sexta-feira, 30 de outubro de 2015

ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?


"Mas a todos que o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome" (João 1.12).

Há pessoas que, quando leem esse versículo, imaginam que somente os que creem são filhos de Deus. Negam enfaticamente a paternidade de Deus aos descrentes e aos réprobos. 
Eu não penso assim. Para mim esse raciocínio é mais um fruto da Teologia da Glória, que insiste em distanciar Deus do homem. São Paulo ensinou que "há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e PAI DE TODOS" (Efésios 4.5-6).
Jesus Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ele é a única informação confiável e inerrante que temos acerca de Deus. Como afirmou S. João no mesmo texto: "Ninguém jamais viu a Deus. O Filho único de Deus, que está junto ao Pai, foi quem no-lo deu a conhecer" (João 1.18). Fora de Jesus, Deus é à nossa razão um Leviatã, que nos amedronta e nos conduz ao desespero. Jesus é o verdadeiro Deus, a verdadeira Divindade. Portanto, para conhecermos a boa vontade de Deus é necessário recorrermos a Jesus; caso contrário, estaremos perdidos em nossos delírios.
Por outro lado, Jesus é O verdadeiro homem. Não só porque encarnou-se, tornando-se homem, dotado de ossos, tendões, ligamentos, pele e vísceras, como nós; dotado de alma humana. Não, o entendimento da humanação do Filho deve ir além, muito além. Jesus é o verdadeiro homem, a verdadeira humanidade: eu, você e quem está ao seu lado. 
Jesus não representou uma parcela da humanidade, não há fundamentação bíblica para isso. Jesus representou todos os homens, do mais santo ao mais vil, do mais sadio ao mais doente, do mais pobre ao mais rico. Ele de fato representou toda a humanidade em sua obediência, paixão, morte, inferno e ressurreição. Ele nos representou naquilo que nos é impossível: amar a Deus de verdade, acima de nós mesmos, com todo o coração, alma e força. Ele nos representou ao obedecer a Deus estando em seu seio, amando-o e sendo amado de maneira sublime. 
Jesus também nos representa agora, estando assentado à destra de Deus Pai. Portanto, nós estamos com força mergulhados no coração do Pai.
Na pessoa de Jesus, a humanidade se encontra com Deus de maneira perfeita. Não se misturam, mas se tornam inseparáveis, literalmente uma pessoa. Deus não quer que o homem se aproxime dele. Ele quer que o homem faça parte de sua intimidade, mergulhe nele, torne-se um com ele, inseparável dele, um só ser com ele, uma só pessoa com ele. Daí a humanação do Filho. 
Todos os homens, sem exceção, estão congregados em Deus, através de Jesus. Isso nos torna irmãos.
São João não ensinou que crer em Jesus nos torna filhos de Deus. Ele nos ensinou que a fé nos dá esse "poder", ou seja: ela põe a realidade em nossas mãos, para que possamos fruí-la.
Jesus disse: "E quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também" (João 14.3). A isso devemos nos agarrar, pela fé. Essas palavras de Jesus são nossa arma contra nossa carne, contra o mundo e contra o diabo.
Exatamente porque Jesus representa toda a humanidade, ele nos irmana. Todos os homens estão em Jesus e, portanto, somos todos irmãos, filhos de um mesmo Pai. É dessa percepção que deve nascer a vontade de ganhar almas para Jesus. As pessoas têm que saber disso. Os "filhos pródigos" têm que saber disso: que são filhos amados!
Todos nos emocionamos quando alguém doa um órgão para salvar a vida de um irmão. Vez ou outra isso é noticiado pelo Fantástico e nos arranca lágrimas. É então que penso: se todos os seres humanos forem nossos verdadeiros irmãos e estiverem morrendo, sendo-nos possível fazer algo para evitar essa morte, ficaremos de braços cruzados? O que o Fantástico noticia como algo extraordinário deve ser nosso ordinário, porque todos os homens são nossos irmãos, estão morrendo e nos é possível fazer algo para salvá-los da morte.
Então veja que muito da preguiça da Igreja nos dias de hoje é que estamos fechados demais. Não estamos conseguindo identificar nosso verdadeiro irmão no próximo. Nós enxergamos nosso verdadeiro irmão dentro de nossas famílias, amigos íntimos e comunidades religiosas. Então, ao reduzir a percepção de irmandade, fechamo-nos em nós mesmos, em nosso âmbito afetivo. Deus se torna limitado por nosso egoísmo, por nossas amizades, por nossos afetos naturais, não lhe sendo possível atingir quem ele quer: colegas chatos de trabalho, pessoas desagradáveis que convivem conosco, vizinhos de condomínio; a moça que vende trufas no semáforo; o bêbado escornado na rua, presidiários, mendigos que dormem à nossa porta, prostitutas se exibindo nas ruas, e assim por diante. Deus quer chegar a essas pessoas, mas não consegue, porque não as enxergamos como verdadeiros irmãos sentenciados à morte.
