos, que eram comunicados ao público de maneira um tanto poética. Filosófica porque buscou-se, durante toda a Idade Média, conciliar a razão com a fé, tentando explicar minuciosamente o que Deus estabeleceu para ser crido, recorrendo-se à filosofia, sobretudo a Aristóteles. As Escrituras ocupavam um papel coadjuvante na teologia. Recorria-se mais à autoridade de quem ensinava que ao próprio testemunho das Escrituras. Portanto, governo, erudição e piedade eram as credenciais do teólogo, que tornavam sua teologia digna de aceitação. Recorria-se muito mais aos pais e doutores da Igreja e aos concílios que às próprias Escrituras. Obviamente, uma teologia filosófica é uma teologia que enfatiza a virtude, o arbítrio humano e as obras, em detrimento da fé.
Havia também muitas disputas entre os teólogos sobre coisas triviais, refletindo não só vaidades pessoais, mas principalmente a disputa entre as universidades por fama.
Também deram às Escrituras quatro sentidos: o literal, o tropológico, o alegórico e o anagógico, de maneira que nenhum texto se tornou seguro quanto à sua interpretação: o que era entendido de maneira literal por um, poderia ser entendido de maneira alegórica por outro e vice-versa.
Parece que nada mudou de lá para cá. Hoje a teologia continua mergulhada nos mesmos problemas. A única diferença é que hoje, em nosso contexto de profunda secularização, a teologia não mais fascina quase ninguém.
Contra tudo isso Lutero começou a se posicionar. Para ele as Escrituras eram a única autoridade doutrinária. Lutero não estava preocupado com a piedade exterior, com os milagres ou com o prestígio de quem ensinou. Também não se importava com os concílios. Ele estava preocupado com as Escrituras. Disse S. Paulo o seguinte: "Ainda que NÓS ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue Evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema" (Gálatas 1:8). Portanto, nem mesmo a autoridade apostólica estava acima da autoridade das Escrituras.  Percebemos que o próprio Senhor Jesus, sendo Deus, a Verdade em pessoa, jamais introduziu qualquer doutrina sem recorrer à autoridade delas. Lutero rejeitava qualquer tipo de doutrina proveniente da mente humana, sem fundamento escriturístico sólido, rechaçando-a como entusiástica e não confiável. Quando o fazia, pouco se importava com a autoridade de quem estabeleceu a doutrina, fosse S. Jerônimo ou Santo Agostinho. Assim declarou a Erasmo: "Que haveria de admirável se os que foram santos, espirituais e milagrosos às vezes foram surpreendidos pela carne e falaram e agiram segundo a carne, já que isso aconteceu, e não apenas uma vez, aos próprios apóstolos, que estavam sob o próprio Cristo?" (Da Vontade Cativa). Lutero não encontrou outro alicerce que fosse tão seguro quanto as Escrituras para fundamentação doutrinária. Se até os apóstolos erraram, que esperar dos pais?
Lutero também dividiu as Escrituras em duas partes: Lei e Evangelho. A Lei consiste em ordenanças e ameaças, com o intuito de trazer o homem ao arrependimento. O Evangelho consiste em promessa de salvação gratuita ao que crê. Lei e Evangelho estão praticamente em todas as Escrituras, em diferentes proporções. Deus sempre ordena, ameaça e aflige, para depois estender sua mão ao aflito. Fere com a Lei, com o propósito de curar com o Evangelho. Há algo dessa distinção nos pais, sobretudo em Santo Agostinho, mas ninguém havia olhado para isso com o mesmo interesse de Lutero. "Prezados amigos, vocês já ouviram, muitas vezes, que nunca se viu uma pregação pública vinda do céu, exceto duas (...). A primeira pregação e doutrina é a Lei de Deus, a segunda, o Evangelho. Essas duas pregações não são idênticas, por isso é preciso ter uma noção adequada a respeito, de modo que se saiba distingui-las, ou seja, [que se saiba discernir] entre Lei e Evangelho. A Lei ordena e exige de nós o que devemos fazer; ela está voltada, exclusivamente, para nossa atuação e consiste em exigir. Pois pela Lei Deus fala: Faze isto, deixa aquilo, isto quero de ti! O Evangelho, porém, não prega o que devemos fazer ou deixar de fazer, ele nada exige de nós, e, sim, inverte-o, faz o contrário e, em vez de dizer 'faze isto, faze aquilo', manda-nos apenas estender as mãos para tomar, dizendo: 'Vê, meu caro amigo, isto Deus fez por ti: por ti fez seu Filho entrar na carne, mandou estrangulá-lo por amor a ti e o salvou do pecado, da morte, do diabo e do inferno; acredita nisso, aceita-o e serás salvo'" (Declamationes). 
A Lei suscita o pecado, a ira e o temor. O Evangelho suscita a fé. Então Lutero centralizou todo o entendimento escriturístico na antítese Lei e Evangelho, pecado e graça. Viu o Evangelho em praticamente todas as Escrituras e atribuiu a esse Evangelho o poder de fazer cristãos, ao suscitar fé.
A primeira coisa que se deve concluir disso é que, para Lutero, Antigo Testamento e Novo Testamento são um continuum, reconhecendo Cristo, o Evangelho, a fé no Evangelho e a Santa Igreja no Antigo e Novo Testamentos. Diversas vezes referiu-se aos crentes do Antigo Testamento como sendo cristãos. Acerca do Antigo Testamento, afirmou: "Aqui encontrarás as fraldas e as manjedouras em que Cristo jaz deitado, lugar que também o anjo indica aos pastores. As fraldas são simples e ínfimas, mas é precioso o tesouro que nelas se encontra: Cristo" (Prefácio ao Antigo Testamento). A diferença é que os santos do Antigo Testamento criam na salvação que havia de vir, enquanto que os santos do Novo Testamento creem na salvação que veio. Portanto, um mesmo Evangelho salvou no Antigo Testamento e salva hoje, no Novo Testamento.
