quinta-feira, 23 de junho de 2016

SER PAI: MINHA MAIOR VOCAÇÃO



A coisa mais difícil no mundo é encontrar a nossa vocação. Para que Deus me trouxe ao mundo? Qual o propósito dele em me prolongar a vida? O que ele quer de mim?
Busco essa minha vocação em minha esposa, em meus pacientes, em minha paróquia, neste blog, mas nunca senti que minha maior vocação fosse alguma dessas coisas. Sempre permaneceu um vazio dentro de mim.
Minha esposa pode viver sem mim e cuidar de si mesma. Meus pacientes sentirão minha falta só por alguns meses. Depois não se lembrarão mais de mim. Minha paróquia é minha paróquia enquanto morar em São Paulo. Este meu blog tem poucos seguidores. Nem sei se um fruto sequer resultará deste meu esforço, senão o fruto que eu mesmo colho para mim.
Mas ontem descobri a minha maior vocação. É uma criancinha toda formadinha, tão frágil e tão dependente de mim. Essa criancinha veio me mostrar para que Deus me mantém em vida. Essa criancinha está me ensinando que eu nasci para trazê-la ao mundo e para criá-la para Deus.
O milagre da encarnação de Jesus se repete a cada concepção. Cada criancinha que é concebida traz consigo Jesus. Ele mesmo disse que estaria na figura do próximo. É no próximo que devemos buscá-lo e devotar-nos a ele.
E quando esse milagre da encarnação ocorre no ventre de sua esposa? Então tudo muda! Agora me sinto um S. José, que deve proteger e criar o pequeno Jesus que já está entre nós, encarnado no ventre de uma outra Maria, que é minha querida esposa. 
Minha vocação, meu grande chamado, é cuidar desse pequeno menino Jesus e entregá-lo adulto ao seu verdadeiro Pai. Só então poderei orar com Simeão: "Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste para todos os povos: luz para revelação aos gentios e para glória do teu povo de Israel".
Só Deus sabe o quanto desejei essa concepção!
Por que somos assim? Por que queremos tanto ser pais? É porque nascemos imagem e semelhança de Deus. Não creio que a imagem de Deus foi erradicada de nós pelo pecado, como muitos afirmam. Creio que sou uma imagem borrada de Deus, mas continuo sendo imagem. E ser imagem de Deus compreende tanta coisa, que não dá para enumerar. Mas a principal imagem que herdamos de Deus é o desejo de amar gratuitamente, de ser misericordioso, de amar com amor uterino, incondicionalmente, o que só acontece com os pais.
Prossigo em meu difícil itinerário, mas agora como pai.
Muito obrigado, meu Deus, por partilhar comigo a imagem de tua paternidade misericordiosa. Ajuda-me a cuidar de teu filho e a fazer jus a esta minha maior vocação.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem: Primeiro ultrassom morfológico de meu filho.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

TEU DEUS É PAI OU JUIZ?

"Tendo o SENHOR descido na nuvem, ali esteve junto dele e proclamou o nome do SENHOR. E, passando o SENHOR por diante dele, clamou: SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração" (Êxodo 34:5-7).




