quinta-feira, 25 de maio de 2017

ASCENSÃO E A CRISTOLOGIA LUTERANA

"Ora, ninguém subiu ao Céu, senão aquele que de lá desceu, o Filho do homem" (S. João 3:13).


Nós, luteranos, professamos que a ascensão de Jesus não foi a ascensão de sua humanidade a um lugar específico chamado Céu. Nós professamos que a humanidade de Cristo ascendeu à Destra do Pai. Cremos que por ser homem e Deus em uma única pessoa indivisa, o Cristo inteiro, obviamente com sua humanidade, encontra-se em todo lugar onde a Destra do Pai está, ou seja, em absolutamente todo lugar. Onde o Pai está, Cristo ali está. Onde Cristo está, ali está também sua humanidade. É evidente que a carne de Cristo está em todo lugar não de uma maneira natural, mas mística e incompreensível à razão humana. 
A natureza humana não pode estar em todo lugar. Por sua vez, a natureza divina não pode ser vista pelo homem. Entretanto, na pessoa indivisa de Cristo, onde ambas as naturezas se encontram, o que é próprio da Divindade é comunicado à humanidade. Igualmente, o que é próprio da humanidade é comunicado à Divindade. Com isso, na pessoa de Cristo, Deus é homem e o homem é Deus. Em Cristo, Divindade e humanidade se penetram e compartilham seus atributos, de forma que a humanidade é onipresente e a Divindade passa a ter um rosto humano. Na teologia, isso é chamado de comunicação de atributos.
Portanto, a humanidade de Cristo é onipotente e onipresente, não por causa de sua natureza, mas por causa da Divindade na qual está fundida e com a qual está impregnada, em uma só pessoa. 
Nós não cremos que um Cristo-Deus está conosco, enquanto que um Cristo homem-Deus encontra-se em um lugar chamado Céu. Não, nós sustentamos que Cristo é sempre homem e Deus, em todo lugar onde Deus está, inclusive em nossa alma, onde ele habita. Inclusive no inferno!
Qualquer ensinamento que contrarie essa doutrina deve ser encarado como nestorianismo*, pois divide Cristo em duas pessoas, uma humana e outra divina, que só se encontram em um determinado lugar chamado Céu. Para nós, luteranos, Deus e homem estão fundidos para sempre na pessoa de Cristo.

*Nestorianismo: Heresia pregada pelo Bispo Nestório, no século V da Era Cristã. Nestório professava que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém negou que a Virgem Maria fosse mãe de Deus. De acordo com sua opinião, ela era mãe somente da humanidade de Cristo. Com isso, ele separou o Cristo homem do Cristo Deus, constituindo dois Cristos: um puramente humano e outro puramente divino.
Parece uma doutrina inofensiva, mas ela nega a participação de Deus na redenção humana. Se levarmos a sério a doutrina de Nestório, concluiremos que o Verbo de Deus não nos redimiu, mas somente o homem que nasceu de Maria. Pois se Deus não pode nascer de Maria, também não pode cumprir a Lei em nosso favor, nem sofrer no Getsêmani, muito menos morrer para expiação de nossos pecados. Assim, o Verbo de Deus continua como sempre foi junto ao Pai e ao Espírito Santo, sem encarnação. Em outras palavras, o Verbo não se fez carne. Portanto, trata-se de uma heresia perigosa e, como se constata facilmente, muito popular nos dias de hoje.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 20 de maio de 2017

CRISTO É O CAMINHO

"Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela" (S. Mateus 7:13-14).