Vez ou outra Deus coloca um mendigo para dormir à nossa porta. Ele espera que identifiquemos esse mendigo como irmão, que lhe demos comida e bebida, que lhe ofereçamos coberta, que lhe falemos do amor de Jesus por ele, de seu inestimável valor; que busquemos um lugar seguro onde ele possa dormir, etc. Mas o que fazemos? Damos um jeito de lançá-lo para longe de nossa casa. Erguemos muros materiais e afetivos que nos apartem dele. Não nos passa pela cabeça que ele está conosco no Jesus que sofreu, morreu, ressuscitou e agora está assentado à destra do Pai.
Jesus disse: "Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor" (João 10.16).
Cada pessoa que perece sem salvação é um pedaço da humanidade de Jesus que se perde para sempre. Cada alma que perece é uma chaga viva em Jesus. Lembre-se disso.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 24 de outubro de 2015

JE NE SUIS PAS CHARLIE


Dias atrás assisti à entrevista de uma professora francesa que foi censurada por seus coordenadores devido ao fato de portar um crucifixo. Não estava ensinando às crianças a Bíblia, nem a doutrina católica, nem orações; nada que diz respeito ao catolicismo. Ela apenas portava um crucifixo. Eu poderia citar a tabeliã americana, presa por não agir contra sua consciência. Mas quero ficar com a suave ilustração dessa professorinha francesa.
Que desde o século XVIII o mundo não quer mais Deus, não é nenhuma novidade. Deus foi obrigado, no mundo ocidental, a deixar a filosofia, as ciências, as leis, a moralidade, enfim: o homem. Agora o filho de Adão alcançou o que sempre quis: sua divindade. Porque não me venha falar que o homem pode viver sem Deus. Se ele retirar Deus de seu pensamento, irá ocupá-lo consigo mesmo, transformando-se em seu próprio deus.
Daí o mundo ocidental se transformou em um enorme Panteão, onde cada um é deus, onde alguns deuses se sobressaem pela sua inteligência, oratória e força. Cada qual estabelece a moralidade, a verdade e o destino que lhe cabem (ou aos outros). 
Não que isso seja algo novo. É que agora o homem o faz livremente, sem culpa e sem freios. Como resultado, a sociedade tornou-se extremamente individualista e egoísta, porque cada qual se sente deus. É querer demais que um deus sirva e ame. Não, é próprio de um deus ser servido e amado, prevalecer, sujeitar e vencer, pois é assim que a razão sempre estabeleceu que Deus é.
Obviamente, o Estado, como sendo fruto do pensamento humano, também determinou sua emancipação em relação a Deus, tornando-se laico. 
Não vejo com maus olhos o Estado laico, porque em um mundo globalizado como o nosso, onde culturas tão diferentes estão misturadas, é necessário que o Estado garanta o direito de livre expressão a todos.
Mas é exatamente aqui que me revolto contra a tendência do governo. Hoje o governo não quer ser mais laico, mas antirreligioso. Há uma tendência cada vez maior de combater toda a forma de expressão religiosa. As pessoas podem se manifestar livremente, contanto que não expressem sua religiosidade. 
Somente o Estado quer ensinar o que é correto e moral. Ele quer ser deus, o maior deles, para reger seus deuses. O Estado quer impor sua própria religião, que não é outra senão o ateísmo. O que antes o Estado fazia em nome da Igreja, hoje ele quer fazer em nome do ateísmo, novamente cerceando liberdades. Você deve aceitar o fato de que é seu próprio deus, fim em si mesmo, senhor de seu destino, determinante de sua verdade e moralidade, determinante de quem é. A massificação que o Estado provocava em nome de Deus, hoje ele provoca em nome do ateísmo. 
Não estou querendo, com isso, justificar os horrores que a Igreja cometeu enquanto esteve ligada ao Estado. Judeus, luteranos, protestantes e católicos romanos sabemos bem o quanto essa ligação do Estado à Igreja foi terrível. O problema é que o Estado trocou a Igreja pelo ateísmo, querendo impô-lo da mesma maneira como quis impor a Igreja, em outros tempos. Agora o feitiço se volta contra o feiticeiro e quem está sendo perseguido é a Igreja, que em outros tempos perseguiu. E mais: não somente a Igreja, mas qualquer manifestação religiosa.
Fico pensando sobre qual imposição ou ditadura do Estado foi mais deletéria ao homem. Porque enquanto ele impôs a Igreja, o que não é certo, volto a repetir, ao menos ele impunha Deus como um padrão comum de moralidade e mantinha-nos muito humanos e irmanados em torno desse padrão. O ateísmo, por sua vez, entrega ao homem a divindade, o que abre espaço à individualidade, ao egoísmo e à competitividade. Não que o ateu seja individualista e egoísta; há ateus virtuosíssimos! bem mais comprometidos com a vida humana que muitos religiosos. Mas a deificação do homem tende a fortalecer o seu individualismo, isolando-o em si mesmo, o que resulta no que vemos hoje: tristeza, intolerância, insensibilidade, pessimismo, cansaço e desesperança.
O homem não pode subsistir sem Deus. Somos homens porque há um Deus. Quando a Divindade desaparece, nossa humanidade se esvai. É certo que uma sociedade não pode sobreviver ao assassínio de Deus. 