Nesta passagem da Escritura, Deus proclama alguns de seus Nomes a Moisés. Não apenas o Nome impronunciável dos judeus, mas diversos Nomes pelos quais quer ser conhecido: Compassivo, Clemente, Longânimo, Misericordioso, Fiel e Juiz. Deve-se entender por Nome de Deus todo atributo seu que ele revela. Os atributos de Deus o fazem, daí serem Nomes pelos quais quer ser conhecido e adorado por suas criaturas.
Veja que Deus se revela muito bom, mas também juiz rigoroso, que não inocenta o culpado e visita o pecado dos pais em seus filhos até à terceira e quarta geração. Isso é embaraçador e até causa de escândalo entre muitos cristãos. Eu até confesso que muito me assustei com o Deus que encontrei no Antigo Testamento, quando o li pela primeira vez. Tanto é que agora, munido da Teologia da Cruz e do conceito de Deus Absconditus, eu o estou relendo, buscando compreender Deus através de seu mediador, que é Jesus, em cada texto. 
Assim como a revelação de um Deus bondoso e perdoador para a pior classe de pecadores provocou escândalo entre os judeus, hoje nós, que somos cristãos, frequentemente nos assustamos com o Deus que pune o pecado, porque insistimos numa bondade EXclusiva, sem propósito algum, amor por amor, que não permite o sofrimento, que nos isenta da responsabilidade de nossos atos, que não pode ser conciliada com julgamento. Na verdade, Deus se revela Pai bondoso e Juiz severo. Certamente um desses dois será nosso Deus, não obstante sejam um Deus só. 
Assim diz o profeta Isaías acerca de Deus: "Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas" (Isaías 45:7).
Diante de um texto como este, é importante que se mantenha que Deus é bom e santo. Ele não peca, não é causa do pecado (primária ou secundária), tampouco é causa do pecado original, não imputa o pecado dos pais em seus filhos, mas é inteiramente santo em todo o seu pensar e proceder, inteiramente santo em sua relação com as criaturas. Como ensina S. João: "Deus é luz, e não há nele treva alguma".
O texto de Isaías vem nos mostrar que Deus é onipotente sobre bons e maus. É dessa maneira que devemos entender a realidade do pecado e do mal no mundo. O pecado é sempre responsabilidade de quem o pratica e Deus nunca toma parte nisso. No entanto, Deus é onipotente e realiza seus propósitos bons e justos através de homens bons, de homens maus e através do diabo, mas de maneira tal que não peca ao fazê-lo, não é criador do pecado, nem deseja o pecado ou se apraz nele. Deus é santo e tem horror ao pecado. Também não devemos entender o pecado como necessidade, mas como contingência, fruto da vontade humana e diabólica, não de Deus. Deus não tem parte alguma com o pecado!
Ainda que o homem não seja livre para obedecer, ele peca porque quer, não por uma necessidade. Há uma deliberação anterior a cada pecado. E sob hipótese alguma, devemos atribuir a Deus essa deliberação, sem que caiamos em sacrilégio. Como exemplo, deixo as palavras de Deus a Caim: "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo" (Gênesis 4:7). É evidente que Caim não era livre para obedecer, nem por isso pecou à força, por necessidade, mas porque quis, sendo então responsável por seu pecado.
Penetramos então num terreno sacratíssimo, onde é necessário ter muita cautela. Aqui estamos pisando no terreno do Deus Abscôndito e é perigoso avançar. Então devemos nos voltar a Cristo, o mediador entre o Deus Abscôndito e o homem, para que ele nos instrua minimamente a respeito dessa relação entre bondade divina, onipotência, pecado e responsabilidade.
Jesus nos ensina que Deus é juiz severo, que não deixará nenhum pecado impune. A maneira como Cristo foi punido por Deus ao tornar-se pecado mostra a severidade de Deus para com o pecado. Os horrores de Cristo em sua paixão, crucificação e morte nos revelam a sorte de quem peca e não se arrepende. Assim Jesus clama: "Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis" (S. Lucas 13:4-5). Várias vezes cita a condenação dos pecadores impenitentes com termos terríveis, como ranger de dentes, choro, tormento em chamas, açoites, fornalha acesa e trevas. 
Com a linda parábola do filho pródigo (S. Lucas 15:11-32), Jesus nos ensina também que Deus pode afastar sua misericórdia do homem, permitindo que este caia em pecado. Na verdade, o homem só não peca mais porque Deus o impede de pecar. Se estamos na Igreja, servindo-o com singeleza de coração, é porque sua misericórdia nos assiste e preserva nesse estado. Quando Deus afasta do homem sua misericórdia, ainda que seja por um segundo, o homem cai em pecado. Embora seja inevitável a queda do homem, não é necessária, porque o homem sempre decide pelo pecado. Na parábola, o filho não foi expulso do lar paterno, mas saiu porque quis e porque seu pai permitiu. Então Deus consente que o homem caia em pecado.
Entretanto, a mesma parábola nos mostra que Deus continua amando seus filhos. Quando permite que um filho caia em pecado, Deus tem um bom propósito para com ele. Muitas vezes Deus afasta de nós momentaneamente sua misericórdia, de maneira que caímos, para que aprendamos, através do pecado e do sofrimento que nos impõe a tirania do diabo, o quanto somos frágeis e o quanto necessitamos dele. É dessa maneira que Deus trata nossa presunção. 
Muitas vezes nos sentimos muito santos, no direito de julgar nosso próximo, esquecemo-nos do que Deus fez e faz em nosso favor, de maneira que Deus se vê obrigado a afastar de nós sua misericórdia por algum tempo, para que caiamos em pecado e em miséria tal que, no chiqueiro, conheçamos melhor nossa natureza má, o barro podre que somos e a misericórdia de Deus. É assim que Deus nos trata muitas vezes, com o bom propósito de nos tornar cristãos melhores. Mas veja que o amor de Deus continua conosco, mesmo quando nos afastamos dele.
O pai quis que o filho partisse? É claro que não. Quem quis partir foi o filho. Mas o pai não o impediu. Assim também devemos entender a queda do homem no jardim do Éden. Deus permitiu a Eva e Adão pecarem. Estes pecaram por vontade, não por necessidade. Deus não queria que pecassem. Entretanto, não os impediu de pecar. Depois de haverem pecado, Deus também permitiu ao diabo que os dominasse e pervertesse sua natureza, tornando-os maus e pais de filhos maus. Por que Deus permitiu que tal tragédia acontecesse, não podemos saber. Quem conseguir explicar o porquê de o pai ter entregue ao filho a parte que lhe cabia na herança, mesmo sabendo que era loucura o que o filho intencionava, que coisas muito terríveis o aguardavam, poderá nos dar a resposta. É importante, porém, que saibamos que o plano de salvação do homem foi revelado ainda no Éden, quando Deus disse a Eva: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gênesis 3:15).