Quando eu era menino, havia na mercearia de meu pai este ícone:




Nele encontramos os dois caminhos: um que conduz à perdição eterna, largo, cheio de gente. Outro que conduz à salvação, muito estreito e com poucas pessoas.
Entretanto, há um problema na interpretação do texto. É que nós enchemos as duas vias de obras. No caminho estreito, colocamos nossas orações, jejuns, obras de misericórdia, pregação da Palavra, obediência ao Decálogo, dando a entender que, por meio dessas obras, estamos avançando rumo à salvação. Isso não é verdade e deve ser combatido em nosso meio!
Quando Cristo afirma que o caminho que conduz à salvação é apertado e contrapõe-no ao caminho da perdição, que é muito espaçoso, devemos entendê-lo de maneira a não ferir o dogma da justificação somente pela fé, que é o fundamento do cristianismo. Sem esse alicerce a Igreja não permanece, mas é destruída e levada pelas chuvas e pelo vento.
O caminho que conduz à salvação não é um caminho de obras, de mortificações, mas um caminho de fé. É estreito porque nele não cabem nossas obras, nossas orações, nossos jejuns, nossa caridade, nossa bondade, nossa justiça. Por ele, só passa a fé na Palavra de Deus, aquela fé que se agarra à remissão de pecados, que se agarra firmemente à justiça de Cristo. Não se trata de um caminho estreito, mas de um caminho estreito com porta estreita, sendo Cristo a porta. Tudo o que excede Cristo não irá passar por essa porta. E o que excede Cristo?
Excede Cristo exatamente aquilo que vai bem pelo caminho largo: nossa razão, nossas orações, nossos jejuns, nossa penitência, nossa confissão, nosso cumprimento da Lei, tudo o que fazemos com o intuito de colaborar com Cristo em nossa justificação.
Eu pintaria diferente os dois caminhos. Eu penso que seria melhor colocar no caminho estreito somente um pecador sendo carregado por Cristo, pois é um caminho tão estreito que nele não caberiam duas pessoas, somente Cristo. No caminho largo, eu colocaria tudo aquilo que é posto no caminho estreito: pessoas se mortificando através de muita oração, jejum e leitura da Palavra de Deus, com o objetivo de complementar a justiça de Cristo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



domingo, 7 de maio de 2017

QUE HONRA LUTERO GOSTARIA DE RECEBER?

Estamos chegando aos 500 anos de reforma da Igreja e o nome de Lutero não para de ser mencionado e exaltado. Mas que tipo de louvor Lutero gostaria de receber? Esse é o tema da reflexão de hoje.
Na Europa e em todo o mundo, Lutero vem sendo exaltado como aquele que trouxe ao mundo um novo pensamento, um pensamento progressista, que retirou a Alemanha da posição periférica que ocupava até então. Louvam-no como aquele que transformou o pensamento e a cultura do povo ocidental, fazendo-o progredir. Atribuem a ele o enorme desenvolvimento cultural e econômico dos países que adotaram a fé protestante, dentro e fora do continente europeu. Mas será que isso é fato e, em sendo verdade, era esse o tipo de honra que Lutero gostaria de receber?