Minha opinião é que o Estado deve ser laico. Entretanto, ser laico é preservar o direito de livre expressão a todos, não excetuando ninguém. Um Estado verdadeiramente laico não deve ensinar o que é certo ou errado, o que é moral ou imoral, o que é adequado ou antiquado. Exatamente por ser laico, ele deve delegar tal função às famílias e comunidades religiosas. Por outro lado, um Estado verdadeiramente laico deve permitir que religiosos possam expressar sua opinião livremente, sem medo, assim como ateus e agnósticos o fazem, nos dias atuais. Também não deve sujeitar nenhuma consciência à sua doutrina. Aliás, um Estado verdadeiramente laico não deve ter doutrina alguma. 
Quanta riqueza cultural é perdida quando um governo deixa de ser laico para se tornar antirreligioso! Porque religião é cultura, é história, é língua, é sabedoria, é comportamento, é vida. Também as religiões cooperam com a sociedade e, por conseguinte, com o Estado também, porque ensinam que o outro existe e deve ser amado.
Que importa ao Estado se eu coloco uma imagem em meu consultório de ambulatório público, como o faço? Não estou convencendo ninguém a se tornar cristão. Não estou fazendo propaganda. Isso não é proselitismo. Mas quem entra em meu consultório sabe que está sendo atendido por um ser humano, que tem fé, consciência, valores e uma vida. Quem entra em meu consultório, ao ver a imagem, deve saber que está sendo atendido por um homem, mais precisamente por um homem cristão, não pelo Estado. Assim como alguém tem o direito de expressar seu repúdio às religiões, não utilizando imagens ou qualquer símbolo religioso, também eu tenho o direito de expressar a minha fé cristã. Não é por não ser adepto do ateísmo do Estado que devo me silenciar. O Estado laico deve garantir meu direito de não ser ateu, de ser cristão onde quer que eu vá, onde quer que eu trabalhe, onde quer que eu viva, ainda que trabalhe para ele.
É esta a minha crítica enfática contra o chamado Estado "laico".
Eu quero um Estado realmente laico, que preserve meu direito de ser quem sou; não um Estado antirreligioso.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

DA GLÓRIA PARA A CRUZ


Estamos nos aproximando da celebração da Reforma e é então que me vem a necessidade de novamente remoer a Teologia da Cruz, que é um distintivo da doutrina luterana e algo que deve residir no coração de todo cristão verdadeiro. Na verdade, todo cristão deverá chegar à Teologia da Cruz. Essa teologia que embeleza as confissões luteranas terá que embelezar também o coração de todo cristão antes que ele parta deste mundo.
Deus deixou a sua glória para ser pendurado numa cruz, de maneira vexatória. Também nós devemos deixar a glória e descer até à cruz.
Assim nos ensina S. Paulo: "Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus" (1 Coríntios 1.18).
Há duas maneiras de ter conhecimento acerca de Deus e, a partir desse conhecimento, relacionar-se com ele. A primeira maneira é através da razão. A segunda, através da fé.
A razão nos revela muito sobre Deus. Ela busca informações acerca de Deus no homem e fora do homem, no mundo e no universo. Ela busca conhecer Deus através do que ele criou e estabeleceu. Também a razão aprende muito acerca de Deus a partir da Lei natural que existe em nosso coração.
O problema maior de se procurar Deus através da razão é que inevitavelmente iremos dar com um Deus distante, inacessível e amedrontador. Como nossa razão está corrompida pelo pecado, interpreta o desassossego da consciência como ira de Deus e tem como imanência de Deus a criação, que está igualmente corrompida pelo mal (Romanos 8.20-22). O resultado dessa percepção é uma caricatura de Deus, porque nossa razão é caricata, nossa consciência é caricata e a criação é caricata. O Deus que a razão produz é soberano, distante, terrível em seus decretos, incomunicável, incompreensível, não servido por mãos humanas; que ama e rejeita na mesma proporção, elege, julga, salva e condena. Esta é a Teologia da Glória. Ela é erigida sobre essa percepção de Deus e desenvolve-se através de obras, servidão e medo. Depois, moralismo e isolacionismo. Ela nos apresenta um Leviatã, que não podemos amar, somente temer e adorar, amedrontados. 
A Teologia da Glória é lógica, fruto da razão humana. Ela dá corpo a praticamente toda teologia que existe na terra. Esse Deus que ela propõe é adorado pelos muçulmanos, pelos judeus e por muitos cristãos. Trata-se do "DEUS DESCONHECIDO" dos atenienses, sobre o qual falou S. Paulo: "Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites de sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, TATEANDO, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração" (Atos 17.24-28). Esse Deus não pode ser encontrado, muito menos tocado. Na melhor das hipóteses, ele é só tateado.
Dr. Martinho Lutero trata esse Deus de "Deus escondido" ou "Deus abscôndito".
Muitos, aos lerem as Escrituras, interpretam-nas com o véu da razão (ou Teologia da Glória) diante dos olhos, como disse S. Paulo, com referência aos judeus: "Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é retirado" (2 Coríntios 3.15-16).