Deus muitas vezes nos permite conhecer o mal para que possamos amá-lo como Sumo Bem. Para conhecermos a misericórdia de Deus, é necessário que nos demos com os porcos no chiqueiro. Ele permite que nossa justiça desabe para que aceitemos a sua. São Paulo ordenou que um cristão de Corinto, que havia cometido incesto, fosse "entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no Dia do Senhor" (1 Coríntios 5:5). Lutero ensinou que Deus age contra a misericórdia, a fim de conduzir o homem à misericórdia (Comentário do Salmo 5). Paul Althaus, em A Teologia de Martinho Lutero, faz uma citação belíssima de Lutero: "Se alguém perguntar a Deus no dia do Juízo final: Por que você permitiu que Adão caísse?" Deus responderá: "Para que fosse conhecido que eu amo a raça humana tanto, que dei meu Filho para salvar as pessoas!" Lutero acrescentou: "Então nós diremos: deixe a raça inteira cair novamente, para que a glória seja manifestada".
Deus evidentemente se arrisca toda vez que permite ao homem cair. Que garantia ele tem que o filho haverá de voltar aos seus braços? Nenhuma! Por isso, é sempre um risco. Por que, então, Deus se arrisca dessa maneira? Não sei se há uma resposta razoável para isso. Acredito que Lutero esteja certo ao concluir que Deus não quer ser amado como Criador e Provedor, mas como Pai compassivo, clemente, longânimo, misericordioso e fiel. Deus quer ser conhecido não segundo o seu amor criador, mas segundo o seu amor misericordioso e sacrifical. Só pode dizer que teve uma experiência com Deus alguém que conheceu sua entranhável misericórdia (Rahamin). Penso que mesmo os anjos tiveram que passar por esse aprendizado, ao contemplarem o amor inflamado de Deus, que o fez tornar-se homem e morrer de maneira tão vergonhosa para salvar os homens (1 Pedro 1:12). Quem não provou a misericórdia de Deus, não o conhece e não pode lhe prestar o culto devido.
Lembro-me das palavras do Frei Raniero Cantalamessa, na Celebração da Paixão do Senhor deste ano: "É quando cria o mundo e, nele, as criaturas livres, que o amor de Deus deixa de ser natureza e se torna graça. Este amor é uma livre concessão. Poderia não existir. É Hesed, graça e misericórdia. O pecado do homem não muda a natureza deste amor, mas provoca nele um salto de qualidade: da misericórdia como dom se passa à misericórdia como perdão. Do amor de simples doação se passa para um amor de sofrimento, porque Deus sofre diante da rejeição ao seu amor. "Eu nutri e criei filhos, diz o SENHOR, mas eles se rebelaram contra mim" (Isaías 1:2). Perguntemos aos muitos pais e mães que tiveram essa experiência se isto não é sofrimento, e dos mais amargos da vida"
Portanto, é experimentando a misericórdia de Deus que somos salvos, não só uma vez, mas a vida inteira.
No entanto, Jesus nos ensina algo assustador acerca de Deus: Ele pode retirar de vez sua misericórdia de nós. O resultado disso é um coração que se fecha em si mesmo na mais profunda incredulidade e rebeldia contra Deus. É o inferno em vida!
"Por isso vos declaro [Jesus]: todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não será perdoada. Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do homem, ser-lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir" (S. Mateus 12:31-32).
Pecar contra o Espírito Santo é resistir obstinadamente ao convite de Deus. Ele insta conosco o tempo inteiro para que nos voltemos a ele. Clama, usa todos os argumentos, diz que nos gerou em seu útero, que nos ama com amor perene, que decidiu nos amar, que não é obrigação sua nos amar, que nos quer como Pai, que nos carrega, que se fez homem e padeceu os horrores do inferno para nos salvar. As Escrituras nos revelam um Deus suplicante. Ele praticamente pede por favor, que voltemos a ele. Como lemos em Jeremias: "Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o SENHOR. Pois dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas". Isaías 65:2: "Estendi as mãos todo dia a um povo rebelde, que anda por caminho que não é bom, seguindo os seus próprios pensamentos". Mas qual a nossa reação diante desse amor de mãe que adentra a cracolândia para buscar seus filhos? Dizemos: Cambada de hipócritas! Padres pedófilos! Pastores ladrões! Vocês só querem o nosso dinheiro! Vocês têm um pensamento muito retrógrado! A Igreja perseguiu e matou tanta gente, por causa de sua fé! A Igreja é uma estrutura de opressão! Cambada de homofóbicos! E assim vai. Tentam se escusar através de muitas acusações contra pecados da Igreja, que são pecados de Cristo. Quando a Igreja é acusada, o próprio Senhor também o é. Quando a Igreja é recusada, o próprio Senhor dela o é também. Não sou eu que digo isso, é o próprio Senhor! "Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou" (S. Lucas 10:16).
É assim que tratamos nosso Pai, quando nos procura em nossos antros de pecado, cheio de amor e perdão para oferecer, num gesto de pura graça, pois não é obrigação sua fazê-lo, nem foi por sua causa que entramos neste charco. Mas ele vem e nós o agredimos com acusações terríveis. Então Jesus nos ensina que Deus pode deixar de vez alguns que lhe resistem atrevidamente.
Nunca sabemos até quando Deus haverá de instar conosco. Por isso, não devemos brincar com ele. Eu mesmo oro a Deus todos os dias por aqueles amigos e familiares que estão distantes do Senhor e minha oração é sempre a mesma: Por favor, Deus, não os abandones, continua instando com eles. Não desistas deles! Peço isto por favor!
Quando Deus afasta sua misericórdia de vez, o inferno é instaurado ainda neste mundo. Porque o inferno é a privação eterna da misericórdia divina. Quando o homem é privado dessa misericórdia, o inferno tem início, ainda que não tenha morrido. Isso é lamentável!
Não é prudente confiar em si mesmo. Também é loucura confiar em um Deus fabricado por nós mesmos, politicamente correto, adequado às nossas ideologias, acomodado às nossas necessidades pecaminosas. Isso é uma imprudência gravíssima, que poderá resultar em nossa perdição eterna.
Deus nos deu seu Filho como Pregação Viva. Jesus é um acontecimento histórico. Ninguém poderia ensinar o que ele ensinou na época em que viveu. Sua mensagem é a maior prova de sua passagem por este mundo. Por isso, voltemos nossos ouvidos à pregação desse Jesus, única que pode verdadeiramente nos salvar. Ideologia não salva ninguém, mas a pregação de Jesus salva!
Deus é bom, mas também é juiz. Não revelou isso para que vivêssemos amedrontados, mas para que desçamos de nosso pedestal e nos penitenciemos. 
Como afirmei acima, Deus é um só: Pai ou Juiz. Você sempre terá um ou outro. Para os que creem, Deus é sempre Pai. Para os que não creem, Deus é sempre Juiz.
Quero concluir com S. Paulo: "Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo [aos que creem], a bondade de Deus, se nela permanecerdes; doutra sorte, também tu serás cortado" (Romanos 11:22).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

