sábado, 28 de janeiro de 2017

VISÃO LUTERANA SOBRE A NATUREZA DA FÉ

Graças ao bom Deus, podemos dizer que hoje as três principais vertentes do cristianismo ocidental professam a justificação somente pela fé. Luteranos, romanos e reformados professamos juntos a mesma coisa. Entretanto, é necessário que divisemos bem o pensamento verdadeiramente luterano acerca do que é a fé, pois não há um consenso entre todos.


Como reformados confundem Lei e Evangelho, imaginando o Evangelho como sendo uma nova Lei, em que Deus ordena a conversão, concebem a fé como sendo obediência ao Evangelho. Sabemos bem que o Evangelho não exige nada, não ordena nada, nem sequer a conversão. Quem exige a conversão é sempre a Lei, ainda que proferida pela boca de Cristo. Nós professamos que o Evangelho apenas dá, ele nunca cobra nada, nunca! De maneira que a fé não deve ter uma conotação legalista. Ela deve ser, antes, uma resposta à graça de Deus, ou seja, ao seu oferecimento gratuito. 
Deus oferece a remissão dos pecados, a fé aceita. A fé é entendida no luteranismo como uma resposta positiva a Deus, em que a vontade humana se volta a ele e deseja ardentemente receber o que ele quer dar. Neste aspecto, nós, luteranos, nos aproximamos dos romanos, que também argumentam ser a fé uma resposta humana à graça divina. Nós, porém, nos distanciamos dos romanos ao entender que a fé é uma resposta sobrenatural.
Os romanos entendem a fé como algo que é próprio da natureza humana. Este, aliás, é o princípio sinergista que também encontramos entre protestantes. Segundo eles, o homem possui uma capacidade natural de responder favoravelmente ao amor de Deus.
Embora o Catecismo da Igreja Católica defina a fé como "virtude sobrenatural" infundida por Deus (parágrafo 153), predomina nele claramente a ideia de fé como produto da natureza humana: "Na fé, a inteligência e a vontade humanas cooperam com a graça divina: 'Credere est actus intellectus assentientis veritati divinae ex imperio voluntatis a Deo motae per gratiam - Crer é um ato da inteligência que assente à verdade divina a mando da vontade movida por Deus através da graça'" (parágrafo 155); "crer é um ato humano, consciente e livre, que corresponde à dignidade da pessoa humana"(parágrafo 180). Aliás, seria impossível atender à proposta sinergista da Igreja de Roma se fé não fosse um produto da natureza humana. Para ser salvo, o homem terá que contribuir com algo que é seu, ainda que auxiliado pela graça de Deus. Ambiguidades à parte, é exatamente isso que a Igreja de Roma ensina.
O luteranismo não aceita essa ideia sinergista de que a fé é algo próprio da natureza humana. Sustentamos que a fé não está na natureza humana, ou seja, a fé não é algo NATURAL. Ela é essencialmente sobrenatural. O homem é, por natureza, dotado de razão, de intelecto, de vontade, mas não de fé. Somente Deus pode operar a fé no coração humano. Portanto, Deus antecede a resposta humana, dando ao homem um coração que lhe seja propício, que possa lhe responder favoravelmente. 
Destacamos que a fé não é apenas uma vontade, uma ideia ou uma confissão, mas uma resposta que envolve todas as dimensões do ser e que determina a verdadeira conversão. Isso a razão é incapaz de fazer.
Nós cremos no livre-arbítrio, afinal ninguém é forçado por Deus a desejá-lo. Mas entendemos que o arbítrio humano só decide por Deus quando transformado ou regenerado pela fé, sendo que esta não é algo próprio da natureza humana. Estando ela presente, o homem voluntariamente se aproxima de Deus. Em estando ausente, o homem voluntariamente se distancia. Portanto, a fé não coincide com a vontade, mas a antecede

"Mas onde estava meu livre-arbítrio durante tantos anos? De que profundo e misterioso abismo foi ele chamado, para que eu sujeitasse a cerviz a teu jugo suave e o ombro a teu leve peso, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção?" (Confissões, Santo Agostinho).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 8 de janeiro de 2017