Para Lutero, o Evangelho não era um texto ou um discurso. O Evangelho é o próprio Cristo. Receber o Evangelho, seja na Pregação, na absolvição ou nos sacramentos, é receber o próprio Cristo e fazer uso dele. Cristo não era visto por ele como um personagem histórico, um Deus no Céu ou uma ideia, mas como um ser místico, do qual fazemos uso através da apropriação do Evangelho. Ousadamente declarou, em seu comentário da primeira epístola de S. Paulo a Timóteo: "Chamo de Cristo a própria realidade de Cristo, Cristo no espírito. Ter Cristo em pessoa é o mesmo que nada ter. Antes, É PRECISO QUE FAÇAMOS USO DELE. Os entusiastas dizem: 'Cristo está na cruz. Logo, ele não está no Sacramento, no Batismo, na palavra visível'. Isso é uma ignorância acerca de Cristo; é ignorar qual seja o USO DE CRISTO ter, meramente, o FATO DE CRISTO em termos metafísicos, como quando digo a seu respeito que ele tem carne e cabelos. Antes, a FUNÇÃO pela qual ele morreu é a remissão dos pecados. Mas o USO em vista DO QUAL morreu - PARA a remissão dos pecados, fim para o qual batiza - ESTÁ no Sacramento: PARA a remissão dos pecados".
Por pensar assim, Lutero considerava o Evangelho divino, Deus em essência, com poder para gerar fé no coração humano. Ele afirmou sobre o Batismo, no Catecismo Maior: "Por isso, não é apenas água natural, porém água divina, celeste, santa, bendita e outros termos com que se possa louvá-la. Tudo em virtude da Palavra, que é Palavra divina, santa, que ninguém pode exaltar suficientemente; porque tem e pode tudo quanto é de Deus"
Sendo o Evangelho o próprio Deus e não mera doutrina, atribuiu ao Evangelho coisas muito grandiosas, que somente a Deus se pode atribuir: "A Igreja é criatura do Evangelho, incomparavelmente inferior a ele, como diz Tiago: 'Ele nos gerou de livre vontade pelo verbo de sua verdade' (Tg 1:8). E Paulo afirma: 'Eu vos gerei pelo Evangelho' (1 Co 4:15). Por isso, a mesma Palavra é chamada de útero e ventre de Deus: 'Os que sois carregados em meu ventre e estais no meu útero' (Is 46:3), isso porque somos nascidos de Deus e somos carregados por sua Palavra poderosa" (Comentários de Lutero sobre suas teses debatidas em Leipzig). Tanto quanto Cristo está acima da Igreja e de suas autoridades espirituais, assim o Evangelho está acima de tudo! Para Lutero, o Evangelho é o distintivo da Verdadeira Igreja: "Por isso, onde quer que se pregue a Palavra de Deus e se creia nela, ali está a verdadeira fé, essa rocha irremovível; e onde está a fé, ali está a Igreja" (Comentário de Lutero sobre a décima terceira tese a respeito do poder do papa). Também: "Em que sinal, portanto, posso reconhecer a Igreja? Pois é necessário que nos seja dado um sinal visível pelo qual sejamos congregados num só lugar para ouvir a Palavra de Deus. Resposta: O sinal é necessário e nós também o temos, a saber, o Batismo, o Pão e sobretudo o Evangelho. Estes são os três símbolos dos cristãos, suas senhas e caracteres. Pois onde encontras o Batismo, o Pão e o Evangelho, seja onde for e entre quaisquer pessoas que sejam, não duvides que ali está a Igreja" (Resposta a Ambrósio Catarino).
Recusou qualquer participação imediata de Cristo, isto é: sem meios. Lutero enfatizou que a recepção de Cristo é a recepção do Evangelho, que está na Pregação, na absolvição e nos sacramentos. Ninguém recebe Cristo de outra maneira, conforme nos ensina S. Paulo: "A fé vem pela pregação, e a pregação, pela Palavra de Cristo" (Rm 10:17).
Portanto, é a oferta, recepção e fruição do Evangelho, ou seja, do próprio Cristo, que geram e preservam a fé e, com ela, a Igreja. De fato, a Igreja é criatura do Evangelho.
Lutero não entendia a fé como assentimento intelectual. Concordar com o que é ensinado é uma fé fictícia, que jamais sobreviverá aos dias maus. Para ele, a verdadeira fé é algo essencialmente místico: "Um mistério sagrado é algo abscôndito, assim como a fé é, essencialmente, mística. Antes, é da natureza da própria fé trabalhar nas coisas abscônditas e exercitar-se nas coisas invisíveis" (Comentário da primeira epístola de S. Paulo a Timóteo). A fé nos possibilita apropriar-nos de Cristo e fazer uso dele. De acordo com a natureza de seu objeto é que devemos entender a fé.
Exatamente por ser essencialmente mística, Lutero não conseguiu manter uma mesma definição do que é fé em seus escritos. Predomina a ideia de firme e inabalável confiança em Deus, mas no Deus que se oculta de nossos olhos através da fraqueza do Evangelho. Essa confiança, porém, nem sempre é consciente. É a partir do pecado e da experiência com a misericórdia de Deus que tomamos consciência de nossa fé.
Somente essa fé torna o homem justo perante Deus. O princípio da justificação EXCLUSIVAMENTE pela fé tornou-se, para Lutero, o acesso seguro ao entendimento de qualquer texto. O homem não se torna justo através da virtude e boas obras, como ensinava Aristóteles e, com ele, os teólogos medievais. O homem é declarado justo por Deus no momento em que crê, sem participação de obra alguma. As obras são consequência da fé e da justificação. Assim ensinou S. Paulo: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da Lei" (Rm 3:28). De onde Deus retira a justiça com que nos presenteia, assim que cremos? De seu amado filho Jesus. Eis o cerne do cristianismo!
A justificação SOMENTE pela fé tornou-se a doutrina capital. Acerca dela, declarou Lutero: "Desse artigo, a gente não se pode afastar ou fazer alguma concessão, ainda que se desmoronem céu e terra ou qualquer outra coisa" (Artigos de Esmalcalde). A partir dessa doutrina é que Lutero interpretou todas as Escrituras. "Caso alguém queira me perguntar: Não podes outra coisa, a não ser falar a respeito da justiça, da sabedoria e da capacidade humana? Interpretar a Escritura sempre a partir da justiça e da graça de Deus? E, portanto, tocar a lira sempre na mesma corda e cantar somente uma toada? Eu respondo: Cada um cuide de si. Isto eu confesso a meu respeito: Todas as vezes que encontrei na Escritura menos do que Cristo, nunca, até hoje, fiquei satisfeito; mas todas as vezes que encontrei mais do que Cristo, nunca me tornei mais pobre. De modo que também me parece verdadeiro que Deus, o Espírito Santo, não sabe nem quer saber de outra coisa do que de Jesus Cristo" (Salmos de penitência).
Continuaremos nosso assunto na próxima postagem, por ser muito amplo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS



Sabe aquele feriado na praia?
O sorriso flagrado?
Aquele instante de paz?
A delicadeza fugaz?

Sabe aquele momento 
que de tão frágil
começa a sumir
tão logo tenhamos
consciência dele?

Aquela nostalgia,
de quem já sente
que o momento está morrendo
e que isso é inevitável?

O Passado que nos vem lembrar
que nada fica,
exceto nós mesmos?

Assim é sua amizade.

Mas quando o feriado acaba,
quando o sorriso some,
a inquietude volta 
e tudo volta a ser rude,

Vem uma ousada convicção
de que tudo fica,
enquanto existir
a capacidade
de sentir.

Lá está nossa amizade,
no álbum de fotografias,
intocada, sagrada e
inviolável.

Eis a prova de que tudo fica!

Tudo fica
do jeito que deixamos,
momentâneo e trivial,
mas sempre eterno e sagrado.

Tudo fica
do jeito que deixamos,
pronto para ser
continuado.

Tudo fica
e é tão necessário
quanto existir.

Nós mudamos, é verdade.
Mas nossa amizade
está intocada
no álbum de fotografias.


Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída... de meu álbum de fotografias.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A TENTAÇÃO DA IGREJA NO DESERTO - PARTE 3

"Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então, Jesus lhe ordenou: Retira-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto. Com isso, o deixou o diabo, e eis que vieram anjos e o serviram" (S. Mateus 4:8-11).