DA ECLESIOLOGIA LUTERANA NÃO ABRO MÃO!



Um dos motivos que me fizeram aceitar o luteranismo como expressão de minha fé é sua rica eclesiologia, que entende por Igreja Católica o Reino de Deus no mundo. Onde estão a pregação do Evangelho e os sacramentos, ali está a Invencível e Santa Igreja Católica, sem sombra de dúvida. O luteranismo também não vê a Igreja Católica (ou Visível) como um enorme edifício erguido somente para servir a um pequeno contingente de predestinados à salvação. Todo aquele que está na Igreja Católica pertence ao Corpo de Cristo e deve crer nisso. Para o luteranismo, isso sai da subjetividade e torna-se objetivo, aliviando as consciências quanto a se foram predestinadas ou não.
Lutero via a Igreja do Senhor não só em Wittemberg, mas em Roma, Antioquia, Jerusalém, Genebra e no mundo inteiro, sempre onde houvesse anúncio evangélico, ainda que os ministros fossem impiíssimos! A Igreja é tão visível quanto as Escrituras e os sacramentos e para ela devem vir todos aqueles que desejam ser salvos.
Quando Lutero se posiciona contra a Igreja de Roma, ele, na verdade, denuncia seus papas e bispos que perseguem a doutrina da justificação somente pela fé. Com muito respeito ele trata o povo simples, que desconhece a complexidade das questões teológicas envolvidas.
Então alguém retruca: "Somente os luteranos têm a verdadeira compreensão do Evangelho e dos sacramentos. Logo, somos a verdadeira Igreja Católica". A resposta de Lutero a isso é curta e afiada como uma faca: "Pois o Batismo, o Evangelho, etc., não são profanados porque eu sou poluído e profano e não tenho o conhecimento correto deles. Eles permanecem santos e os mesmos" (1).
Portanto, encontrei no luteranismo o ÚNICO caminho para o ecumenismo entre os cristãos.
Fico muito triste quando vejo a eclesiologia luterana se desmoronar. Já li teólogo luterano de respeito afirmar que a Igreja Católica é a Igreja Evangélica Luterana. Como se empobrece com isso a rica eclesiologia luterana! De repente, passamos a pensar igual à maioria dos teólogos romanos, que confundem a Igreja Católica com a Igreja de Roma.
Por outro lado, fico arrasado ao constatar que muitos luteranos caíram no erro de achar que a Igreja Católica apostatou e, por conseguinte, atribuem a Lutero a fundação de um nova Igreja. Se a Igreja Católica apostatou, ela deixou de ser Igreja. Então coube a Lutero começar do zero uma nova Igreja. Esta é a consequência lógica. Conclui-se, então, que as portas do inferno prevaleceram sobre a Igreja, que Cristo não esteve presente todos os dias em sua Igreja, que seu Reino se desfez e que suas promessas não foram cumpridas. 
Na verdade, Lutero considerava HERESIA a doutrina que assevera ter a Santa Igreja Católica apostatado. Reputava todos os adeptos dessa heresia sectários e fanáticos.
Vez ou outra aparece alguém dizendo: "Lutero deve estar se revirando no túmulo", quando arrogamos o catolicismo como igualmente nosso. No entanto, com base em seus escritos, ele se "revira no túmulo" toda vez que é pregada a apostasia da Igreja, em seu nome. Para Lutero, a Igreja Católica é sempre santa, nunca apostatou e nunca irá apostatar, apesar da opressão terrível que o diabo e mundo lhe impõem. Ela pode estar presa, amordaçada e ferida da cabeça aos pés, não obstante é santa e Corpo de Cristo. Ainda que a fé esteja encurralada, continua sendo fé e causa da justificação. É assim que a Igreja Católica sempre se mantém muito viva e santa em meio aos terrores do inferno. Isso é milagre de Deus e artigo de fé.
Chega de meninice! Quem não aprendeu essa visão de Lutero sobre a Igreja precisa ler mais a Bíblia, estudar Lutero, prestar mais atenção aos credos e orar a Deus para que aprofunde sua visão sobre o Santo Corpo de Cristo no mundo. Quem chama a Igreja Católica de apóstata está ofendendo o próprio Cristo e o Espírito Santo, que nela habita.
Sou luterano e quero cada vez mais me aprofundar no pensamento deste homem de Deus, chamado Lutero, de todos os pensadores da história o menos compreendido. Não aceito que seu rico legado seja barateado dessa maneira.
Se há protestantes que acreditam na apostasia da Igreja Católica, deixe-os para lá! Não tomemos parte nisso.
Lutero tem a palavra:
"Assim, também, nós, hoje, chamamos a Igreja católica de santa e todos os seus episcopados de santos, embora sejam subvertidos e seus ministros, ímpios. Deus, na verdade, "domina entre os seus inimigos", "o anticristo assenta-se no santuário de Deus" e satanás está presente entre os filhos de Deus. Mesmo que a Igreja esteja "no meio de uma geração pervertida e corrupta", como diz Paulo em Fp 2, mesmo que esteja em meio a lobos e salteadores, isto é, tiranos espirituais, no entanto, ela ainda é Igreja. Permanecem na cidade de Roma, embora seja pior que Sodoma e Gomorra, o Batismo, o Sacramento, a voz e o texto do Evangelho, a Escritura Sagrada, os ministérios, o nome de Cristo e o nome de Deus. Aqueles que têm, têm, mas aqueles que não têm, não são escusados, pois o tesouro ainda está ali. A Igreja de Roma, portanto, é santa, porque tem o nome de Deus, tem o Evangelho, o Batismo, etc. Se estes estão com o povo, então o povo é chamado santo (...). Onde, pois, a Palavra e os sacramentos permanecem substancialmente*, ali está a santa Igreja, mesmo se nela reina o anticristo, que não se assenta num estábulo de demônios, nem num curral de porcos, nem em meio à ralé de infiéis, mas num lugar muito nobre e santo, a saber, no templo de Deus" (2).

(1) Dr. Martinho Lutero, Comentários à Epístola aos Gálatas, Martinho Lutero - Obras Selecionadas, vol. 9, pág. 47; tradução: Paulo F. Flor, Editora Concórdia.
(2) Ibidem, pág. 46-47.
(*)Com a palavra "substancialmente", Lutero resguarda o poder do Evangelho de sua compreensão errônea. Ainda que não compreendido da maneira correta, continua sendo poderoso para salvar.
Observação: As aulas sobre Gálatas foram proferidas pelo chamado "Lutero maduro", datadas de 1535, ou seja: 5 anos após a promulgação da Confissão de Augsburgo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

QUEM É SUA MÃE...