UM CLAMOR DOS LUTERANOS AO CRISTIANISMO ATUAL

Como ter um Deus misericordioso? Essa foi a pergunta que guiou Lutero em sua busca pela Verdade. Ele sabia de uma coisa: a Verdade é que Deus é misericordioso, inteiramente misericordioso. Nessa misericórdia eu devo descansar e em mais nada!
Essa pergunta não é algo que caracteriza uma época ou um contexto. O homem precisa ter um Deus misericordioso, não importa o contexto histórico. Se toda religião tem por objetivo promover uma reconciliação entre Deus e os homens, requer-se a misericórdia como caminho único para se chegar a Deus. 
Por isso é tão importante para nós, luteranos, a distinção clara entre Lei e Evangelho, que é a única maneira de termos a garantia de um Deus misericordioso, gratuito, compassivo, que nos quer independentemente de nossas obras, que nos ama incondicionalmente. Qualquer condição imposta por Deus seria o nosso inferno. Logo, a única maneira de sairmos do inferno seria um Deus totalmente isento de condições.
A razão não aceita um Deus sem condições. Da Lei judaica à Charia dos muçulmanos, das virtudes propostas pelo budismo à rigorosa ética espírita, em tudo isso encontramos um Deus que estabelece condições. Também na religião cristã, com suas prescrições de jejuns, orações, confissões e observância de dias santos e, entre os protestantes, a Lei mosaica, em tudo isso percebemos que também no cristianismo temos um Deus que estabelece condições.
Não está errado dizer que Deus estabelece condições. É claro que estabelece! Mas o Deus que estabelece condições é uma "parte" de Deus, não é o Deus inteiro. Ouso dizer que a parte de Deus que exige algo é sua parte menos importante. Essa parte todo o mundo conhece, inclusive os pagãos, e é incapaz de salvar alguém. O erro, portanto, está em achar que Deus sempre exige algo e não dá nada de graça. Erramos também ao enfatizar essa "parte" de Deus como sendo a mais importante. 
Quando os cristãos começam a enfatizar a antiga aliança e buscam a Deus na Lei mosaica, como vemos nos rincões protestantes, está sendo enfatizada a Lei como o ápice da revelação. Mas não é a Lei o ápice da revelação e sim, o Evangelho. O Deus que nada exige e que tudo dá, sem  impor nenhuma condição, ou seja, o Deus inteiramente misericordioso, é o ápice. 
Somente os cristãos e mais ninguém têm um Deus misericordioso, que nenhuma condição impõe. Esse é o verdadeiro distintivo cristão. O Deus que exige você poderá encontrar no judaísmo e no muçulmanismo, mas o Deus que é todo misericórdia e que aceita gratuitamente, sem qualquer reserva, você só irá encontrar no cristianismo, mesmo assim com alguma dificuldade, como veremos a seguir.