A relação com esse Deus abscôndito não nos salva, porque não pode haver verdadeira confiança nele, muito menos amor. Como amar tão severo juiz, que com tanto furor castiga o pecado, reivindica a santidade, reivindica o que não podemos lhe dar, por mais que nos esforcemos? Como amar tão terrível soberano, que destrona poderosos e destrói nações como se fossem nada, de acordo com seu conselho inescrutável? É certo que prevalecem temor, tremor e adoração servil no coração humano. Como somos imagem e semelhança de Deus, quando adotamos a Teologia da Glória também nos tornamos miniaturas do Leviatã, cheios de moralismo e fechados em nós mesmos, não querendo nos misturar com quem é moralmente inferior.
Dr. Martinho Lutero deixou um único legado: a Teologia da Cruz. Ela está formalizada nas confissões luteranas, mas é necessário que todo cristão se dê com ela um dia. Caso contrário, estará perdido com os muçulmanos e judeus.
Deus está revelado de maneira autêntica e perfeita somente em Jesus. Fora de Jesus, tudo é caricato e não pode nos conduzir ao conhecimento de Deus. Fora de Jesus, nada podemos saber de Deus. Fora de Jesus teremos um monstro para servir; nada mais.
Deus se tornou homem, palpável, visível, com sentimentos, que chora e carece. Deus se tornou homem que cansa, que dorme profundamente, que sua gotas de sangue, que se angustia até à morte. Deus se tornou homem para ser escarnecido e morrer em uma cruz da maneira mais aviltante que se pode imaginar. Deus se tornou homem para tocar, curar, andar e jantar conosco. Deus se tornou homem para estar conosco segundo sua humanidade, para ser triturado em nossa boca e engolido. Deus se tornou homem para nos revelar seu amor de maneira inequívoca.
Essa é a Teologia da Cruz, que nos apresenta a humanidade de Deus. Não temos que nos tornar divinos para o comungarmos. É ele quem se torna humano para o comungarmos. O eixo dessa teologia é a humanidade de Deus, não o conhecendo fora dessa humanidade. Dr. Martinho Lutero, para escândalo de muitos, reiteradas vezes afirmou que não conhecia Deus algum que não houvesse se encarnado.
A Teologia da Cruz não busca Deus fora do homem, mas nele. Não quer saber sobre a transcendência, nem sobre os decretos, soberania, juízos e predestinações desse Deus. Rejeita tudo isso para abraçar, beijar e cheirar sua carne. 
Eu fui conhecer a Teologia da Cruz na Igreja Evangélica Luterana. O que me atraiu a essa igreja foi a presença real de Cristo na Eucaristia. Mas imbuído da Teologia da Glória, eu temia a presença real de Cristo nos elementos, porque para mim essa presença era REAL, no sentido de realeza também. Eu não podia crer que Deus estava me servindo. Assim, certo dia confessei ao pastor André Plamer que achegar-me à Eucaristia estava me provocando medo, devido às minhas indignidades. Ele, que me instruiu na Teologia da Cruz, ensinou-me a nunca ter medo de Deus. Deus é humilde e gosta de servir. Para ele, lavar os pés é pouco. Para ter parte com ele é necessário literalmente comê-lo e bebê-lo.
Foi então que descobri Deus e sua Igreja, inclusive eu, nos Cânticos de Salomão. 
Somente esse Deus pode ser verdadeiramente amado e crido. Somente a esse Deus podemos servir de boa vontade ou livremente. Somente esse Deus pode nos salvar.
Igualmente, como somos imagem e semelhança de Deus, quando enxergamos a fragilidade de Deus, sua humildade e serviço, voltamo-nos para nossa indigência e tornamo-nos mais abertos, solidários, compassivos, solícitos e servis. Passamos a nos alegrar em nossa pobreza, porque ela nos configura a esse Deus. Essa teologia nos faz amar o último lugar, onde Deus se encontra. Também faz com que nos apeguemos aos escândalos, onde Deus está.
Essa Teologia da Cruz deve ser perseguida a todo o custo por todos os cristãos. Quem se encontra na Teologia da Glória deve suplicar a Deus que este o transporte à Teologia da Cruz o quanto antes. 
A Teologia da Cruz não é luteranismo, é uma necessidade humana. 
Muitos imaginam a Reforma como sendo uma ruptura com a apostasia, superstições medievais, imagens, crucifixos e velas. Não, a verdadeira Reforma foi uma ruptura com a Teologia da Glória. Acho importante retornarmos às nossas origens, não por uma questão doutrinária somente, mas por uma questão de vida.
Quem encontra a Teologia da Cruz e adere a ela, já está reformado, não importa em qual igreja congregue.

Dr. Martinho Lutero: "É perigoso querer perscrutar e compreender a divindade nua sem o mediador Cristo, pela razão humana, como o fizeram os sofistas e monges e como o ensinaram outros. A Escritura diz: "Não me verá o homem, e viverá"; e a fim de evitarmos tal perigo, foi-nos dado o Verbo encarnado, colocado num presépio e suspenso na madeira da cruz. Este Verbo é a Sabedoria e o Filho do Pai, e nos revelou qual é a vontade do Pai conosco. Aquele que, tendo posto de lado este Filho e segue suas cogitações e especulações, este se escondeu da majestade de Deus e desespera".