Pedro, há tanta coisa que preciso lhe dizer, que nem sei por onde começar. Então vou começar pelo começo: você tem um pai e uma mãe. É importante que você guarde isso. Infelizmente, nem toda criança tem pai e mãe. O mundo está cada vez mais confuso.
Não só você tem pai e mãe, como também tem um lar. Antes mesmo de sua chegada, eu e mamãe já éramos uma família. Portanto, você irá nascer no seio de uma família. Você não é uma produção independente.
Outra coisa, Pedro: você é fruto de muito amor entre um homem e uma mulher. Papai e mamãe se amam, dividem tudo: dores e alegrias, conquistas e fracassos, riquezas e pobrezas, sabores e dissabores; amparam-se um no outro, participam das lutas um do outro, constroem juntos e permanecem juntos. Papai e mamãe são fecundos porque se amam. Desse amor resulta vida. Desse amor resultou a sua vida. 
Não se esqueça nunca, nunca que você é fruto do amor. O amor o concebeu antes de sua concepção, porque você já existia no coração de Deus e em nosso coração.
Papai e mamãe nunca gritaram um com o outro. Nunca nos ofendemos com palavrões. Nós nunca levantamos o braço um contra o outro. Nós nos respeitamos. E com o mesmo respeito mútuo que com zelo cultivamos, iremos respeitá-lo também. Isso é outra coisa muito importante, que eu faço questão de lhe contar.
Hoje vou falar um pouco da mamãe, de nosso namoro, noivado e casamento. Há coisas que você precisa saber. 
Filhinho, haverá sempre uma primeira vez e uma última para tudo na vida. Por isso é necessário viver com intensidade cada momento. Pode não ser a primeira vez, mas sempre existirá a possibilidade de ser a última.
O meu namoro com sua mãe começou numa noite de sábado, dia 22 de setembro de 2007. Como foi nosso primeiro encontro? Um diálogo pela internet. Pela primeira vez conheci a inteligência de sua mãe, clareza de expressão e sinceridade. Você tem uma mãe muito inteligente, culta, observadora, perspicaz e sincera.
Na semana seguinte, numa quarta-feira, conheci a voz dela. Sim, nós nos falamos por telefone pela primeira vez. Que voz doce! Dulcíssima! Era impossível não me apaixonar por essa voz! Um dia você conhecerá essa voz e então irá se sentir muito acolhido, querido e seguro, como me senti naquele dia. Até mais, porque você é uma criança e filho. Eu, que já tinha meus 27 anos, senti-me assim. Imagine você! Uma mãe terna. Que privilégio hein, Pedro? 
As coisas tiveram prosseguimento, porque sua mãe é corajosa. Somente uma mulher corajosa escreveria isto: "Não sei o que acontecerá daqui em diante, mas tudo isso que tem acontecido em minha vida já tem valido a pena (...). Confesso que não quero que isso acabe. Confesso que quero mais". Você terá uma mãe corajosa, que não desiste do que vale a pena, que avança, que insiste, mas que também tem a coragem de dizer: não consigo, isso não é para mim, estou cansada. Essa mãe irá defendê-lo e lutar por você até quando você tiver condições de lutar sem ela.
Dia 12 de outubro daquele ano, sexta-feira, vim a São Paulo para conhecê-la e oficializar nossa situação. Nós nos encontramos na estação de metrô da Vila Madalena através de um abraço demorado e silencioso. Depois saímos de mãos dadas em direção ao táxi, como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Sua mãe fala pouco com a boca, mas é eloquente no olhar. Você terá que treinar sua sensibilidade para apreender os sentimentos e pensamentos dela, que ela só deixa transparecer pelo olhar. Acredito que pessoas muito complexas são assim. Nem tudo pode ser expresso por palavras, sobretudo os sentimentos complexos. Daí o recurso do olhar. Falar com os olhos também é o recurso dos sinceros, porque os olhos nunca mentem. Nunca, meu filho! O olhar não pode ser premeditado. 
O local que escolhemos para nosso primeiro encontro foi o Shopping Villa Lobos. Conversamos demoradamente. Sua mãe fala pouco, mas é excelente ouvinte. Ela é capaz de ouvir por longo tempo. Isso é bom, meu filho! É tão bom ter uma mãe que sabe ouvir. Você terá alguém para ouvir suas queixas, desabafos, histórias e estórias. Outra coisa: sua mãe é tão boa ouvinte, que ela é capaz de ouvir até o silêncio e respeitá-lo. Ela sabe o que quero dizer com o meu silêncio e o interessante é que ela não o quebra. Ela dialoga com o meu silêncio através de seu silêncio. A única coisa que quebra esse diálogo de silêncios é a lágrima.
Por falar em lágrima, sua mãe chora, viu?! Não frequentemente. Por isso, nunca suas lágrimas deverão ser banalizadas. Se um dia a vir chorando, não despreze essas lágrimas, porque elas são raras e necessárias. Ouso dizer que sua mãe sangra pelos olhos. Por isso, filho, aprenda desde cedo a valorizar as lágrimas de sua mãe. 
Sua mãe é compreensiva e empática. Ela está sempre disposta a entender e a sentir junto.
De onde vem a força dos empáticos, filho? Do amor. Só o amor nos torna empáticos. Portanto, sua mãe ama. Sua grande distinção é a capacidade de amar verdadeiramente. 
Filho, sempre alguém lhe dirá que o ama. As pessoas declaram isso umas às outras o tempo todo, mas aprenda que o amor está na compreensão e na empatia. Você pode não concordar com o outro, mas quando há amor verdadeiro, é certo que irá compreendê-lo e sentir-se no seu lugar. Isso sua mãe vivencia muito bem. 
Ao longo de todos estes anos de namoro, noivado e casamento, aprendi que sua mãe é superficialmente uma pessoa forte e dura. Intimamente, porém, é frágil e medrosa. Veja que é possível ser frágil e medroso, mas ao mesmo tempo corajoso. Coragem e destemor não podem ser a mesma coisa, porque é plenamente possível sentir medo e ser corajoso. Creio até que o mais corajoso é aquele que admite seu medo e enfrenta-o, decidindo o que é necessário decidir e fazendo o que é preciso fazer.  Com medo e muita coragem ela decidiu noivar-se e casar-se comigo com apenas 6 meses de namoro. Com medo e muita coragem foi viver com papai em Uberaba. Com medo e muita coragem decidiu vir comigo para São Paulo. Com medo e muita coragem disse sim à sua vinda. Com medo e muita coragem está enfrentando esta gravidez.
Filhinho, que mãe é essa que Deus lhe deu? Um grande amigo meu, ao conhecê-la, sintetizou-a da seguinte maneira: ela é simples e sofisticada ao mesmo tempo. Sinceramente falando, nunca consegui uma síntese melhor de sua mãe.
Mas há o mais importante: ela é cristã. É uma mulher extremamente honesta, virtuosa e cheia de fé. Sua mãe não nasceu assim. Ela se tornou assim devido a uma interação entre fé e mundo. Ela é uma interpretação de si mesma e do entorno pelos olhos da fé, assim como todos os cristãos autênticos. A fé de sua mãe a construiu. Ela não foi construída pelo mundo, mas por uma feliz interação entre fé e mundo. Daí os valores de sua mãe, que lhes são essenciais. A fé tornou a ética e moral de sua mãe coisas essenciais, das quais ela não pode abrir mão. Não é ética e moral quando quer, mas essencialmente. É assim que ela ajuda seu pai a viver uma vida honrada e casta. 
Meu filho, aprenda com sua mãe a erguer o edifício de suas virtudes sobre uma rocha chamada Cristo. Não erga seu edifício de virtudes sobre a areia do mundo. Quem é feito virtude por Cristo suporta tudo. Quem só aprende a virtude não suporta os temporais da vida. A fé nós iremos lhe dar, porque com gosto nós o batizaremos. Depois caberá a você cultivar essa fé e deixar que ela o construa sobre Cristo, como sua mãe o fez e continua fazendo.
Filhinho, honre essa mãe assim como tenho procurado honrá-la. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

AS DUAS MENTIRAS - PARTE 2

"Deus é o existirmos e isto não ser tudo" (Fernando Pessoa).