Como ousou o diabo propor algo do tipo a Deus? Como pôde passar por sua mente que o próprio Deus haveria de adorá-lo? Repito que o diabo certamente não acreditava na união mística entre a humanidade e a Divindade de Jesus em uma única pessoa, absolutamente indivisa. Com certeza ele acreditava que o Homem Jesus não era Deus e que poderia cair em tentação grosseira, coisa que jamais aconteceria com Deus. Aqui está o primeiro nestoriano da História. Novamente convido quem tiver interesse no assunto, que leia os textos: "Eis que estou convosco até à consumação do século partes 1, 2 e 3", publicados neste blog nos meses de abril e maio do ano passado.
Após ter tentado Jesus a usar seu poder com o intuito de saciar uma fome sua, sem um propósito redentor, ele apelou à sua humanidade, tentando-a à soberba espiritual. Nada conseguindo, lançou a última tentação, a mais grosseira de todas, em que recorreu aos sentidos de Jesus, com o propósito de fazê-los fervilhar. Ofereceu dar a Jesus o seu reino, que é este mundo, com toda a sua glória e pompa, contanto que o adorasse. O diabo inicialmente foi sutil, querendo provocar incredulidade na Palavra de Deus e soberba espiritual. Agora recorre ao prazer dos sentidos.
Muitos nos criticam por termos as Escrituras como única autoridade doutrinária, não aceitando qualquer doutrina que não tenha firme fundamento escriturístico, ainda que venha do maior santo que pisou esta terra, mas não estamos sozinhos nessa! Percebemos que Jesus também tinha as Escrituras como autoridade doutrinária única, subordinando-se a elas. Ele, que é a Verdade em pessoa, nunca discursou à parte das Escrituras, não introduziu uma doutrina sequer sem recorrer à autoridade delas. Com o diabo, Jesus lidou com as Escrituras, não com uma argumentação livre, embora seja ele verdadeiro Deus e pudesse fazê-lo. Mas não é essa a questão de hoje.
Jesus foi tentado à idolatria do prazer sensível. O prazer da alma está em Deus, através da fé. No entanto, o corpo se deleita naquilo que é sensível. Não é pecado dar prazer a este nosso corpo. O problema está em privar a alma de seu prazer. A alma crente deve assumir a dianteira! Caso contrário, a razão corporal irá voltar-se ao mundo sensível, munida de seus sentidos, para transformá-lo em objetivo último, ou seja: em seu deus. É por isso que Jesus nos ensinou: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas" (S. Mateus 6:34).
O diabo tenta a Igreja a não confiar na Palavra de Deus, desviando-a para seu conhecimento e obras. No entanto, quando a Igreja cai nessa tentação, não perde sua forma e o onipotente Evangelho permanece no mundo. A Igreja fica fragilizada, mas seu testemunho continua. É claro que o diabo não se dá por satisfeito diante desse resultado. Seu objetivo principal é destruir a Igreja em sua forma, aniquilando seu testemunho evangélico. O que ele não consegue fazer contra a Santa Assembleia, ele o faz contra cada um de nós, em nosso cotidiano. Assim, ele procura destruir a Igreja por completo através de suas partes, provocando baixas. São Pedro nos alertou sobre isso: "Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão que ruge procurando alguém para devorar" (1 Pedro 5:8).
Portanto, o diabo primeiro fragiliza a Igreja, desviando-a da Palavra de Deus. Depois inicia o assalto: alma por alma.
Hoje com tristeza contemplamos igrejas que foram transformadas em bares e museus. O diabo não poderá destruir a Igreja, porque há Promessa quanto a isso: "Também eu te digo que és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela" (S. Mateus 16:18). Podemos descansar nessa Promessa! Mas ele pode destruir paróquias inteiras. Para isso ele tem uma estratégia excelente: primeiro enfraquece a fé, aparta do bando, para depois atacar. 
Vivemos em um mundo pagão, onde se busca o prazer como fim. É um mundo terrivelmente hedonista! A verdade é que o mundo sempre foi assim. Onde a verdadeira fé ou, pelo menos, um conhecimento intelectual de Deus não existem, hão de imperar os sentidos, agarrando-se ao único prazer que conhecem, que é o prazer sensível, transformando-o em seu deus. Isso se chama hedonismo.
Qualquer cristão está sujeito à tentação dos sentidos, porém os mais vulneráveis são aqueles que estão fracos na fé. O diabo primeiro enfraquece a fé dos cristãos, fazendo com que os mistérios desapareçam, que as ciências humanas substituam as Escrituras, que as confissões de fé sejam desprezadas; enfim: fazendo com que a Igreja se secularize. Depois amontoa escândalos nela, fazendo com que caia em descrédito. Por fim, diante de um rebanho enfraquecido e sem pastor, ele ataca ovelha por ovelha com a arma da sensualidade, dando o golpe final. Dificilmente se salva uma alma que dessa forma cai nas mãos do diabo, porque o prazer dos sentidos é escravizante.
O homem deixa de ser homem quando cai na idolatria do prazer? É claro que não! Continua tão racional quanto antes! Então procura justificar seu comportamento através da flexibilização da moralidade. Trata-se de uma sequência lógica: secularização, individualismo, subjetivismo, niilismo e hedonismo, que condiciona e reconcilia o pensamento humano. Todo esse processo não ocorre da noite para o dia.
Por favor, não reduza o conceito de hedonismo a uma vida dissoluta, como sendo algo distante de sua realidade. O culto ao prazer é, antes de mais nada, o culto à felicidade, que é compreendida como fruição solitária e egoísta de um bem-estar. O hedonismo, obviamente, não comporta o outro, senão como meio para se alcançar a felicidade.
Como os prazeres do mundo têm preço, o dinheiro torna-se o sacramento do hedonismo. Na opinião popular, dinheiro traz felicidade. Toda essa corrida desenfreada pelo dinheiro que percebemos no mundo é mantida pelo hedonismo, pelo culto ao prazer. Aqui sim está o fanatismo, porque a obtenção desse sacramento leva o hedonista a fazer qualquer coisa, inclusive matar. 
A resposta de Jesus deve ser  a nossa, principalmente no âmbito privado: "Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto"
Em tempos de crise é fundamental que nos voltemos à nossa essência, à nossa fé. Se a Igreja perde seu brilho perante o mundo, devido à sua secularização e aos escândalos, devemos individualmente assumir uma postura mais radical e agressiva: Eu tenho um Deus e somente a ele prestarei culto! Deus não quer nosso fanatismo, mas nossa firmeza contra os ventos do mundo. Quanto mais fortes forem esses ventos, mais profundas deverão ser nossas raízes, para que não sejamos levados por eles. É uma questão de sobrevivência não fazer concessão alguma a este mundo.
Deus continuará sendo o meu Deus. Eu continuarei sendo filho desse Deus. O outro continuará sendo meu irmão. Nada irá me demover dessa fé e desse pensamento! 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.




domingo, 14 de fevereiro de 2016

A TENTAÇÃO DA IGREJA NO DESERTO - PARTE 2


"Então, o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo e lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra. Respondeu-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus" (S. Mateus 4:5-7).

