sábado, 2 de dezembro de 2017

COMER, REZAR E AMAR - PARTE 2

Quando colocamos o cristianismo ao lado do paganismo, fica fácil entender por que o cristianismo se espalhou tão rapidamente pelo mundo, tornou-se a religião majoritária do Império Romano, somente pela natureza de seu discurso, sem uso de armas ou força. Realmente, o cristianismo é mais do que fé, é uma forma muito evoluída de pensar e de viver.
O mundo ocidental tem cada vez mais desprezado suas origens, posiciona-se como quem não precisa de Deus e não deve nada ao cristianismo. Muitas vezes assume uma postura até agressiva perante a cultura cristã. No entanto, por mais que o paganismo esteja ganhando força, ainda consideramos errado não perdoar quem nos ofende, defendemos a igualdade de todos e os direitos humanos, tudo isso que jamais existiria não fosse a introjeção da teologia cristã em nossa mente. Consideramos o perdão, a inclusão e a igualdade como coisas corretas e desejáveis não porque está em nossa natureza pensar assim, mas porque bebemos da fonte da Igreja há dois milênios. Hoje o mundo lança o discurso dos direitos humanos contra o discurso da Igreja, sendo que o discurso dos direitos humanos emergiu do discurso da Igreja. Infelizmente, nossa sociedade perdeu a memória.
Quem leu o texto anterior, que traça o paganismo em linhas gerais, poderá dizer: Você está exagerando, nem todo pagão é assim. De fato, os pagãos que conhecemos são mais ou menos influenciados pela Igreja e por isso assumem posturas um tanto quanto variáveis. A Igreja está no mundo como luz que ajuda a diminuir as trevas.
O Deus dos cristãos não é impessoal como o Deus pagão. É um Deus que ama, busca, perdoa e indigna-se, como se fosse pessoa humana. Por fim, os cristãos ensinam que Deus é verdadeiramente humano, de forma que todos os sentimentos humanos encontram em Deus sua matriz. Nós nos alegramos porque Deus se alegra, entristecemo-nos porque Deus se entristece, sorrimos porque Deus sorri. Deus é a fonte da humanidade. Quando Deus diz consigo mesmo: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", ele está anunciando a sua encarnação. A nossa humanidade é imagem da humanidade de Deus. O que nos torna humanos é imagem daquilo que torna Deus humano. 
O Deus dos cristãos é relacional. Primeiro consigo mesmo, pois é uno em sua substância, trino quanto ao número de pessoas. Portanto, o Deus dos cristãos é uma comunidade perfeita. Depois, é relacional fora de si, ao tratar com o homem. Mas como poderia Deus tratar com o homem se não fosse também humano? Por isso ele se faz homem para falar ao homem.


A encarnação de Deus tem enormes implicações na cosmovisão. Se Deus é homem a tratar com homens, somos chamados para fora de nós mesmos, para uma aliança visível. O cristão não tem uma espiritualidade introspectiva, porque seu Deus está de fora e chama-o à responsabilidade e à comunhão. Para o cristão, o Outro é o próprio Deus, com quem se relaciona o tempo inteiro. Portanto, a humanidade de Deus nos permite localizá-lo no homem.
Ao localizar a humanidade de Deus no homem, o cristão é dissuadido a encontrar Deus em sua natureza, mas também no Outro. Por conseguinte, a dignidade humana é revelada com clareza, tanto a nossa, quanto a do Outro. Além disso, a humanidade de Deus torna toda humanidade preciosa, seja ela a humanidade de um embrião, de uma mulher, de um negro, de um escravo. Ninguém no cristianismo é superior a ninguém, mas todos somos superiores ao restante da criação e muito dignos, essencialmente dignos, porque Deus é homem. Qualquer crime contra a humanidade é um crime contra Deus. Tudo o que louva e dignifica a humanidade, igualmente louva e dignifica a Deus.  
Por pensar assim, o cristão cuida de si mesmo, de seu corpo, de tudo aquilo que o torna humano, com zelo religioso. É disso que vem a castidade, o pudor, a moderação e a temperança. Ele não é motivado a comportar-se assim por regras, mas por saber que Deus é homem, que ele é homem e que lhe cabe cuidar do que é divino. Sua motivação está em sua configuração com Deus.
Por outro lado, o cristão cuida do próximo com o mesmo zelo, porque entende que Deus é homem, que o próximo também é homem e que é seu dever cuidar do que é divino. Ele sabe que está prestando um verdadeiro culto a Deus quando "cultua" seu próximo. Ele aprendeu a configurar o Outro a Deus.
Por ter um Deus relacional, o cristão obedece ao simplesmente relacionar-se com seu Deus. Não está preso a regras, mas ao relacionamento da fé. Tudo o que faz e deixa de fazer, é por amor a Deus, mas a um Deus que é homem e que está no homem. A norma vem de fora, vem do Deus encarnado, não é algo subjetivo. A obediência a essa norma não é interesseira, é consequência do relacionamento. 
O cristão não tem um Deus incapaz de amá-lo ou que o ama de maneira metafórica. Seu Deus o ama como um homem perfeito ama. Ele então se sente constrangido a retribuir esse amor com seu amor humano. Mas a quem direcionar esse amor? Ao homem, ou seja, a si mesmo e ao Outro, que ele aprendeu a chamar de "próximo" ou "semelhante". O Outro é tão humano quanto eu, meu semelhante na humanidade. O Outro é tão humano quanto Deus, seu semelhante na humanidade. Portanto, eu e o Outro somos o objeto do culto, não o intermédio ou instrumento.


O Deus cristão é um Deus-Unidade que busca a unidade, é um Deus-Comunhão que busca a comunhão. Nunca haverá no mundo uma sociedade como a Igreja e seu Deus. A Igreja não é só uma sociedade política, como Israel e o Islã. A Igreja é um organismo com seu Deus. Ela recebe e comunga o que é próprio de seu Deus. Deus se prolonga e se universaliza por meio da Igreja. Como organismo, a Igreja também se recebe e se comunga. Em qual religião pagã encontraríamos algo semelhante ao Batismo cristão, que sepulta e ressuscita todos os cristãos com seu Deus? Ou com a Eucaristia, em que a Igreja come e bebe seu Deus e a si mesma? A Igreja mergulha em seu Deus e em si mesma ao celebrar seus mistérios.
Muito significativo é que a Igreja veja seu Deus e o receba por meio dos sacramentos. Ela não possui ritos simbólicos, tudo é real, tudo é comunhão com Deus e consigo mesma. Tudo é concreto, visto que seu Deus é concreto.

"Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos AMEI, que também vós AMEIS uns aos outros" (S. João 13:34).

Com essa fala de Jesus, o Deus dos cristãos, concluo este panorama singelo da cosmovisão cristã. Qualquer pessoa honesta não deixará de considerar o impacto dessa cultura na preservação da sociedade. E não há outra forma de a sociedade escapar ao colapso, senão aprendendo com os cristãos sobre a relevância e dignidade do Homem e do Outro, enfim, de si mesma.

"É, pois, com um mesmo amor que amamos a Deus e ao próximo, mas amamos a Deus POR DEUS, e ao próximo POR CAUSA DE DEUS" (Santo Agostinho, A Trindade).




Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.