A outra mentira que a razão dogmatizou é a liberdade humana.
Ah, a liberdade humana e o livre-arbítrio! Como nos deleitamos em ser senhores de nossa vida, possuidores de cada decisão e determinantes de nosso futuro! Como isso nos enobrece até Deus!
Entre os que professam alguma religião, a única maneira de explicar a salvação dos bons e a perdição dos maus é o livre-arbítrio, único argumento racional para salvaguardar a bondade de Deus e sua imunidade diante do pecado. 
Entretanto, o ser humano não é livre. A liberdade humana não passa de utopia.
Todo o nosso agir e pensar é condicionado por inúmeros fatores. Cada um de nós tem uma história, traumas, medos, ideologias, contextos e limitações que nos condicionam a agir e pensar de determinada maneira, diante de determinadas circunstâncias. 
O avarento não desejou ser avarento. Tornou-se avarento por causa de muitos fatores condicionantes. O adúltero desejou adulterar, mas sua decisão foi limitada por muitos fatores condicionantes. A prostituta desejou prostituir-se, mas dentro de um contexto amplíssimo. E assim por diante, para cada erro do homem, podemos encontrar muitos fatores que condicionaram sua decisão, de maneira que não se pode dizer dele que seja livre.
Como médico infectologista, lido muito de perto com a realidade do pecado e posso dizer categoricamente: nenhum de meus pacientes foi ou é livre. Machismo, imaturidade, individualismo, paganismo, niilismo, questões familiares complexas, abuso sexual, traumas, pouca ou nenhuma autoestima, pobreza financeira, cultural e moral, etc. Eis alguns dos muitos fatores que nos condicionam a agir e pensar contra nós mesmos, contra o próximo e contra Deus.
Outra prisão do homem é a razão. O homem a ela serve com obediência de escravo. Somente o que é lógico é verdade. Muitas tragédias humanas foram e estão sendo provocadas pela lógica da eugenia, da vingança, da meritocracia e do nacionalismo.
A maldade humana é também outra prisão. O homem é condicionado por essa maldade essencial a agir e pensar de maneira má, até quando busca a virtude, conforme expomos no texto anterior. Mesmo fazendo o bem e cultivando a virtude, o homem é incapaz de fazê-lo por amor ao bem e à virtude, sendo movido pelo desejo egoísta de salvar-se. 
Entretanto, nenhuma prisão é pior que a alienação. Ela não permite ao homem lutar pela liberdade, porque lhe dá a falsa impressão de ser livre.  
Jesus nos mostra que Deus se compadece deste nosso cativeiro. Ele não é um juiz irado, mas um pai compassivo, como percebemos nos evangelhos: "Vendo ele [Jesus] as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor"; "vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve". "Responderam-lhe [os judeus]: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado"
A compreensão do cativeiro humano é que move o coração misericordioso de Deus. Ele sabe que homem algum é livre e seu objetivo é libertá-lo. Quando as Escrituras falam de salvação, elas sempre se referem à liberdade.
Igualmente, devemos ser condescendentes uns com os outros porque somos todos escravos. O pecado não é uma responsabilidade puramente individual, mas social. Nós é que estabelecemos muitos dos fatores que condicionam o comportamento humano, direcionando-o ao mal. 
Em nossa relação com Deus, não podemos ser livres também. A maldade inata, a razão e a alienação nos impedem de nos relacionarmos com Deus livremente. A maldade não aceita ser má por ser má, assim como o louco não admite ser louco, o arrogante não admite sua arrogância, nem o avarento a sua avareza, e assim por diante. A razão nos aprisiona à lógica de um Deus amoroso para quem é perfeito e juiz severo para quem está em pecado. Ela nos rouba a misericórdia divina, sem a qual Deus deixa de ser Deus. A alienação nos torna acomodados em nosso cativeiro. Portanto, o homem não é livre para optar por Deus.
Lutero era um perseguidor implacável da doutrina do livre-arbítrio. Para ele, o livre-arbítrio é doutrina puramente pagã. Deixo aqui algumas de suas colocações acerca do livre-arbítrio, em sua obra Da Vontade Cativa, bastante polêmicas, por colidirem com um dogma racional: "Se o reino é tal qual Cristo o descreve, o livre-arbítrio nada será a não ser um animal de carga cativo de Satanás, o qual não pode ser libertado se antes o diabo não for expulso pelo dedo de Deus (...). Desconhecendo a justiça, como se esforçará por alcançá-la? Desconhecemos o pecado no qual nascemos, no qual vivemos, nos movemos e no qual existimos, sim, o pecado que vive, se move e reina em nós. Como haveríamos de conhecer a justiça que reina fora de nós, no céu? Essas palavras fazem do livre-arbítrio menos do que nada".
O homem só se torna livre quando, através da fé, identifica-se como filho de Deus. São Paulo ensina: "Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade". Também: "Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai".
Na filiação de Deus o homem encontra a sua liberdade. Quem é filho de Deus e crê em seu amor e misericórdia, está apto para buscar a virtude por amor à virtude, pois sabe que já pertence a Deus, mediante a fé, e que não será necessário persegui-lo ou conquistá-lo. Quem é filho de Deus não precisa viver sob o temor de condenação, porque um Pai compassivo não condena seus filhos. Quem é filho de Deus é livre para fazer o bem desinteressadamente, pois tem ciência do amor incondicional de Deus e não busca negociar esse amor com méritos. Somente quem recebe de graça a recompensa está desonerado de buscá-la egoisticamente. Somente assim é possível olhar para o lado e contemplar no irmão não um meio, mas o fim.
Quanto a Deus, como Pai, ele não aceita que seus filhos permaneçam alienados e escravizados pelo pecado. Ele desvenda seus olhos para que vejam seu cativeiro e lutem contra ele. Perdoa seus pecados e concede-lhes os meios para combatê-los: Palavra e Sacramentos. Portanto, somente na filiação divina o homem se torna livre. 
Obviamente, é uma liberdade consumada escatologicamente e progressiva no tempo presente, pois o filho de Deus, enquanto viver neste mundo, estará sob os mesmos condicionantes do pecado que todo o mundo. No entanto, o fato de conhecer a liberdade verdadeira o estimula a lutar permanentemente contra o cativeiro presente. É então que a vida cristã se torna uma permanente luta contra o cativeiro e um progresso contínuo em direção à liberdade.