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 17 de outubro de 2015

AS INDULGÊNCIAS - PARTE 3


Cardeal Suposto: Prezado irmão Lutero, estou representando Vossa Santidade, o Papa Leão. Venho em missão de paz, em busca somente de esclarecimentos sobre o que você tem pregado. Temos acompanhado seus debates e você deve saber que foi acusado de heresia. Eu lhe pergunto: é desejo seu dividir a Santa Igreja de Cristo?
Lutero: Estou grato por sua visita, pois tenho sido atribulado muitíssimo não só por algumas doutrinas da Igreja, como pelos ataques frequentes de muitos que querem adquirir fama e prestígio às minhas custas, como João Eck. Eu confesso uma Santa Igreja Católica. Não é propósito meu dividir o que não pode ser dividido pelo homem. "Eu mesmo me pergunto com espanto que destino fez com que tão somente esses meus debates, antes dos outros - não apenas dos meus, mas de todos os mestres -, se propagassem em quase toda a terra. Eles foram publicados junto aos nossos e, apenas por causa dos nossos, e o foram de tal modo, que me parece inconcebível que tenham sido compreendidos por todos. POIS TRATA-SE DE DEBATES, NÃO DE DOUTRINAS, NEM DE DOGMAS" (Explicações).
Cardeal Suposto: Então você não pretende dividir a Santa Igreja Católica Romana. O que significa para você Igreja?
Lutero: "Onde quer que se pregue a palavra de Cristo e se creia nela, ali está a verdadeira fé, essa rocha irremovível; e onde está a fé, ali está a Igreja" (Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck).
Cardeal Suposto: Como então você compreende as palavras dirigidas por Nosso Senhor Jesus Cristo ao primeiro papa: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela"?
Lutero: "Essa palavra de Cristo não pode ser entendida como se fora dirigida somente a Pedro, visto que Cristo perguntou não só a Pedro, mas a todos os apóstolos, dizendo: "Vós, porém, quem dizeis que eu sou?". Por conseguinte, se não tivessem respondido todos os discípulos através de Pedro, certamente não teriam sido discípulos, nem teriam ouvido ao Mestre, nem teriam correspondido ao que perguntava. E pensar deste modo a respeito dos apóstolos é ímpio. Resta, pois, que Cristo aceitou a resposta de Pedro não só para a pessoa de Pedro, mas para todo o grupo dos apóstolos e discípulos. Do contrário, teria feito a pergunta de novo, também aos demais. O texto, porém, continua: "E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Se sob "esta pedra" entendemos o poder do papa, vê o que estamos fazendo: a primeira conclusão é que a Igreja primitiva dos apóstolos não foi Igreja, porque Pedro (para prová-lo com argumentos sólidos) ainda se encontrava em Jerusalém 18 anos depois e ainda não tinha visto Roma, o que se evidencia da Epístola de Paulo aos Gálatas. Ademais, em Mateus 18.17-18, fala no PLURAL não a Pedro, não aos apóstolos, mas à Igreja, dizendo: "Se não ouvir a IGREJA, ele te seja como gentio e publicano"; "em verdade vos digo: Tudo o que ligardES na terra será ligado também no céu." Vem cá, pois, se quiseres, e compara esta passagem com aquela. Aquela soa como se as chaves fossem dadas a Pedro; esta o nega e assevera que não foram dadas somente a ele. Como podem permanecer de pé ambas as afirmações? Em todo caso, é preciso que uma palavra concorde com a outra, pois foi o mesmo Cristo que disse as duas. Se foram dadas só a Pedro, é mentira o que Cristo diz aqui - que foram confiadas a todos. Quem, no entanto, não percebe que esta segunda palavra interpreta a primeira, e que nesta segunda é exposto claramente o assunto, enquanto naquela se encarece, na pessoa de Pedro, a unidade de muitos na Igreja? Em resumo (como já disse): se, com essas palavras, Cristo teve em mente a Igreja Romana - embora só tenha surgido no vigésimo ano da Igreja primitiva -, segue-se que a própria Igreja primitiva não foi Igreja e que, por conseguinte, foram desobedientes a Cristo todos os que não receberam as chaves da Igreja Romana. E assim se deveriam considerar condenados a S. Estêvão e tantos milhares de mártires da Igreja oriental"(Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck).
Cardeal Suposto: Então você acredita que a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo não é a Igreja Católica Romana?
Lutero: "Ela nunca esteve sobre as Igrejas da Grécia, da África e da Ásia, não confirmou seus bispos do modo como confirma os nossos, como as histórias comprovam com suficiência. Ademais, sem dúvida há cristãos no Oriente, visto que o reino de Cristo é o mundo inteiro, de acordo com Salmo 2.8. Não obstante, seus bispos não são instituídos nem confirmados por Roma, o que também não é necessário"(Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck). 
Cardeal Suposto: Com esta sua visão sobre a Santa Igreja Católica, você se opõe ao papa, como representante de S. Pedro?
