domingo, 27 de novembro de 2016

BUSCA DE DEUS, BUSCA DE NÓS MESMOS

"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (2 Coríntios 5:19).


No presépio aqui de casa, todos os personagens direcionam seu olhar ao menino Jesus. Contemplam Deus através da humanidade de Jesus. Eu também descanso o meu olhar sobre o menino Deus, pois ali está o que há de mais sagrado, primordial e mesmo ontológico na humanidade.
No Deus humanado encontramos a verdadeira humanidade. Ser homem não é ser um bípede racional, um mamífero, um primata, um animal. Algo nos separa das demais criaturas, responsabiliza-nos perante elas e perante nós mesmos. Algo separa a realidade humana da realidade animal. Somos seres morais, buscamos instintivamente o que é bom e justo, a beleza, a virtude e a sabedoria. Nós buscamos a perfeição. Essa necessidade de se alcançar a perfeição é uma necessidade de Deus. Não queremos viver no nível dos animais, mas ascender ao nível de Deus, buscando em Deus a nossa humanidade. De maneira que, quanto mais subimos em direção a Deus, mais humanos nos tornamos. Então a busca de Deus assume um caráter ontológico, pois buscamos em Deus quem nós somos.
O presépio coloca a união entre Deus e homem no meio da história, mas essa união é primordial. Ela foi obscurecida pelo pecado, mas o homem busca essa união o tempo inteiro, ainda que não seja crente ou ainda que seja ateu, pois a busca da perfeição é algo que caracteriza a humanidade, que nos torna de fato humanos. E essa busca da perfeição é a busca de Deus. Por isso, é impossível ao homem não ser religioso.
O ser humano muitas vezes determina teoricamente que o melhor é ser animal, deixar de lado qualquer padrão de moralidade, de justiça, abandonar a ideia de Deus, mas é traído pela prática, pois não pode ser animal. É um movimento irresistível e necessário este que o homem faz para fora da condição animal, em direção à esfera de Deus. Se todas as religiões deixassem de existir, o homem religioso haveria de permanecer, pois ser homem é ser religioso, é buscar a Deus, é almejar a unidade com Deus. Se o homem conseguisse deixar de buscar a Deus, poderia então ser um simples animal, mas não pode.
Diante do exposto, fica difícil não prestar atenção no menino Deus, posto sobre a manjedoura, pois ali estou eu, unido a Deus e também posto sobre a manjedoura. Na humanidade de Deus está a verdadeira humanidade, purificada do pecado e plena de sentido. 

Autoria: Carlos Alberto Leão. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O LUGAR DA MÍSTICA NA IGREJA LUTERANA - PARTE 2

No primeiro post dessa série, vimos as características que diferenciam a espiritualidade luterana da católica romana e as condições que permitem o desenvolvimento de uma mística distintivamente luterana (o tripé leitura bíblica-oração-participação nos sacramentos). Nos próximos posts, veremos como essa mística se realizou historicamente, em suas diferentes modalidades.
Num dos trechos de Lutero citados no post anterior, podemos perceber que o reformador concebia a união com Deus como uma comunhão amorosa realizada por meio da fé. Isso permite discernir uma primeira modalidade da mística luterana, a saber, uma vertente devocional, que se distingue da mística especulativa de um Mestre Eckhart, por exemplo, direcionada ao conhecimento do fundamento divino da alma. Certamente, ambas visam à união com Deus, mas possuem atitudes existenciais diferentes para alcançá-la: no primeiro caso, Deus é concebido como o Outro ao qual a alma deve se unir a Cristo amorosamente através da fé; no segundo caso, Deus é concebido como a raiz da personalidade, e, por causa disso, deve ser buscado não fora, mas dentro de si mesmo.
Outra diferença está nas práticas espirituais que cada um desses tipos de mística exige. A mística intelectual, por sua própria natureza, está mais próxima de um tipo “monástico” de espiritualidade: concentração intensa, meditação, esvaziamento da mente são atitudes típicas do contemplativo, mas quase impossíveis de serem praticadas pelo leigo em meio à agitação do dia-a-dia. Em contraste, a espiritualidade devocional pode se apoiar em práticas mais simples, como a meditação sobre textos bíblicos e a oração, e, portanto, mais adequadas para aqueles que não desejam se retirar do mundo. No entanto, como as duas têm o mesmo objetivo, acabam se encontrando no final. Assim, a mística devocional, tal como a mística especulativa, é também uma forma de conhecimento, um aspecto que foi reconhecido pelo próprio Lutero:

“E esse conhecimento vem da fé, de acordo com a Escritura, ‘Se vocês não crerem, tampouco vão compreender’. Esta é aquela entrada na nuvem, Ex. 20:21, na qual são engolidas todas as coisas que os sentidos, razão, mente ou conhecimento do homem podem compreender. Pois a fé une a alma à invisível, inefável, inimaginável, eterna Palavra de Deus, e ao mesmo tempo, a separa de todas as coisas visíveis.” [1]

Como se pode perceber, a fé para Lutero não é simplesmente um ato da vontade individual, mas, acima de tudo, é uma forma superior de conhecimento, que une a alma a Cristo. Conhecimento e amor, portanto, não estão separados na fé: para usar um adágio dos monges cistercienses, com o qual Lutero certamente concordaria, “amor ipse est intellectus” (“o amor por si só já é conhecimento”). Trata-se de um saber que não é obtido nem pelos sentidos nem pela razão, mas pela negação de ambos, representada pela “entrada na nuvem”, um símbolo típico da literatura mística apofática. No entanto, Lutero faz um uso muito particular dessa metáfora, pois a ênfase do reformador recai não sobre a incognoscibilidade da essência de Deus, como na maior parte da tradição apofática ocidental, mas sobre a incognoscibilidade da relação com Ele: Deus é conhecido na imediaticidade da relação, e qualquer tentativa de compreender sua essência, mesmo através de negações, surge posteriormente à relação pessoal com Ele, estabelecida através da fé. Portanto, sendo um relacionamento com uma Pessoa, e não com uma essência, a fé pressupõe um envolvimento existencial completo, que mobiliza não apenas a razão e os sentimentos, mas também dimensões mais profundas da personalidade. Não por acaso, Lutero vê a fé como a atividade própria do “espírito” (pneuma), a parte mais elevada e mais interior do ser humano:

“A natureza do homem consiste de três partes – espírito, alma e corpo.[...] A primeira parte, o espírito, é a mais alta, mais profunda e mais nobre parte do homem. Por ele, o homem é capaz de captar coisas incompreensíveis, invisíveis e eternas. Ele é, em resumo, o lugar de habitação da fé e da Palavra de Deus.” [2]

Portanto, em Lutero, a fé é a atividade própria do espírito, a essência íntima da pessoa humana, que transcende a razão e os sentidos e permite uma união ontológica com Deus, características que também estão presentes na tradição mística especulativa [3]. Mas, ao contrário desta última, a mística devocional tem como ponto de partida o distanciamento essencial entre a alma pecadora e a santidade divina, uma separação que é abolida no “noivado místico” realizado por meio da fé:

“A raça dessa noiva era hostil ao Pai celestial, mas o próprio Cristo reconciliou-a ao Pai por sua mais amarga paixão. A noiva foi calcada em seu sangue, lançada sobre a face da terra (Ezequiel 16:22). Mas ele mesmo a lavou na água do batismo e a purificou no banho mais santo (Efésios 5:26). [...] A noiva estava com fome, mas ele deu-lhe flor de farinha, mel e azeite para comer; com Seu próprio corpo e sangue Ele a alimentou para a vida eterna. A noiva é, em todos os sentidos, infiel e muitas vezes quebra o vínculo conjugal, fornicando com o mundo e o diabo, mas o Noivo a recebe repetidamente em graça com seu imenso amor, renovando-a na verdadeira conversão a ele.” [4]

Vinculada ao Noivo através da fé, a alma compartilha com ele todos os seus bens, incluindo a santidade, e os recebe sem qualquer mérito próprio. Como se pode perceber do trecho citado, essa “passividade” da alma está relacionada à compreensão luterana dos sacramentos como os meios visíveis divinamente instituídos para produzir e fortalecer a fé no crente. Principalmente no caso da eucaristia, a doutrina da “presença real”, segundo a qual o Cristo inteiro (corpo e espírito) está presente no sacramento, pressupõe uma união íntima com o Verbo divino durante a comunhão, o que pode também ser um suporte para uma experiência espiritual mais profunda. Se a Santa Ceia concede ao crente a união objetiva com Cristo, a forma de compreender essa união varia. Johann Gerhard, por exemplo, vê esse sacramento como um verdadeiro banquete celeste, no qual o mesmo corpo que foi glorificado na comunhão da Trindade e que é adorado pelos anjos torna-se presente aqui e agora:

"A alma fiel é alimentada na festa divina e celestial. A carne santa de Deus, que os anjos adoram na unidade das pessoas, que os arcanjos veneram, diante da qual os governantes tremem e se maravilham, essa mesma carne é o nosso alimento espiritual. Alegrem-se os céus e regozije-se a terra (Salmo 96:11), e ainda mais a alma fiel a quem um tão grande e importante dom foi estendido.” [5]




                          Johann Gerhard



Historicamente, o Luteranismo deu maior ênfase à importância dos sacramentos como os veículos mais importantes para a obtenção da fé (e, com ela, da união mística com Cristo), principalmente devido à polêmica com os chamados “entusiastas” (schwärmerei), que defendiam uma atuação direta de Deus para conceder a fé aos cristãos, sem a necessidade de qualquer mediação. No entanto, isso não significa uma desvalorização da oração e da leitura privada da Bíblia como vias para atingir a experiência de união com Deus. De fato, para a tradição luterana, essas práticas são a manifestação visível da fé recebida na pregação e nos sacramentos, o que significa dizer que elas podem ser também um suporte para vivenciar de uma forma mais profunda a união com Deus, já anteriormente estabelecida pela fé.
No que diz respeito à oração, como já foi mencionado no primeiro post, o Luteranismo preservou a prática das orações jaculatórias e é possível encontrar inclusive alusões a formas interiores de prece, análogas à “oração de Jesus”, do Cristianismo Ortodoxo e às descrições que João Cassiano dá dos estágios mais elevados de prece. Assim, ao tratar da oração em seu livro Wahres Christentum (“Verdadeiro Cristianismo”), Johann Arndt distingue três tipos de prece (oral, interna e sobrenatural), sendo que esta última leva a uma forma de união mística com Deus:

“Por essa prece interna [isto é, a prece incessante e interior] somos levados gradualmente àquilo que é a [prece] sobrenatural; que, de acordo com Tauler, ‘consiste em uma verdadeira união com Deus pela fé; quando nosso espírito criado se dissolve, por assim dizer, e se afunda no Espírito incriado de Deus. [...]’. Por esta razão, esta prece sobrenatural é incrivelmente mais excelente do que a [prece] que é principalmente externa; pois nela a alma é, pela fé verdadeira, tão plenificada com o amor divino, que não pode pensar em outra coisa senão em Deus. [...] Uma alma que uma vez chegou a este estado feliz dá pouco ou nenhum emprego à língua: ela é silenciosa diante do Senhor. [...] Por isso, ela é ainda mais e mais cheia de um conhecimento experimental de Deus, e com tal amor e alegria como nenhuma língua é capaz de proferir. Tudo o que a alma então percebe está além de toda possibilidade de ser expresso em palavras. " [6]






                            Johann Arndt

Portanto, existe na tradição luterana não só um fundamento teológico para o que chamamos de “mística devocional”, como também a possibilidade de vivenciar de fato experiências que podemos muito bem qualificar como “místicas”, a partir da participação nos sacramentos e da prática da prece interior. No próximo e ultimo post dessa série, analisaremos outra vertente da mística luterana.

Autoria: Rodrigo Moreira de Almeida.

NOTAS:

[1] Comentário ao Salmo 2, versículo 10. In: Comentário aos salmos, 1519.

[2] Comentário ao Magnificat, 1521.

[3] A esse respeito, vale citar o comentário de Rudolf Otto, que compara a fé luterana ao “fundo da alma” da mística alemã, o centro “no qual se realiza a união [com Deus]” (O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143). Mais uma vez, é possível ver o parentesco entre Lutero e Mestre Eckhart, via Tauler, discípulo de Eckhart que era lido avidamente pelo jovem Lutero.   

[4] Johann Gerhard, Meditationes sacrae, XIII.

[5] Meditationes sacrae, XIX. Essa compreensão do sacramento é expressa também no Prefácio à celebração da Santa Ceia, utilizado frequentemente na liturgia luterana: “Portanto, com os anjos e arcanjos e com toda a companhia celeste, louvamos e magnificamos o teu glorioso nome.”