No texto anterior, vimos como o diabo tenta Jesus a partir de uma fome não pecaminosa. Agora, no entanto, está indo mais longe, querendo provocar em Jesus um sentimento cobiçoso, da mesma forma como fez com Eva.
O atrevimento do diabo nunca foi tão grande! Ele tinha plena consciência da Divindade de Jesus, tanto é que debochou dela. O que ele não entendia, nem entende e nunca irá entender é o mistério da Encarnação de Deus. É que não se pode entender aquilo que deve ser crido. A Encarnação de Deus é por demais mística para ser apreendida pela razão natural.
O diabo tentou despertar sentimentos perversos no coração de Jesus por pensar que o Homem Jesus estava ao lado da Divindade, que o Homem Jesus não era Deus e que estava suscetível ao pecado tanto quanto Adão. Não é assim que a razão compreende o mistério da Encarnação? Nestório pregou exatamente isso, que o Homem Jesus estava ao lado da Divindade, nascendo, sofrendo e morrendo sozinho, sem participação da Divindade, visto que Deus não pode nascer, sofrer ou morrer. Eu convido quem estiver interessado nessa questão a ler os textos "Eis que estou convosco até à consumação do século partes 1, 2 e 3", publicados neste blog no mês de abril do ano passado.
O diabo levou Jesus ao pináculo do templo de Jerusalém e, utilizando o Salmo 91, tentou-o a pôr em prática o que está escrito ali: "O SENHOR é o meu refúgio. Fizeste do Altíssimo a tua morada. Nenhum mal te sucederá, praga nenhuma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra" (Salmo 91:9-12). O diabo convidou Jesus a pular do pináculo do templo, com base nesta Palavra. "Certamente anjos do Senhor virão em seu socorro!" Essa foi a proposta do diabo, com o intuito de acender em Jesus uma coisa chamada "soberba espiritual".
A soberba espiritual é um perigo gravíssimo à Igreja por ser insidiosa e por acometer suas colunas, seus membros mais santos e vigorosos, que sustentam-na com seu conhecimento e piedade. A soberba espiritual é o pecado dos santos!
A tentação de Jesus tem muito a nos ensinar. É importante que saibamos que os fracos na fé são tentados de um jeito, enquanto que os fortes são tentados de outra maneira. Devemos, portanto, estar atentos, porque Deus nos informa quais são as estratégias do diabo contra cada um de nós, a fim de nos precaver contra elas.
Todos os cristãos autênticos vivem piedosamente. A santidade é desdobramento da fé e revela-se no amor a Deus e ao próximo. Alguns se sobressaem, impelidos por um amor imenso a Deus e ao próximo, logo atraindo os olhos do mundo para si. É então que podem cair em pecado, ao fazerem o que já faziam, porém não mais motivados pelo amor a Deus e ao próximo, mas pelo amor a si mesmos, pelo amor à fama. Suas boas obras são corroídas pela vanglória, de maneira que o prédio desaba em pouco tempo. 
Veja-se que é necessário sempre analisarmos com honestidade nossas motivações. É evidente que o amor próprio permeia tudo o que fazemos. Todavia, não estamos tratando aqui de amor próprio, mas de soberba. Vez ou outra devemos nos questionar: Estou fazendo isso por amor a Deus e ao próximo ou quero me exibir? Estou me sentindo melhor que meu próximo? Se me for imposto o anonimato, continuarei com o mesmo empenho? 
Misericordiosamente, Deus nos concede vez ou outra ingratidão, desacato e esquecimento como salário, para que sejamos obrigados a analisar o que nos impulsiona ao serviço. Se o que me motiva a fazer o bem é o amor a Deus e ao próximo, continuarei servindo do mesmo jeito, ainda que ninguém se importe comigo e seja tratado com ingratidão. 
O Espírito Santo dota a sua Igreja de muitos dons. Alguns, porém, atraem publicidade. É o caso, por exemplo, de quem prega, governa, canta, escreve e leciona. De repente, o cristão que é dotado de dons tão brilhantes pode ser enredado pela soberba, recebendo para si mesmo os louvores que pertencem a Deus. Somente a retirada dos holofotes fará com que seu pecado seja revelado. É o que, misericordiosamente, Deus faz. 
Outros estudam muito, tornam-se eruditos, tão sábios que começam a achar insosso o que aprenderam e tratam de especular. São pessoas que querem servir à Igreja com seu conhecimento, mas não percebem que estão trabalhando contra a simplicidade da fé e que estão sendo motivados pela fama. É assim que as heresias sempre surgiram na Igreja. Heresia é coisa de doutores, não de pessoas simples.
Que dizer então daqueles que se jactam daquilo que consideram sucessão apostólica? Enchem a boca para desdenhar outros cristãos, alegando que sua igreja foi fundada pelos apóstolos, da mesma maneira como os fariseus se envaideciam por serem descendentes de Abraão. São João Batista teve então de adverti-los com as seguintes palavras: "Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão" (S. Lucas 3:8). Se Deus pode tornar uma pedra descendência de Abraão, que ele não fará com um ministro da Palavra, regularmente chamado e ordenado pela Igreja, como aconteceu com Lutero? Portanto, todo pregador do Evangelho é sucessor dos apóstolos, não importa a qual igreja pertença. Igualmente, todo pregador que não é fiel ao Evangelho, é filho do diabo e nada tem com os apóstolos. 
Quantos se envaidecem de suas confissões, concedendo a elas o poder de fazer cristãos! Quando agem assim, estão atribuindo o seu cristianismo a uma obra sua, a um livro, não à fé.
Em tudo isso, percebemos que as boas obras permanecem: Pregação, ensino, serviço, ortodoxia doutrinária, obras de misericórdia, etc. Mas a fé que lhes garante solidez está sendo corroída pela soberba espiritual, sem que ninguém se dê conta disso, nem mesmo quem caiu em tentação, até que as obras ocas se esfacelam e a casa desaba, provocando escândalo em toda a Igreja. O barulho é tremendo! Afinal, quem cai não é um cristão qualquer, mas um santo, um modelo de piedade, um líder!
Jesus nos ensina a resposta que devemos dar ao diabo quando ele nos vem cheio de elogios, querendo nos inflar: "Não tentarás o Senhor, teu Deus"
O que significa para a Igreja não colocar seu Deus à prova? Significa não garantir-se. Há pessoas tão seguras diante de Deus que pulariam do pináculo do templo com convicção plena de que Deus mesmo as apanharia no ar, de tão sábias, santas e indispensáveis que são.
Nunca pense que Deus está impressionado com você, porque não está. Jesus nos advertiu da seguinte maneira: "Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer" (S. Lucas 17:9-10).
Quaresma é tempo oportuno para analisarmos honestamente nossas motivações e baixarmos a bola. Nossos dons e obras não são patrimônio nosso, mas do próximo e da Igreja. Dons e obras só plenificam à medida em que subsistem em comunhão. Um coração só é indispensável à vida quando há nervos, sangue, pulmões, cérebro, rins e esqueleto. Sem o conjunto, sem o restante do organismo, o coração não presta para nada! Assim devemos servir à Igreja, como quem é servido primeiro.
Concluo com S. Paulo: "Porque, pela graça que me foi dada, digo a cada um dentre vós que não pense em si mesmo além do que convém; antes pense com moderação" (Romanos 8:3).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.





quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A TENTAÇÃO DA IGREJA NO DESERTO - PARTE 1

Estamos na Quaresma, tempo muito oportuno para meditarmos sobre nossas indigências. Somos pobres e temos inimigos poderosíssimos, contra os quais nada podemos. Que inimigos são esses? Lutero prontamente responderia que são o pecado, a morte e o inferno. Contra eles nada somos!
Neste nosso contexto de indigência está a tentação. Por tentação, entendemos qualquer situação que propicie o pecado. Obviamente, tentação é exclusividade de quem crê. Quando um incrédulo decide entre praticar ou não determinado ato imoral, trata-se de escolha, que não envolve o espírito, mas somente o intelecto, que é regido pela Lei natural. Quanto ao crente, ele não decide entre praticar ou não um ato imoral; ele decide entre pecar e não pecar, o que é mais profundo. Portanto, a deliberação do crente envolve espírito, pecado e fé. Só assim podemos falar em verdadeira tentação, quando fé e pecado existem e digladiam-se. Não havendo fé nem pecado, não pode existir a tentação.
Lutero sempre dizia que o cristão é tentado por sua carne, pelo mundo e pelo diabo. Por sua carne, que está dominada pela concupiscência. Pelo mundo, através de suas ideologias e perseguições. Mas principalmente pelo diabo, tentador por excelência, sendo ele o corruptor da natureza humana e de todo o mundo, tornando todas as coisas hostis a Deus e à fé.
Jesus foi tentado também. É evidente que seria tentado, pois é homem e foi posto entre os homens, no mundo, dentro do império de Satanás! Não podemos jamais dizer que Jesus foi tentado por sua carne, posto que não herdou o pecado de Adão, mas não lhe faltou mundo e diabo para feri-lo amargamente. Contra nenhum de nós o mundo e o diabo investiram com tanta fúria como contra Jesus, nosso amado Salvador.
Os quarenta dias de Quaresma nos remetem aos quarenta dias de Jesus no deserto, depois dos quais foi tentado pelo diabo. Assim narra S. Mateus:

"A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (S. Mateus 4:1-4).