Distinguir Lei e Evangelho é um esforço muito necessário e salutar à consciência para que se obtenha um Deus que seja inteiramente misericordioso e que não exija nada de mim. Nessa distinção, Lutero trabalhou arduamente a vida inteira e é seu grande legado à Igreja.
Por Lei entendemos o Deus que exige a santidade e a justiça. É um Deus santo que requer santidade. É o Deus que ameaça com o inferno quem é pecador. 
A Lei não tem o propósito de justificar. O que Deus requer do homem é impossível que este lhe dê, ainda que se empenhe até à morte. Deus requer um coração inteiramente puro, sem qualquer inclinação ao mal. Ele não pede obras, mas um coração justo, que não podemos lhe dar.
A Lei, portanto, nos conduz à servidão. Tornamo-nos servos de um Deus irado contra nós. Tornamo-nos servos do medo e até do desespero. É da Lei que vem o medo de Deus e os empreendimentos religiosos humanos, todos eles voltados exclusivamente ao apaziguamento divino. Sabemos que não temos um coração puro e nunca teremos. Por fim, tememos a morte, porque sabemos que, por meio dela, iremos nos encontrar face a face com esse Deus insatisfeito, ao qual teremos de prestar contas. Este é o triste itinerário religioso dos homens! 
O mundo é desprovido de misericórdia. Achamos que Deus também é assim e isso nos causa profunda tristeza, que as religiões, em geral, são incapazes de consolar.
O Evangelho, por sua vez, é o Deus que perdoa incondicionalmente. Ele mesmo oferece a justiça com que nos justifica. Ele próprio vem com as obras, com a expiação da culpa e nada, absolutamente nada, exige de nós. Esse Deus, apresentado pelo Evangelho, é todo dádiva, é todo gratuito e só deseja ser recebido em fé. O "Deus evangélico" nada exige do homem, senão o que ele mesmo dá: a fé.
Somente o Evangelho pode retirar o homem do inferno e elevá-lo até Deus. Lei alguma - nem mesmo a Lei de Moisés! - é capaz de fazê-lo.
A dialética envolvendo Lei e Evangelho está em toda a Escritura Sagrada. Vez ou outra alguém diz que, para nós, luteranos, o Antigo Testamento é todo Lei e que pouco valor damos a ele. Isso não é verdade! Lutero enxergou Lei e Evangelho em todas as Escrituras. Embora predomine Lei no Antigo Testamento e haja predomínio do Evangelho no Novo, é importante que se mantenha que os dois discursos de Deus estão presentes na Bíblia inteira. Aliás, seria impossível a salvação de Israel não fosse a revelação do Evangelho. Já no Éden o Evangelho foi proclamado, seja através da Árvore da Vida, que prefigura Cristo, seja nas palavras: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gênesis 3:15).
Além disso, nós, luteranos, não desprezamos a Lei. Somente a delimitamos e procuramos sujeitá-la ao Evangelho. Não permitimos que ela justifique ou oprima a consciência, indo além de onde deve ir. Não permitimos que ela adentre o Santuário, mas que se contente com o pátio. É esta a relação que temos com a Lei. 
A confusão entre Lei e Evangelho é muito comum. O resultado dessa confusão é sofrimento para a consciência, pois não abre espaço a um Deus misericordioso. Quem não distingue Lei e Evangelho não conseguirá ter plena certeza de sua salvação, terá uma fé tíbia e uma consciência timorata.
Confundimos Lei e Evangelho de dois modos: Primeiro, quando atribuímos à Lei o poder de salvar. Somente o Evangelho salva, nunca a Lei. Segundo, quando imaginamos o Evangelho como sendo um conjunto de preceitos e transformamos Jesus em um novo legislador, a ordenar-nos que amemos ao próximo como a nós mesmos, que ofereçamos a outra face a quem nos esbofeteia e que doemos todos os nossos bens aos pobres. É importante que se mantenha que quando Cristo exige algo e ameaça, ele está interpretando e pregando a Lei. Logo, há Lei no Novo Testamento, inclusive no discurso de Jesus.
O Cristo que diz: "Se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis" (S. Lucas 13:5) prega a Lei, não o Evangelho. A Lei nunca salva, mas sempre condena e arremete ao inferno, mesmo quando proferida pela boca de Cristo. Se eu achar que essa fala de Jesus é Evangelho, terei medo dele quando me sentir pior que os galileus que Herodes executou.
Essa figura do Cristo legislador e justiceiro, que ameaça com o terror do inferno, tem predominado entre os cristãos, razão pela qual eles se voltam servilmente à Lei, procurando, de algum modo, apaziguá-lo. Isso porque, infelizmente, não sabemos distinguir Lei e Evangelho, o Deus que exige do Deus que perdoa e dá.
Cristo salva quando prega evangelicamente, quando é gratuito e nada exige. Cristo salva quando diz: "Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais" (S. João 8:11) ou quando diz: "Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso" (S. Lucas 23:43). Esse Deus gratuito, que simplesmente recebe de volta o que é seu, sem exigir nada em troca, esse Deus misericordioso, só ele é capaz de salvar. Somente ele possibilita um recomeço, ao cancelar toda e qualquer dívida. O Deus que exige não possibilita recomeço algum.
Então Deus fere com a Lei para curar com o Evangelho. Derruba os soberbos com a Lei para erguer os abatidos com o Evangelho. Fere a presunção humana com a Lei e cura a culpa com o Evangelho.
Para Lutero, a Lei é muito útil e prepara o homem para a graça, quando o traz ao arrependimento e à necessidade da misericórdia. Mas somente o Evangelho salva, pois só ele propõe o perdão incondicional ao arrependido e misericórdia infinita.
Para os experimentados na fé, é muito importante distinguir Lei e Evangelho, pois o coração humano só encontrará paz no Evangelho puro. Para Lutero, a Lei tem muita serventia sobre a vontade, sobre os sentimentos e sobre as obras em geral, enfim, sobre a razão, mas não pode adentrar a consciência, onde a fé está unida ao Deus misericordioso. Lutero chama a consciência de quarto de núpcias, onde a fé é desposada pelo Deus misericordioso. Naquele quarto a Lei está proibida de entrar.
Em outras palavras, a Lei me ensina como proceder, mas não tem o poder de me ameaçar e condenar; também não é ela quem me indica o caminho do Céu, pois ela não o conhece. Se, por fraqueza, não consigo cumprir o que ela requer de mim, devo me voltar para o Evangelho, que me diz: "Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais"
Portanto, se Deus não me condena, quem é a Lei para me condenar? Acaso está ela acima do Evangelho? Por acaso Cristo é seu servidor?
Enquanto estivermos de pé, que ouçamos a Lei. Mas quando cairmos, que Deus nos livre de ouvi-la, pois ela não é para os caídos, mas só para quem está de pé. Todo caído precisa ouvir uma única coisa: "Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais"

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

SACRAMENTOS: UMA SUPERÊNFASE?