Lutero: "Sendo certo que nenhum dos apóstolos foi instituído ou enviado por Pedro, não é verdade nem possível que todas as ovelhas tenham sido confiadas a Pedro. É a todos que foi dito, numa expressão geral: "Apascenta minhas ovelhas". Pois não diz "todas", como quando diz a todos os apóstolos: "Ide a todo o mundo e ensinai a todos os povos" (Marcos 16.15). Não consigo admirar-me o bastante com o fato de que tantos e tão grandes homens reivindicam todas as ovelhas para Pedro, contra passagens bíblicas tão expressas, contra a experiência tão evidente, ainda que se vejam obrigados a confessar unanimemente que cada um dos apóstolos foi enviado à sua região específica e que Paulo foi chamado do céu para o apostolado dos gentios. Como ousaremos afirmar que, em tudo isso, Pedro foi o pastor de todos? Segue-se, pois, que ou não foram confiadas a Pedro todas as ovelhas de Cristo, ou então as ovelhas não pastoreadas por Pedro, mas por Paulo e os demais apóstolos, não pertencem às ovelhas de Cristo. "Apascentar" não significa ser o primeiro ou o príncipe. Por isso, dessa palavra não se pode provar outra coisa do que o dever do pontífice romano de pregar e ensinar a palavra de Deus" (Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck).
Cardeal Suposto: Pelo que percebo, você está questionando a autoridade do papa. Isso é verdade? 
Lutero: "Não sei se a fé cristã pode suportar que se estabeleça na terra outro cabeça universal da Igreja além de Cristo. Pois a Igreja é chamada de reino da fé porque nosso rei não é visto, mas crido, como se lê em 1 Co 15.24-25" (Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck). "Como todos os bispos são iguais por ORDENAÇÃO DIVINA e ocupam o lugar dos apóstolos, posso muito bem confessar que, POR ORDENAÇÃO HUMANA, um está acima dos outros na Igreja exterior. Com efeito, aqui o papa infunde o que tem em mente: seus direitos canônicos e obras humanas, por exemplo. Basta que deixemos que o papa seja papa. Ele deve permanecer abaixo de Cristo e se deixar julgar pela Sagrada Escritura" (A respeito do papado em Roma contra o celebérrimo romanista de Leipzig).
Cardeal Suposto: Chegou ao nosso conhecimento que você está cheio de questionamentos sobre a doutrina da penitência. Você vê algum problema na contrição?
Lutero: "Pela contrição o ser humano volta à graça com Cristo, assim como o filho pródigo [volta à graça] junto a seu pai, que diz: "Tudo o que é meu é teu" (Lucas 11:31). A verdadeira contrição deve partir da benignidade e dos benefícios de Deus, sobretudo das feridas de Cristo, para que a pessoa chegue primeiramente [ao reconhecimento de] sua ingratidão a partir da contemplação da bondade de Deus e, a partir dela, ao ódio de si mesma e ao amor da benignidade de Deus. Então correrão lágrimas, e ela odiará a si mesma de coração, porém sem desespero. Então odiará o pecado, não por causa da pena, mas por causa da contemplação da bondade de Deus. Tendo-a considerado, ela será preservada para que não desespere e para que odeie a si mesma ardentemente, mas com alegria. Quando assim houver verdadeira contrição POR CAUSA DE UM ÚNICO PECADO, haverá, ao mesmo tempo, verdadeira CONTRIÇÃO POR TODOS" (Explicações). "Silencio aqui a respeito do insuportável caos que nos impuseram, a saber, de fazer contrição de todos os pecados, pois isso é impossível; somente podemos conhecer uma pequena parte dos pecados. Finalmente também acontece que também as boas obras são consideradas pecado. Basta que sintamos dor com relação àqueles pecados que nos angustiam segundo a consciência atual e que podem ser conhecidos por uma fácil recordação da memória. Pois quem estiver assim disposto sem dúvida está preparado para sentir dor em relação a todos os pecados e a temê-los, e sentirá dor e os temerá quando forem revelados no futuro" (Do Cativeiro Babilônico da Igreja). 
Cardeal Suposto: Irmão Lutero, com esta visão tão abrangente sobre o pecado, concordo que é de fato impossível a contrição por cada pecado. Imagino que você sustente a mesma coisa acerca da confissão.
Lutero: "Não há dúvidas de que a confissão dos pecados é necessária e ordenada por Deus: "Eram batizados por João no Jordão, confessando seus pecados" (Mateus 3.6). "Se confessarmos nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os nossos pecados. Se dissermos que não pecamos, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós" (1 João 1.9). Entretanto, a confissão secreta, tal como hoje é praticada, não pode ser comprovada pelas Escrituras. Mesmo assim ela me agrada muito, é útil e até necessária; também não gostaria que não existisse. Inclusive alegro-me de que exista na Igreja de Cristo, pois é ela o único remédio para as consciências aflitas"(Do Cativeiro Babilônico da Igreja)."O ser humano deve considerar que não lhe é possível lembrar e confessar todos os seus pecados mortais, mas deve supor que, mesmo após todo o seu esforço, confessou apenas a menor parte de seus pecados. Pois diz o profeta num salmo: "Ó Senhor, purifica-me de meus pecados ocultos" (Salmo 51.2). E, em outro salmo: "Quem compreende o pecado?" (Salmo 19.12). Por isso, a pessoa deve confessar os pecados mortais que são pecados mortais manifestos e que oprimem a consciência quando da confissão, deixando os outros de lado. Pois é impossível que o ser humano consiga confessar todos os seus pecados mortais, que também nossas boas obras são mortais e condenáveis, se Deus as julga e avalia com seu rigor, e não com sua bondosa misericórdia. No entanto, caso se devam confessar todos os pecados mortais, que seja feito com as seguintes breves palavras: "Sim, toda a minha vida e tudo o que faço, digo e penso é feito de tal forma, que é mortal e condenável" (Uma breve instrução sobre como devemos confessar-nos).