O mundo não consegue encontrar em Lutero outro motivo de louvor, porque está tão profundamente secularizado, distante de Deus, imerso em si mesmo, tão materialista, que não consegue enxergar qual o real motivo da reforma desencadeada por ele. No entanto, nós somos Igreja e somos convidados a uma análise melhor e espiritual do que aconteceu, porque nisso que aconteceu está o espírito da reforma, que há muito se perdeu.
É verdade que os países que adotaram a fé protestante avançaram muito cultural e economicamente. Mas não só países que adotaram a fé protestante tiveram esse avanço; França, Itália, Bélgica e Espanha também. Por outro lado, é fácil detectar que esse imenso avanço cultural e econômico foi acompanhado de um progressivo declínio moral, de maneira que hoje a sociedade europeia está profundamente secularizada, esqueceu-se de Deus e só se lembra do cristianismo quando vê um muçulmano. Aborto legalizado, clínicas de suicídio assistido, eutanásia, xenofobia, nazismo e tantas outras misérias assolam essa Europa tão rica e progressista, que somos obrigados a pensar: então Lutero contribuiu para que isso acontecesse também? Esta, inclusive, é a principal crítica dos romanos à reforma desencadeada por Lutero, e eles têm razão.
É importante que situemos Lutero para entender melhor o que aconteceu no mundo após ele. Lutero viveu numa época em que avançava o humanismo, aquilo que se supunha ser o renascimento do homem. Também nessa época a burguesia crescia juntamente com os centros urbanos. O poder econômico e político estava sendo desviado da aristocracia rural para a classe média urbana. Como consequência de tudo isso, as universidades ganhavam espaço na sociedade. Também ali estava a imprensa, que facilitava a expansão do conhecimento. Como era de se esperar, houve um inusitado crescimento científico.
Paralelamente a isso, a descoberta das Américas e sua exploração cruel trouxe muito dinheiro à Europa. Uma época de vacas gordas para muitos!
Na sequência, as monarquias começaram a ser criticadas, assim como a Igreja de Roma, que também é uma monarquia. Caminhou-se para uma desmistificação do poder secular como representação de Deus. Aliás, tudo o que é absoluto começou a ser questionado. Daí Deus foi desbancado de seu trono e, no lugar dele, o povo europeu colocou todas as suas conquistas: dinheiro, conhecimento e poder.
Desde então, tudo parece que avançou. De repente se viu que a retirada de Deus promoveu o homem, ao ponto de se pensar que a Idade Média foi a Era das trevas. Somente luz a destruição de Deus trouxe ao mundo. Entretanto, nunca o mundo foi tão cruel e imoral! Nunca o homem foi tão triste e espiritualmente miserável.
Esse processo descrito acima também ocorreu em algumas colônias europeias, como, por exemplo, nos Estados Unidos, que se tornaram o protótipo do progressismo evangélico.
Ao ver toda esse cenário, que é lindo do ponto de vista material, mas grotesco do ponto de vista espiritual, bem poderíamos perguntar se esta profecia de S. Paulo não está se cumprindo: "Quando andarem dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição, como vêm as dores de parto à que está para dar à luz; e de nenhum modo escaparão" (1 Tessalonicenses 5:3). 
Como localizar Lutero em meio a tudo isso? De fato, é um louvor infundado este que é dedicado a Lutero e a outros teólogos da época, como João Calvino. É certo para mim que todo esse progresso material que enxergamos em alguns países do mundo teria ocorrido com ou sem a presença de Lutero. Também é triste quando buscamos a glória da reforma da Igreja nessas mesquinharias do mundo!
Não à toa muitas igrejas evangélicas apresentam uma ênfase totalmente mundana e materialista ao seu discurso, pois afinal muitos pensam que Lutero desencadeou uma reforma cultural do mundo. De repente toda a espiritualidade de muitos que se dizem herdeiros da reforma se restringe à prosperidade material, à cura de enfermidades físicas e ao progresso intelectual do homem. Não há quase espaço algum para se falar em temas tão enfatizados por Lutero, sobretudo a justificação somente pela fé. 
O que devemos perguntar, ao celebrar estes 500 anos de luteranismo, é o seguinte: O que teria acontecido ao mundo se Lutero não houvesse existido? Ao responder essa pergunta, chegaremos à alma da reforma.
Se Lutero não houvesse existido, Alemanha e outros países teriam avançado cultural, científica e economicamente do mesmo jeito. Se Lutero não houvesse existido, a Igreja ocidental se esfacelaria do mesmo jeito. Se Lutero não houvesse existido, o mundo cristão se esqueceria de Deus e haveria de apostatar da fé do mesmo jeito. Manhattan brilharia do mesmo jeito, se Lutero fosse extirpado da história. Nada disso que envaidece o mundo deixaria de existir se Lutero houvesse sido executado após a dieta de Worms. Portanto, o mundo e sua glória poderiam muito bem se esquecer de Lutero, sem que lhe fossem injustos.
Então o que teria acontecido se Lutero fosse apagado da história? A resposta é a seguinte: milhares de milhares de almas teriam perecido sem salvação, sem nunca jamais ter conhecido um Deus misericordioso. Aqui está de fato a contribuição de Lutero ao mundo e aqui é o local onde está situada a alma da reforma.
O mundo não tem condições de compreender isso. Mas quem já se viu no dilema de ter perante si um Deus irado sabe bem o que estou dizendo. Quem já se viu no sofrimento de buscar a justificação através da observância da Lei, espremendo de uma lei outras vinte. Quem antes vivia como escravo e não como filho de Deus, sem nunca ter certeza da salvação, entende bem o papel de Lutero na história humana. 
Aquele que, antes de Lutero, pensava: Se eu morrer hoje será que serei salvo? tem melhores condições de entender o que estou registrando aqui. Quem antes achava que para ser servo de Deus era necessário viver orando, dedicar-se ao ministério da pregação, caso contrário estaria vivendo uma vida profana, entende bem isso. Ou que era necessário ter uma vida santa e consagrada para ser usado por Deus. Quem já foi acusado de falta de fé por causa de uma enfermidade física, também entende. Quem já correu atrás da intercessão dos santos por ter medo de Deus, também. Quem já andou atrás de pastores com unções especiais e poder de cura também pode dizer algo a respeito.
Enfim, quem já pensou que a disposição de Deus para conosco depende de nossa disposição para com ele entenderá a relevância de Lutero. Todas essas pessoas - dentre as quais eu me incluo - teriam perecido sem salvação se não fosse esse homem de Deus.
A relevância de Lutero e o verdadeiro motivo pelo qual ele gostaria de ser louvado está no fato de não ter guardado para si o que descobriu, antes expôs-se ao risco de morte e até hoje é duramente difamado por ter compartilhado com a humanidade tudo isso. É dessa maneira que nós, como Igreja liberta da Lei de Moisés e de imposições humanas, temos condições de agradecer a Lutero e honrá-lo nestes 500 anos de luteranismo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