Jesus foi tentado como pessoa divina e humana, isenta do pecado, libérrima em relação ao pecado. Para Jesus, pecar é impossível, pois é verdadeiro Deus. Mas não pense que, ao ser tentado, Jesus não tenha sofrido. De tal maneira sua natureza divina se ocultou em seu estado de humilhação, que Jesus vivia no mundo como se não fosse Deus, como qualquer um de nós, exceto no pecado. Ocasionalmente agia como Deus, mas sempre com um propósito redentor, nunca para seu próprio benefício.
Quando Jesus foi tentado, sua Divindade não veio em seu socorro. Ali o diabo novamente se encontrava com Adão, querendo desviá-lo da Verdade. Jesus certamente sentiu desamparo, medo e aflição, como qualquer um de nós, quando é tentado. É bom ressaltar que a humilhação de Jesus consistiu em sofrer como homem o que poderia ter enfrentado como Deus. 
Atentemo-nos ao fato de Jesus ter sido conduzido à tentação pelo Espírito Santo. É Deus quem nos permite ser tentados, embora não além de nossas forças e sob seu olhar amoroso. As tentações servem ao bom propósito de nos tornar cônscios de nossa fé, seja pela resistência ao pecado, seja pela contrição que ela provoca, quando pecamos. Por isso, pode-se dizer que são salutares ao cristão.
Lutero disse, ousadamente: "Assim como é extremamente perigoso que o homem sempre tenha prosperidade, pois, dessa forma, nunca ou em raríssimos casos aprende a amar a Deus, assim é perigoso deixar o homem em muitos méritos e benefícios da graça de Deus até a morte, porque dificilmente, alguma vez, aprenderá a confiar em Deus até a morte. Por isso acontece, pela misericórdia de Deus, que não sejam apenas perturbados na consciência, mas que também caiam, mesmo sendo muito duro, algumas vezes, em manifesto pecado, como a prostituição ou [outro] ato criminoso similar; que Deus seja obrigado a guardá-los com tamanho cuidado a ponto de, contra a misericórdia, conduzi-los à misericórdia e, através do pecado, libertá-los do pecado"
Jesus estava com fome. A necessidade ou fome é um elemento indispensável à tentação, visto que ninguém é tentado ao que não quer ou precisa. A força da tentação é sempre a nossa fome, seja ela pecaminosa ou não. Vê-se então que a tentação não necessariamente nos faz cair em imoralidade, mas seu propósito principal é desviar nossa confiança de Deus, até mesmo para suprir necessidades não pecaminosas. 
Jesus foi tentado a transformar pedras em pães, a fim de alimentar-se. Que mal há nisso? Não é legítimo que alguém coma, sobretudo após quarenta dias de jejum? Por que Jesus não cedeu? Bem, é evidente que ele não haveria de ceder, pois estava diante do diabo, que zombeteiramente questionou sua Divindade: "Se és Filho de Deus". Mas a ênfase não devemos colocar aí. Quase nunca o diabo se apresenta de maneira tão explícita!
Jesus, embora Deus e homem em absolutamente tudo o que fazia, viveu misteriosamente como simples homem entre nós, poucas vezes valendo-se de sua onipotência. Quando o fazia, era sempre com um propósito redentor, nunca para benefício próprio. O diabo, portanto, estava tentando Jesus a utilizar seu poder para resolver um problema imediato seu. 
A Igreja é tentada da mesma forma. À semelhança de Jesus, ela é divina e humana. Divina no que se refere à Verdade, humana no que concerne ao pecado. Seu poder é a Pregação da Palavra de Deus, que é onipotente. O uso desse poder está nas mãos de ministros devidamente chamados e preparados para isso. 
A essa Igreja divino-humana o diabo está sempre assediando, valendo-se de suas fomes, com o intuito de fazê-la cair. 
Fome não falta à Igreja: sente-se tola, inadequada ao mundo, pecadora, sozinha, dividida, etc. Tudo isso a Igreja padece e bem gostaria de obter alívio.
É então que o diabo, astutamente, oferece-lhe pedras e a tenta a valer-se do ministério da Pregação para transformar essas pedras em pães, dessa maneira aliviando suas fomes.
A primeira pedra que o diabo oferece é a opressão estatal. A Igreja poderia muito bem transformar essa pedra em pão através de sua intromissão na política, querendo obrigar as leis do Estado a preservarem o Evangelho. Para isso, púlpitos são transformados em palanques de comício, pastores induzem suas ovelhas a votarem em determinados candidatos, são formadas bancadas ou coalizões parlamentares, tudo com o intuito de proteger o Evangelho e quem o professa. 
A segunda pedra que o diabo traz é a divisão exterior e escandalosa. A Igreja também poderia transformar essa pedra em pão, abandonando ou relevando suas confissões, em nome de uma união exterior. Exemplo disso, a Igreja Evangélica Alemã.
A terceira pedra é o aniquilamento do mistério. Não é agradável à Igreja ser tola perante o mundo, sobretudo agora, quando as ciências evoluíram de maneira extraordinária, propondo uma resposta para quase tudo. A Igreja poderia muito bem utilizar o seu poder para transformar essa pedra em pão, acabando com os "mitos" e apresentando suas doutrinas de maneira racional e científica, dispondo-se do conhecimento humano atual. Assim, seu discurso se tornaria mais atraente, contextualizado e prático. 
O poder que a Igreja é tentada a utilizar é sempre o ministério da Pregação. Daí a necessidade de sempre orarmos por nossos pastores e doutores, para que permaneçam na sã doutrina. São eles que manejam a onipotente Palavra de Deus, podendo muito bem utilizá-la para fins escusos, com o intuito de transformar pedras em pães e resolver seus próprios problemas, deixando de lado o propósito redentor desse poder. 
Quando o diabo tenta a Igreja dessa maneira, ele também propõe algo inocente: matar uma fome legítima e não pecaminosa. Não é pecado algum desejar ser protegido pelo Estado, nem ansiar pelo fim das divisões exteriores, assim como também não é errado desejar uma Igreja contextualizada, com uma mensagem adequada às necessidades de seu tempo. Tudo isso é fome legítima!
O objetivo da tentação é desviar-nos da confiança em Deus. Quando, famintos, nos deparamos com as pedras e Satanás nos oferece a possibilidade de transformá-las em pães, para que saciemos nossas fomes, ele quer que deixemos de confiar em Deus. Ele nos tenta à incredulidade e à autossuficiência. Então caímos, recorrendo à proteção do Estado, a alianças eclesiásticas mutilantes e à ciência.
Jesus respondeu ao diabo que "não só de pão viverá o homem, mas de toda Palavra que procede da boca de Deus". Com essas palavras, ele nos provê o livramento, para que não sejamos seduzidos pelo diabo a descrer em Deus e no seu cuidado para conosco. Vivemos não só de pão, mas da Palavra de Deus, de sua Promessa para conosco.
Quando a Igreja é perseguida pelo Estado, ela deve buscar em Deus o socorro, consolando-se em sua Promessa. Também não deve descrer na unidade dos cristãos, ainda que as divisões nos causem dor, vergonha e sejam causa de zombaria. Também não deve tornar o Evangelho cientificamente correto, mas deve ater-se ao que Deus disse e crer nisso, ainda que o mundo inteiro nos chame de tolos.
Permaneçamos vigilantes. Nem sempre o diabo nos proporá o pecado de maneira explícita. Quase sempre ele irá se valer de uma carência legítima nossa, induzindo-nos a não confiar em Deus e a buscar solução em nós mesmos.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A VIVÊNCIA DA MORTE

"Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja" (Colossenses 1:24).