Cardeal Suposto: São interessantes as suas colocações sobre o sacramento da penitência. Não vejo heresia alguma nelas. Mas de acordo com sua visão, você mantém a necessidade da satisfação?
Lutero: "Em Romanos 12.1 o apóstolo ordena que ofereçamos nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Em seguida, expõe clara e amplamente como isso deve ser feito, ao ensinar que pensemos com humildade, sirvamos e amemos uns aos outros, perseveremos na oração, sejamos pacientes, etc. Como ele também diz em 2 Coríntios 6.4-5: "Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em jejuns e vigílias", etc. Porém também Cristo ensina, em Mateus 5 e 6, a jejuar, orar, dar esmolas corretamente. Do mesmo modo, em outro lugar: "O que resta, dai como esmola, e eis que tudo vos será limpo" (Lucas 11.41). Daí se segue que, por serem PRECEITO de Cristo, aquelas três partes da satisfação - jejum, oração e esmola - não pertencem à Penitência Sacramental no que diz respeito à substância das ações. Pertencem a ela no que diz respeito ao MODO e TEMPO determinado, segundo o qual a Igreja as ordenou, a saber, quanto tempo se deve orar, jejuar, dar, do mesmo modo quanto e o que dar. Contudo, na medida em que pertencem À PENITÊNCIA EVANGÉLICA, o jejum compreende todos os castigos da carne; a oração, todo exercício da alma; a esmola, todo obséquio para com o próximo. Assim, pelo jejum [a pessoa] serve a si mesma; pela oração, a Deus; e pela esmola, ao próximo. Pelo primeiro, ela vence a concupiscência da carne e vive sóbria e castamente; pela segunda, vence a soberba da vida e vive piedosamente; pela terceira, vence a concupiscência dos olhos e vive de maneira justa neste mundo. Por isso, todas as mortificações que a pessoa compungida se impõe - sejam elas vigílias, trabalhos, privações, estudos, orações, evitar o sexo e os prazeres - pertencem À PENITÊNCIA INTERIOR, como seus frutos, na medida em que PROMOVEM O ESPÍRITO" (Explicações). "Ao dizer: "Fazei penitência", etc (Mateus 4.17), nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que TODA A VIDA DOS FIÉIS FOSSE PENITÊNCIA" (Tese 1). "As penas canônicas são impostas tão somente às pessoas que, por serem preguiçosas, não querem fazer coisa melhor ou, pelo menos, para examiná-las quanto à veracidade de sua contrição. O Evangelho certamente ensina que não se deve fugir das penas nem relaxá-las, mas sim buscá-las e amá-las, porque ensina do espírito da liberdade e do temor de Deus até o desprezo de todas as penas" (Explicações). 
Cardeal Suposto: Irmão Lutero, concordo com você com relação à penitência da vida cristã ou penitência evangélica. Mas você parece não acreditar nas indulgências, por meio das quais podemos socorrer as débeis almas do purgatório.
Lutero: "Não falo nada sobre o fogo e o lugar do purgatório, não porque o negue, mas porque esse é um outro debate que não me propus agora; além disso, porque não sei onde é o lugar do purgatório, embora B. Tomás creia que ele esteja debaixo da terra. Nesse meio-tempo, entretanto, fico com o B. Agostinho, a saber, que os receptáculos das almas são escondidos e estão fora de nosso conhecimento. Digo isto para que o herege begardo não imagine que obteve de mim [a afirmação de] que o purgatório não exista porque confesso que seu lugar é desconhecido, ou que a Igreja Romana erra por não rejeitar a opinião do B. Tomás. É-me certíssimo que existe um purgatório. Eu, contudo, para continuar (assim como comecei) a opinar e debater, sem nada afirmar, digo: se o purgatório é tão somente uma oficina para o pagamento de penas e as almas que nele estão são impuras por sua imoderação (como penso eu) e não são purificadas desse vício, o purgatório se tornaria o mesmo que é o inferno, pois o inferno é onde existe pena com culpa que permanece. Ora, nas almas do purgatório existe culpa, a saber, temor das penas e falta de amor, ao passo que o justo, segundo Isaías 8.13, nada deve temer senão apenas Deus; portanto, elas pecam sem interrupção enquanto temem as penas e buscam repouso. Provo isso pelo fato de que buscam seu próprio interesse mais do que a vontade de Deus, o que é contra o amor. Confesso francamente que creio que nenhuma alma é redimida das penas do purgatório por causa de seu temor, até que ponha de lado o temor e comece a amar a vontade de Deus em tal pena, e a ame mais do que teme a pena, sim, até que ame unicamente a vontade de Deus, mas vilipendie a pena ou até a ame na vontade de Deus. Porque é necessário amar a justiça antes de ser salvo. A justiça, porém, é Deus, que opera essa pena. Depois, há aquela palavra de Cristo: "Quem não toma (isto é, CARREGA DE BOM GRADO E COM AMOR) sua cruz e me segue, não é digno de mim" (Mateus 10.38). Ora, A CRUZ DAS ALMAS É AQUELA PENA" (Explicações). 