segunda-feira, 1 de maio de 2017

LUTERO PREGA SOBRE O PECADO ORIGINAL

"Do pecado, porque não creem em mim" (S. João 16:9).


Deves saber (como foi dito) que ele [Cristo] não está falando, aqui, da vida e da conduta exteriores do ser humano, as quais o mundo pode julgar e condenar, mas ele se refere ao cerne em si, ou seja, ao coração humano, à fonte e ao manancial dos pecados principais, a saber, culto falso e desprezo a Deus, descrença, desobediência, luxúria má e resistência ao mandamento de Deus. Em resumo, é o que S. Paulo chama, em Rm 8[.7], de pendor para a carne e descreve como inimizade contra Deus e como sendo incapaz de se sujeitar à lei de Deus. Essa é a origem e a raiz de todos os outros pecados e é precisamente o lamentável dano herdado de Adão no paraíso. Se não existisse esse pecado, jamais haveria roubo, homicídio, adultério, etc. Agora, o mundo vê essas manifestações exteriores do mal; sim, ele se admira e lamenta que as pessoas sejam tão más, porém não sabe por que é assim. Ele vê fluir o filete de água e vê brotar em toda parte os frutos e as folhas da árvore do mal, porém não vê onde está a fonte e onde se encontra a raiz. Vai e procura remediar a situação, controlar a maldade e tornar as pessoas íntegras mediante leis e a imposição de punições. Mesmo que se tente, por muito tempo, vedar esse mal, [tais tentativas] de nada adiantam. É possível vedar o filete de água, mas é impossível estancar a fonte principal; é possível cortar fora os rebentos, mas, com isso, ainda não se extirpou a raiz.
Agora, tudo está perdido. Enquanto a origem, a raiz e a fonte do mal permanecerem no interior, não interessa quanto tempo se reprime, se melhora e se cura o exterior. Antes de mais nada, é necessário estancar e reprimir em um lugar, apenas para ver o mal rompendo e precipitando-se para fora em outros dez. O que se deve sanar é o fundamento; caso contrário, pode-se passar e aplicar pomadas e emplastros para sempre, mas a purulência e a inflamação continuam e apenas pioram. Resumindo: a experiência ensina, e o mundo precisa reconhecer que, inclusive, é impossível reprimir os crassos vícios e as maldades exteriores, não importa quão diligentemente se tente controlá-los e puni-los - como realmente se deve fazer. Muito menos, o  mundo pode remover o pecado que é inerente à natureza e constitui o verdadeiro pecado principal, mas é desconhecido pelo mundo. 
Por isso, esse pecado permanece sobre todo o mundo, e esse julgamento é proferido sobre toda conduta e todos os atos de todos os seres humanos na medida em que nasceram de Adão, sejam considerados bons ou maus, certos ou errados perante o mundo. E ninguém pode se excluir ou se jactar diante de um outro. Perante Deus, todos são iguais e devem admitir que são culpados e merecedores da morte e da condenação eternas. Todos também deveriam permanecer nesse estado para sempre, sem que qualquer criatura pudesse ajudar, se Deus fosse lidar conosco de acordo com nosso mérito e nossa justiça.