Observação: Neste texto e no anterior, entenda a palavra "essencialmente" como "por natureza". Nestes textos não trabalhei os conceitos filosóficos de substância e acidentes.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


segunda-feira, 6 de junho de 2016

AS DUAS MENTIRAS - PARTE 1

"Não possuímos nem o corpo, nem uma verdade - nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro" (Fernando Pessoa).


A razão dogmatizou algumas mentiras, das quais é difícil ao homem livrar-se. Na verdade, é impossível, a menos que Deus intervenha. A principal mentira que nossa razão dogmatizou é a bondade inata do homem. A segunda é a liberdade humana.
A razão insiste na ideia de que o homem é essencialmente bom. De fato, não é racional que um Deus bom tenha criado o homem mau. Se Deus é bom, toda a sua obra é essencialmente boa, inclusive (e principalmente) o homem. Isso é bastante lógico. De onde, então, viria o mal? A razão estabelece uma fraqueza inata do homem, que o predispõe ao mal. Também intui que todos os erros decorrem de imitação. 
A realidade, no entanto, nos impõe algumas dificuldades. Percebemos que o mal nos vem involuntariamente. Quando não o queremos, mais forte ele se torna. Todavia, quando queremos fazer o bem e o que é correto, encontramos em nós uma tremenda resistência. Onde localizar esse fluxo e contrafluxo, senão em nossa natureza?
Por exemplo, como é fácil odiar alguém que nos ofende! Perante um insulto nenhum de nós permanece incólume. Antes, somos todos tomados de ira e, quando quem nos ofende é objeto de nosso amor, a ira se transforma em ódio. Tudo isso se processa de maneira tão espontânea e sem esforço quanto a digestão. O mesmo também podemos dizer da espontaneidade da inveja, do egoísmo e da vingança.
Por outro lado, perdoar, dedicar-se ao outro, amá-lo e querer-lhe bem requerem um tremendo esforço de nossa parte, sobretudo quando se trata de um inimigo. 
Se o homem fosse essencialmente bom, não é de se esperar que a maldade fosse espontânea e a bondade uma disciplina. Deus é verdadeiramente bom porque não se esforça por fazer o bem. Antes, é-lhe impossível fazer o mal. Isto é ser essencialmente bom! Se tomarmos Deus como modelo, o homem não pode ser considerado bom. Como disse Jesus: "Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos" (S. Mateus 5:44-45).
O homem busca racionalizar seu comportamento mau, partindo da premissa que é essencialmente bom. A razão existe para isso: para harmonizar elementos que são intelectualmente conflitantes. A racionalização do mal, porém, não resolve o problema da maldade humana. Ela está aí, como fato inegável.
Então permaneçamos no meio: nem tanto ao céu, nem tanto ao mar. Supondo que o homem seja essencialmente mau, é certo que ele necessita do bem e o busca. Afinal, não se deve desprezar o esforço humano pela bondade. A bondade não é algo natural ao homem, mas almejada sinceramente por ele. 
De fato, é instintiva a busca do bem pelo homem. São duas realidades muito impactantes: a maldade humana e a busca instintiva do bem. Ambas as realidades se sobrepõem no homem e na sociedade. 
Devemos entender o anseio do homem pelo bem como anseio de Deus. O homem sabe que Deus existe e é bom. O homem igualmente busca esse Deus como destino, recusando-se a aceitar a bondade sem recompensa e a morte como fim de todas as coisas. Ele quer ser recompensado! E essa recompensa vem de Deus, está em Deus e é Deus. Mais ou menos, percebemos esse raciocínio em quase todas as religiões do mundo. Portanto, o homem busca o bem não como fim, mas como caminho. O homem tem um objetivo que transcende este mundo e é puramente egoísta. 
Percebemos que qualquer esforço pela virtude como fim, não como caminho, desvencilhado do conceito de Deus, não sustenta a virtude social. É então que concluímos ser o homem mau até quando deseja o bem, visto que o essencialmente bom deveria se satisfazer com o bem, não tendo outro objetivo senão o bem. Novamente, recorro à imagem de Deus como Sumo Bem, que não sabe nem quer outra coisa que não o bem. 
Aqui está uma tentativa de justificar racionalmente a natureza má do homem. No entanto, ninguém consegue convencer o homem de sua maldade, ainda que utilize todos os argumentos do mundo. É impossível constatar-se mau quando se é mau. A própria maldade do homem, que o faz centrar-se e deleitar-se em si mesmo num narcisismo sem fim, não pode admitir isso. O louco também não admite que é louco.
Por isso a revelação de Deus é necessária para que saiamos de vez do estado de alienação em que existimos. Essa revelação é exterior e interior. Exteriormente foi dada a um povo, o povo da revelação, que é o povo judeu. Interiormente ela está presente em todos os homens e chama-se moralidade. Obviamente, é necessário que haja uma compreensão interior da revelação exterior, que infelizmente é impossível ao homem, pelas razões aludidas acima. O mesmo se deve dizer da moralidade, que é mais ou menos apreendida individualmente. Deus buscou revelar ao povo judeu sua maldade, promulgando a Lei entre eles. No que isso resultou? Numa busca desesperada pela virtude como meio de se chegar a Deus. A Lei que foi dada aos judeus com o intuito de mostrar-lhes sua maldade, tornou-se forma de aprimoramento moral e espiritual.
Infelizmente, algo semelhante sucedeu com o cristianismo, que busca na Lei dos judeus o caminho da felicidade e de união a Deus, enfatizando a virtude como auxílio à salvação. O cristão crê que não é salvo pela observância da Lei, mas dela não abre mão, não aceita entregar-se totalmente ao conceito de justificação SOMENTE PELA FÉ E NÃO POR OBRAS. No final das contas, cede espaço à razão, que ensina a necessidade de a fé associar-se às obras para que o homem se una a Deus.
Somente Deus pode revelar ao homem seu real estado. Somente o sobrenatural pode vencer o natural, como lemos em Ezequiel 36:26: "Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne".
Embora seja próprio da natureza humana buscar o bem, poucos são os que se reconhecem maus. Esses poucos certamente precisaram de Deus para chegar a essa conclusão. É então que percebemos que a revelação exterior (a Lei) ou interior (a moralidade) deve associar-se a uma compreensão íntima, para que o homem chegue à verdade. Essa compreensão é algo sobrenatural e divino.
Alguém poderá dizer: Ora, se isso não está em meu poder, não é problema meu! Com certeza é um problema seu e nosso, cuja solução está em Deus. De que adianta ao homem gastar-se tanto em vão, ludibriado por si mesmo? Fomos criados para a Verdade e vivemos em função dela. Somos filhos de Deus e para ele precisamos retornar. Deus também deseja esse retorno e por isso nos deu a revelação e quer, por meio dela, salvar-nos.
Se você pensa que é bom, saiba que Deus não pensa o mesmo de você. Por isso peça a ele que abra seus olhos à sua real condição e que converta sua maldade em verdadeira bondade, pois ele prometeu: "Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz o SENHOR; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais. Então me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração" (Jeremias 29:11-13).
Quanto ao cristão, que tem buscado na Lei um complemento à fé, que ouse ir até às últimas consequências da doutrina capital do cristianismo: o homem é justificado somente pela fé, sem a participação das obras
Sobre a outra mentira que a razão dogmatizou trataremos na próxima postagem.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