No meio protestante, é comum que se diga que luteranos superenfatizam os sacramentos, em oposição a outros temas da teologia. Pensam que a ênfase dada por nós a esse assunto nos desvia de Cristo para um ritualismo frio, que só serve para fortalecer o papel da Igreja em detrimento do próprio Cristo. 
É um pensamento bastante fragmentado, pois entende um Cristo sem Igreja e um Cristo que não é dado e fruído. A ênfase que nós, luteranos, damos à questão dos sacramentos tem seu fundamento no fato de que a Igreja, com o seu ministério e sacramentos, é sinal de Deus para o mundo, sal da terra (S. Mateus 5:13), luz do mundo (S. Mateus 5:14) e a candeia posta no velador (S. Mateus 5:15). O mundo busca a salvação que vem de Deus e vê somente a Igreja, a oferecer essa salvação através de seu ministério e sacramentos. Portanto, não precisamos - e não é nem um pouco prudente - enfraquecer a Igreja para exaltar Cristo, como se houvesse um antagonismo entre Cristo e sua Igreja. 
Além disso, os sacramentos não são para nós, luteranos, rituais vazios. Para nós, a salvação que vem de Cristo e o próprio Cristo, com sua remissão de pecados e com sua justificação, precisam ser entregues a nós. 
Biblicamente falando, não é possível que Cristo seja entregue, juntamente com seus dons, sem algum sinal exterior. Cristo não é algo que Deus comunica ao homem sem um meio autorizado: Pregação e sacramentos. Para que Cristo seja meu, para que sua justiça seja minha, para que seu sacrifício seja meu, para que sua ressurreição seja minha, é necessário que minha fé o receba, através de algum meio exterior. Não é possível que eu venha a crer em algo que nunca vi, toquei ou ouvi. Então é necessário que o objeto de minha fé, que é o próprio Cristo, a Eterna Palavra de Deus, me seja entregue por meio de sinais que meus sentidos podem apreender, conforme nos ensina S. Paulo com muita clareza em Romanos 10:12-14,17. Não me é possível receber o Verbo de Deus segundo a sua majestade, mas em sua fraqueza, envolto em sinais estabelecidos por ele.
Então, o Batismo não é um ritual simples que magicamente justifica e salva. O Batismo é a água que contém a Palavra de Deus, que diz: "Quem crer e for batizado será salvo" (S. Marcos 16:16). É o próprio Deus quem batiza e cumpre o que sua Palavra diz. É Deus oculto na água a ser-nos entregue.


A Eucaristia não é um ritual mágico com poder de salvar. Consiste em pão e vinho que passam a conter a Palavra de Deus, que promete: "derramado em favor de muitos, PARA REMISSÃO DE PECADOS" (S. Mateus 26:28). Portanto, é o próprio Cristo que nos confere a remissão de pecados através do pão e do vinho, a cada celebração eucarística. É Deus oculto no pão e no vinho a ser-nos entregue.


A ênfase que damos aos sacramentos é uma ênfase que estamos dando à misericórdia de Deus, que opera a salvação no homem por meio da fé. Não uma fé que se volta para um Deus incorpóreo, metafísico e inteligível, mas para um Deus concreto, que se dá por meio de uma Igreja concreta, por meio de um ministério concreto e por meio de uma variedade de sinais muito concretos. 
É também uma ênfase que se dá à Palavra de Deus, que invariavelmente cumpre o que promete. Se o próprio Deus diz que salvará quem for batizado, por que haveríamos de duvidar da capacidade do Batismo de salvar, se a Palavra de Deus está nele? Não é o pastor ou padre quem promete isso, mas o próprio Deus. Igualmente, por que não salva a Eucaristia, se Deus promete nela que haverá de remir todos os pecados? É possível que alguém tenha seus pecados todos remidos e não seja, por consequência, salvo?

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.