Agora, porém, em sua ilimitada bondade, ele se compadeceu dessa miséria e nos enviou do Céu a Cristo, seu amado Filho, para nos auxiliar e ajudar, para tomar sobre si nosso pecado e condenação e pagar por eles com o sacrifício de seu corpo e sangue e reconciliar Deus conosco. E Deus ordenou que se proclamasse isso em todo o mundo e que esse Cristo fosse apresentado a todas as pessoas, para que elas se apeguem a ele em fé se quiserem ser libertadas do pecado, da ira de Deus e da eterna condenação e alcançar o Reino de Deus, reconciliadas com ele. Dessa maneira, essa proclamação realiza duas coisas: em primeiro lugar, confronta todas as pessoas com o fato de que todas se encontram sob o pecado e a ira de Deus, estando condenadas pela lei, e exige que reconheçamos tal fato; em segundo lugar, ela mostra como podemos ser salvos disso e obter a graça junto a Deus, ou seja, através desse único meio, aceitando Cristo na fé.


Mas, apenas quando se prega essa mensagem, temos a manifestação do verdadeiro pecado, do qual se afirma aqui que faz toda a diferença, ou seja, que "não creem em mim". Pois o mundo não deseja ouvir tal pregação: que todos são pecadores diante de Deus, que a santidade humana de obras não tem qualquer validade diante dele, e que os seres humanos somente podem obter graça e salvação por meio desse Cristo crucificado. Essa descrença em relação a Cristo torna-se uma síntese de todos os pecados; ela conduz o ser humano para uma condenação da qual não pode ser resgatado.
Como se afirmou, a descrença é, certamente, o principal pecado da humanidade. Foi o primeiro pecado cometido no paraíso, e, decerto, também será o último de todos. Pois, quando Adão e Eva tinham a Palavra de Deus, na qual eram obrigados a crer e na qual também tinham Deus e a vida enquanto se apegavam a ela, eles foram tentados, pela primeira vez, com a descrença em relação a esta Palavra: "É assim que Deus disse", disse a serpente a Eva: "Não comereis de toda árvore do jardim?" [Gn 3:1]. Ali, em primeiro lugar, o diabo ataca sua fé, dizendo-lhes que abandonem a Palavra e não a considerem como Palavra de Deus. Pois ele não se interessa, primordialmente, pela mordida na maçã proibida, mas seu interesse reside em afastá-los da fé (em que viviam perante Deus) [e encaminhá-los] para a descrença, de onde, com certeza, seguir-se-iam a descrença e todos os outros pecados como frutos dela. 