[6] Wahres Christentum, livro 2, XX, 4. É interessante comparar a descrição que Arndt dá da “prece sobrenatural” com a descrição que João Cassiano dá dos estágios mais elevados da prece: “[Esta prece] vem de uma intenção mental ardente, através de um enlevo inefável do coração, por meio de um inexplicável arrebatamento do espírito. Livre de todas as sensações e de preocupações visíveis, a mente derrama-se sobre Deus com gemidos e suspiros inexplicáveis (Rm 8,26)” (Conferências, 10, 11).

Para quem gostou, deixaremos o link da parte deste estudo: 
http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html



terça-feira, 1 de novembro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? PARTE 3

"Por isso, Majestade, aceita o meu conselho: expia os teus pecados com as boas obras e as tuas maldades com misericórdia para com os miseráveis! Então talvez se prolongue a tua felicidade" (Daniel 4:24).

A questão das recompensas vem sendo levantada há muito pelos defensores do livre-arbítrio como argumento a favor da justificação pelas obras. Por que Deus promete recompensar os justos, senão pela grandiosidade de suas obras? É o que levantam.


Devemos primeiro analisar quem é premiado. Um ímpio não será premiado por Deus, ainda que suas obras sejam tão gloriosas quanto as estrela do céu. Deus não promete nenhum bem eterno a quem cumpre sua Lei. Assim como a Lei diz respeito às coisas da terra, as recompensas atribuídas ao seu cumprimento também estão conectadas à terra. 
Deus promete todas as coisas, Céu e terra, a bem-aventurança eterna e o mais infinito gozo ao seu único Filho, o Homem Jesus Cristo. É ele o herdeiro de todas as coisas (Hebreus 1:2). Por meio dele, unidos a ele ou fundidos nele, é que podemos participar de sua herança. A herança pertence ao Homem Jesus e a quem for achado nele. 
Sabemos bem que a união com o Homem Jesus Cristo só é possível pela fé. Nenhuma obra nossa tem o poder de nos vincular a ele. A Lei é de todo ineficaz nesse sentido.
É no contexto da união com Cristo que devemos entender o valor de nossas obras e a recompensa que Deus promete. Jesus disse: "Em verdade, em verdade vos digo que AQUELE QUE CRÊ fará também as obras que eu faço e outras maiores fará" (S. João 14:12). Houve um tempo que pensei estar sendo Jesus muito modesto ao dizer tais palavras. Bem, modéstia e imodéstia não cabem a Deus, mas somente às criaturas. Não é uma questão de modéstia ou imodéstia, mas é fato: as obras dos que creem são tão grandiosas quanto as de Cristo e são maiores ainda, pois é Cristo quem continua a operá-las. É uma enorme idolatria atribuir a nós qualquer boa obra. É Cristo que, unido a nós, continua a operar suas obras magníficas. É assim que a fé mantém Cristo no mundo. Ele continua cumprindo a Lei por meio de sua Igreja, ele continua amando por meio de sua Igreja. "Aquele que crê" distingue bem a natureza da obra, que não é obra da Lei, mas dádiva ou Evangelho. É por meio de nossa união com Cristo que recebemos as boas obras. 
O que a Igreja faz de verdadeiramente bom no mundo é consequência de sua união a Cristo e é por meio dessa união que ela será recompensada um dia. O prêmio pertence ao Bendito Filho de Deus e a quem permanece nele, por meio da fé.

Lutero: "Na Teologia, 'fazer' necessariamente requer a própria fé como pré-requisito. 'Fazer', na Teologia, deve ser entendido a respeito do fazer com fé, de maneira que fazer com fé é uma outra esfera, por assim dizer, um novo domínio, diferente do fazer moral (...). Por isso, quando a Escritura diz: 'Redime os teus pecados com esmolas'. 'Faze isto e viverás', etc; é preciso entender, em primeiro lugar, que significa a palavra 'fazer', pois a Escritura, nessas passagens, como tenho dito, está falando de uma fé concreta, não abstrata; composta, não despojada ou simples. O sentido, portanto, dessa passagem: 'Faze isto e viverás' é: 'Viverás por causa desse 'fazer' na fé ou: 'Esse 'fazer' te dará a vida somente por causa da fé'. (...) Não se deve pensar, portanto, como costumam pensar os sofistas e os hipócritas, que as obras justificam absoluta e simplesmente como tais e que méritos e recompensas são prometidos a essas obras morais, mas, sim, apenas, às obras realizadas na fé" (Comentário da Epístola aos Gálatas). 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.