quarta-feira, 1 de junho de 2016

DE PAI PARA FILHO



Meu filho, escolhi para você um lindo nome, que desejo muito que lhe sirva de rumo nos momentos mais importantes de sua vida, em que for preciso tomar uma decisão.
Siga seu coração! Não gostaria que você se fechasse no medo. São Pedro era impulsivo, seguia suas emoções, experienciava cada momento de maneira visceral. Por ímpeto, abandonou tudo para seguir Jesus. Por ímpeto, adiantou-se em confessar Jesus como Messias, Filho do Deus vivo. Por ímpeto, não hesitou em pisar sobre as águas. Por ímpeto, feriu um dos soldados do sinédrio, para proteger seu amigo. Siga seu coração! Vá quando tiver que ir. Fique quando tiver que ficar. Fale o que tiver de falar. Ouça o que tiver de ouvir. Cultive a liberdade, meu filho; não a tema! Seja autêntico e espontâneo como S. Pedro.
Meu filho, seja um amigo leal, como foi S. Pedro. Como esse apóstolo amava Jesus! Como lhe era íntimo! Não há quase nenhum episódio, em todo o ministério público de Jesus, em que S. Pedro não estivesse ao seu lado. Esteja ao lado de quem você ama, priorize isso! Esteja ao lado de quem você ama na riqueza do Monte Tabor e na miséria do Calvário. Aprofunde seus relacionamentos. Não tenha medo de amar e de entregar-se a quem você ama. Ame! Ame sempre!
Aprenda que o valor do homem lhe é intrínseco. Não queira buscar seu valor na opinião dos outros a seu respeito, em diploma, títulos, fama ou riquezas. Aprenda com S. Pedro que Deus o quer nu, somente com aquilo que você é essencialmente. Ele o quer pobre pescador, inculto, mas homem, objeto de seu eterno afeto. Ele o quer homem e Pedro! Se você não gozar prestígio social e riquezas, se sua vida for anônima - a maioria das vidas são anônimas! - não queira se menosprezar. Deus se alegra de você, ainda que seja pobre em todos os aspectos. O amor de Deus é tudo o que o homem precisa saber, para sair de seu estado lastimável de orfandade. Isso você tem e sabe que tem. E Deus não o ama pelo que você alcançou em vida, mas ele o ama com amor eterno, quando você não tinha nada, nem sequer a existência. Isso é tudo o que um homem precisa saber em vida.
Tempos difíceis são estes, meu filhinho! Os de S. Pedro também foram. Nem por isso ele se entregou. Fez o que pôde para amenizar a situação miserável do mundo, trabalhando honradamente com sua rede de pescar. Essa foi sua pequena, mas muito significativa parcela. 
Aprenda que Deus dá coisas maiores a quem é fiel no pouco. De pescador de peixes, Deus o fez pescador de homens. Com isso, de simples homem que vendia peixes para saciar a fome corporal, tornou-se o príncipe dos apóstolos, a coluna mais vigorosa da Igreja, passando a alimentar almas com o Pão da Vida, com o Sumo Peixe.
Filho, é certo que você irá cometer pecados graves. Infelizmente isso irá acontecer. Mas quando isso acontecer, lembre-se do olhar que Jesus dirigiu a S. Pedro, conduzindo-o à mais profunda contrição. Esse olhar de Jesus salvou S. Pedro e salvará você. Aprenda com S. Pedro sobre a inesgotável misericórdia de nosso Deus, que nunca nos nega, sempre nos espera e perdoa.
Filhinho, não queira ser um herói, um super-homem. Aprenda desde cedo suas limitações. As limitações não o desqualificam, mas o humanizam. Ao ser questionado três vezes por Jesus se o amava com o amor perfeito, São Pedro não ousou ir além do que podia oferecer. Se o amor perfeito é aquilo que ele viu na cruz em seu favor, é certo que não lhe era possível amar seu Senhor com a mesma profundidade e perfeição. 
Meu filho querido, persiga a coerência. São Pedro humildemente aceitou ser corrigido por S. Paulo quando agiu de modo incoerente. Também não se engesse em suas opiniões e esteja aberto às surpresas da vida. São Pedro ficou impressionado ao vir o derramamento do Espírito Santo sobre o gentio Cornélio. Não entrou em crise por causa disso, mas com a impulsividade que lhe era peculiar foi e batizou Cornélio. 
Para concluir esta sessão de conselhos paternais, peço-lhe que apascente sua família e todas as pessoas que Deus colocar em sua vida. Apascente-as com amor, cuidando de sua integridade física, emocional e espiritual. Não tenha pressa com quem vier necessitado ao seu encontro. Olhe, abrace, corrija com ternura, aconselhe, levante o caído, enfaixe feridas, socorra o fraco. Enfim, importe-se com o outro! Cuide do outro!
Meu filhinho do coração, não quero que você seja igual a S. Pedro. Todo ser humano é único! Mas aprenda com ele a lidar com questões humanas e universais. 
Acima de tudo, saiba que eu o amo. Incondicionalmente eu o amo e prometo amá-lo enquanto vida eu tiver. Somente o seu coração batendo mudou minha vida para sempre. Somente o seu coração e nada mais...

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.