Mas, aqui, não se faz referência tão-só à descrença implantada por Adão na natureza humana, mas, claramente, à recusa de crer em Cristo, ou seja, à de reconhecer nosso pecado e de procurar e obter a graça através de Cristo quando se prega o Evangelho de Cristo. Pois, com a vinda de Cristo, ele aboliu com seu sofrimento e morte, diante de Deus, o pecado de Adão e de todo o gênero humano (isto é, a descrença e a desobediência anteriores), erigindo um novo Céu de graça e perdão, para que o pecado herdado de Adão não nos conserve, doravante, sob a ira e a condenação de Deus se crermos neste Salvador. A partir de agora, pois, aquele que é condenado não deve se queixar de Adão e do pecado herdado dele, porque a semente da mulher que haveria de esmagar a cabeça da serpente, de acordo com a promessa de Deus, veio, agora, pagou por esse pecado e removeu a condenação. Essa pessoa deve acusar a si mesma, pois não aceitou e nem creu em Cristo, que esmagou a cabeça do diabo e destruiu o pecado. 


Portanto, cada qual deve acusar-se a si mesmo pela sua condenação; o motivo não é porque ele seja um pecador e mereça a condenação devido a Adão e à sua descrença anterior, mas, porque ele se recusa a aceitar Cristo, o Salvador, que remove nosso pecado e nossa condenação. É verdade que Adão condenou a todos quando nos levou consigo para o pecado e o poder do diabo. Agora, porém, que veio Cristo, o segundo Adão, nascido sem pecado, e removeu esse pecado, ele não mais, necessariamente, nos condena, caso eu creia em Cristo. Não. Através dele, deverei ser libertado do pecado e ser salvo. Se eu não crer, porém, então esse pecado e essa condenação, certamente, permanecerão, porque não aceitei aquele que pode me libertar deles. Sim, meu pecado e minha condenação se tornarão duas vezes maiores e mais graves, porque não quero crer nesse querido Salvador, que veio para me ajudar, e não quero aceitar sua redenção. Por conseguinte, tanto nossa salvação quanto nossa condenação dependem, agora, inteiramente, do fato de crermos ou não em Cristo. E a sentença que fecha e nega o céu a todos que não têm e não querem aceitar essa fé em Cristo já foi proferida de forma definitiva. Pois essa descrença retém todos os pecados, de modo que não podem ser perdoados, exatamente como a fé remove todos os pecados. Assim, sem essa fé, tudo, inclusive as melhores obras e conduta de vida de que o ser humano é capaz, é e permanece pecaminoso e condenável. Embora boas obras sejam louváveis em si e ordenadas por Deus, exatamente como todas as obras e conduta que se originam da fé de um cristão são agradáveis a Deus. Em resumo: sem Cristo, tudo está condenado e perdido; em Cristo, tudo é bom e está salvo. Por isso, inclusive, o pecado que foi herdado de Adão e ainda permanece na carne e no sangue não precisa nos causar dano ou nos condenar.
Mas não devemos entender isso como se nos fosse permitido pecar e fazer o mal desimpedidamente. Pois, como a fé traz remissão dos pecados, e como Cristo veio para remover e destruir o pecado, não é possível que seja um cristão crente alguém que vive, impenitente e seguro de si, abertamente em pecado e de acordo com seus desejos. Porque onde se vive tal vida de pecados, tampouco há penitência; onde não existe penitência, porém, também não há perdão de pecados e, por conseguinte, fé, que recebe o perdão de pecados. Por outro lado, quem tem fé nessa remissão resiste aos pecados e não segue seus desejos, mas luta contra eles até que esteja completamente livre deles. Embora não possamos ser libertados totalmente do pecado nesta vida, embora ele ainda permaneça, inclusive, nas pessoas mais santas, os que creem têm o consolo de que esses pecados são cobertos pelo perdão de Cristo e não são imputados para sua condenação, contanto que permaneçam na fé em Cristo.

Martinho Lutero, Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e Capítulo 16 de S. João, pregado e explicado. Martinho Lutero, Obras Selecionadas, Vol. 11, Editora Concórdia.

Os grifos são meus. Imagens extraídas da internet.