A vida humana é marcada pelo sofrimento. Do início ao fim de nossa existência, sofremos muitas perdas, boa parte delas irreparáveis. Cada perda é uma espécie de morte. De tanto morrer, somos obrigados a um dia admitir que viver é o mesmo que estar morrendo. 
No entanto, as pessoas não costumam pensar assim. Aliás, as pessoas não costumam pensar muito. Vivem irrefletidamente, sem prestar atenção ao que está acontecendo em si mesmas e ao redor: envelhecimento, adoecimento, mortes, divórcios, separações as mais diversas e esquecimento. As vidas são varridas pelo tempo e deixam de existir. Esta é a realidade de todos nós: somos vida, porém vida que se esvai a todo instante. 
No texto acima e em muitos outros, São Paulo trata diversas vezes do sofrimento cristão como sendo diferente e mais amplo que o sofrimento do mundo. O cristão sofre por ser cristão. Além de suportar todos os sofrimentos que afligem a humanidade, ele sofre na qualidade de cristão. Por isso, ser cristão não é fácil.
Fico pensando na falsa propaganda que existe acerca da vida cristã, como se fosse fácil. Não é, em absoluto! O cristão sofre muito mais que o não cristão. 
Quando o homem é tornado cristão através do Batismo, ele entra numa etapa nova de existência, que é mescla de vida e morte. Muitos pensam que a crucificação cristã é simbólica, mas não é. O homem, quando é tornado cristão pelas águas do Batismo, é inserido no Cristo crucificado e é posto a morrer com ele. Essa morte é literal e contínua. Dessa maneira, ninguém sente mais a morte que o cristão.
Através de sua crucificação, o Adão que habita a Igreja é posto a morrer. Adão está sempre fadado à morte, mas é morto de fato, no sentido de deixar de existir, somente no cristão. Por isso, as agonias de Adão são mais intensas na Igreja e têm que ser. O nosso Adão deve morrer no Calvário do mundo, deixando para trás suas inclinações perversas, sua razão, seus sentidos, suas carências, sua carne e seu fôlego. Ele todo deve ser reduzido ao nada. A morte tem que devorar até suas cinzas!
Alguém poderá dizer: Mas se Cristo nos representou na cruz, morreu por nós e matou a morte, qual a necessidade de nós também morrermos?
É que Cristo matou a morte, de maneira que hoje ela tem um fim. A morte infinita tornou-se finita ou a morte imortal tornou-se mortal. Porque para o ímpio a morte é um flagelo incessante e eterno.
A Quaresma irá começar na próxima semana e acho importante que reflitamos sobre este efeito do Batismo em nós: reduzir nosso Adão ao nada, aniquilá-lo, algo que não ocorre sem profunda dor.
O cristão é obrigado a renunciar a muitas coisas que são preciosíssimas ao homem: reputação, família, bens, inteligência, prestígio, tempo, conforto, motivações e a própria vida. Mesmo que seja rico, deve necessariamente viver como se fosse pobre. Ainda que tenha família, deve estar disposto a abrir mão dela, se necessário for. Se uma coroa está posta sobre sua cabeça, deve portar-se como se não conhecesse coroa alguma. Sendo inteligente, é tolo e deve ser tolo. Assim orou Ester: 

"Tu conheces todas as coisas e sabes que odeio a glória dos ímpios, que me horroriza o leito dos incircuncisos e o de todo estrangeiro. Tu conheces o perigo por que passo, que tenho horror da insígnia de minha grandeza que levo em minha fronte quando apareço em público, o mesmo horror como diante de um trapo imundo, e não a levo nos meus dias de tranquilidade. Tua serva não comeu à mesa de Amã, nem apreciou os festins reais, nem bebeu o vinho das libações. Tua serva não se alegrou desde que veio para cá até hoje, a não ser em ti, Senhor Deus de Abraão"

Toda essa renúncia ou despojamento é morte, sem sombra de dúvida! Poderíamos viver tudo isso plenamente, como faz o mundo. Mas nenhuma dessas renúncias é nossa pior morte.
A pior morte que o cristão sofre é a perda desta vida, sem usufrui-la o quanto poderia, em nome de uma vida vindoura ou de uma verdadeira vida, que aos olhos da carne é apenas uma suposição. O cristão é obrigado a renunciar ao que vê em nome do que não vê. Isso é tremendamente angustiante! O cristão vive pobremente, tem e não tem, poderia, mas não faz, enquanto o mundo todo aproveita tudo o que existe com intensidade. O cristão é obrigado a negar sua carne, que não é diferente da carne dos ímpios, ser expectador da alegria e prosperidade alheias, porque este mundo não é seu lugar. Em outras palavras, o cristão troca o certo pelo duvidoso, o que é deveras a pior morte, a pior agonia que existe.
Que cristão nunca perguntou a si mesmo: Que estou fazendo com meu tempo, com minha vida? Deveria estar aproveitando o  que este mundo me dá. Que cristão nunca foi tentado a pensar que está desperdiçando sua vida? Mas sente que sua morte é irresistível, que está crucificado para morrer de fato, até que a última partícula de Adão se dissolva. Não consegue descer da cruz e é motivo permanente de chacota.
Paralelamente à morte cristã, é claro que está a vida. Desde o Batismo o cristão começa a viver também. O problema é que trata-se de uma vida interior, que frequentemente não se sente, porque está no espírito, do qual não temos notícia alguma. Portanto, trata-se de vida oculta sob a carranca da morte. Essa vida é matéria de fé! Por isso, São Paulo declara: "Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (...), visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé" (Romanos 1:16-17). Não há outro jeito! Somos obrigados a ver além da carranca da morte, o que é fé.
Ser cristão não é brincadeira! Professamos uma morte redentora não como ato pronto, mas como obra continuada, que continua em nós. O sacrifício de Cristo mereceu a nossa salvação, mas não nos exime de nosso sacrifício, não nos isenta de sofrer e morrer também. Percorremos o mesmo caminho de Cristo e cada um de nós terá que dizer um dia, com ele: "Está consumado!" Enquanto isso permanecerão a dor, as trevas, o medo, a solidão... e uma esperança, só a lânguida chama de uma esperança para nos encorajar em meio às trevas.
Dr. Martinho Lutero: "Diante disso, eu cometo a loucura de dar a minha opinião. Primeiro, é certo que a graça, isto é, a fé, a esperança e o amor não são infundidos se não for simultaneamente expulso o pecado, isto é, o pecador não é justificado se ele não for condenado; ele não é vivificado se não for morto; ele não ascenderá ao céu se não descer ao inferno, como toda a Escritura atesta. Razão pela qual, na infusão da graça, é necessário que haja amargura, tribulação, sofrimento, sob os quais o velho homem geme, suportando a sua iminente ruína com extremo pesar" (Trabalhos nos salmos, 1519-1521).
Que tenhamos todos uma Quaresma muito fecunda. Amém!
Dr. Martinho Lutero: "



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.