Cardeal Suposto: Então para você a alma continua sendo aperfeiçoada pela cruz no purgatório, não saindo de lá enquanto não aprender a amar sua cruz? É uma nova doutrina, Lutero, que não se deve admitir. Nós podemos socorrer essas almas com nossos méritos, ainda que elas aprendam a amar sua cruz.
Lutero: "Lá somente o Espírito socorre sua fraqueza o mais possível, intercedendo por elas com gemidos inexprimíveis. Pois o mesmo acontece aos tentados nesta vida, de modo que não sabem se esperam ou desesperam; sim, parece-lhes que desesperam, restando só um gemido por auxílio. Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da justiça, como dissemos acima. Pois elas têm mais medo de não louvar a Deus (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, com razão, esse seu santíssimo, porém ansiosíssimo desejo tanto quanto pode, principalmente porque também Deus quer que elas sejam auxiliadas por meio da Igreja. O papa não tem, é verdade, qualquer poder sobre o purgatório, assim como nenhum outro bispo; mas se ele tem algum poder, certamente tem um poder de tal natureza, que também os inferiores dele participam. Ora, este é o poder pelo qual o papa e qualquer outro cristão podem interceder, orar, jejuar, etc. pelas almas falecidas - o papa de modo geral, o bispo de modo particular, o cristão de modo individual. "Tudo o que ligares NA TERRA será ligado também nos céus; e o que DESLIGARES NA TERRA será desligado nos céus" (Mateus 16.19). Não é em vão que ele acrescentou "na terra". Do contrário, se não tivesse querido restringir o poder das chaves, teria sido suficiente dizer: "Tudo o que desligares será desligado". Portanto, ou Cristo, feito um tagarela, usa palavras SUPÉRFLUAS ou o poder das chaves existe unicamente na terra" (Explicações).
Cardeal Suposto: Vejo, prezado Lutero, que você está disposto a acabar com a doutrina das indulgências. Atribui à Igreja militante e à Igreja triunfante somente o poder de auxiliar a Igreja que se encontra no purgatório através das orações. Pelo que entendi, você nega de vez a existência e necessidade das indulgências.
Lutero: "Essa opinião de que os cânones devem ser cumpridos após a morte não tem absolutamente nenhuma passagem da Escritura, nenhum cânone ou razão plausível. Além disso, temos exemplos dos antigos pais. Cipriano, talvez o mais rígido observante de censuras e disciplinas eclesiásticas, ordena, ainda assim, na carta 17 do Livro III, que se dê a paz àqueles que estão submetidos a perigo de morte, para que venham com paz ao Senhor, tendo feito sua confissão ao presbítero ou ao diácono, como ele diz no mesmo lugar. Esse dar a paz nada mais é do que aquilo que, hoje em dia, é chamado de REMISSÃO PLENÁRIA, como fica claro para quem olha atentamente. Mas aqui alguém poderia dizer: "Falar assim é vilificar excessivamente as indulgências, se só as penas canônicas são remitidas, e nem mesmo todas, e unicamente para esta vida". Respondo: é preferível desvalorizar as indulgências do que esvaziar a cruz de Cristo. Sou de opinião que tal doutrina é digna de maldição e contrária aos mandamentos de Deus (Explicações).
Cardeal Suposto: Você tem noção da gravidade de suas asseverações? Primeiro questiona a autoridade do papa e da Santa Igreja Católica Romana. Depois nega uma doutrina muito bem estabelecida, que é a doutrina das indulgências. Jamais você será atendido em suas solicitações, ainda que um concílio seja realizado. O que você tem a dizer a respeito do tesouro de indulgências que a Igreja tem, que são os méritos de Cristo e dos santos, especialmente dos santos mártires?
Lutero: "O teólogo da cruz (ou seja, o que fala do Deus crucificado e abscôndito) ensina que penas, cruzes e morte são o TESOURO MAIS PRECIOSO DE TODOS e as relíquias mais sagradas, que o próprio Senhor dessa teologia consagrou e bendisse, não apenas através do toque de sua santíssima carne, mas também através do amplexo de sua vontade supersanta e divina, deixando-as aqui como [as relíquias] que, em verdade, devem ser beijadas, buscadas, abraçadas. Depois, vê também que coisa é esta: como se os méritos de Cristo somente não fossem suficientes, acrescentam a esse tesouro os méritos dos santos, assim como os da Igreja militante. Nenhum dos santos cumpriu suficientemente os mandamentos de Deus nesta vida. Logo, absolutamente nada de superabundante fizeram. Por esta razão, não deixaram alguma coisa a ser distribuída como indulgências. Todo santo deve amar a Deus tanto quanto pode, sim, além do que pode, mas nenhum deles o fez e pode fazê-lo. Através da mais perfeita de todas as suas obras, a saber, morte, martírio, sofrimento, os santos não fazem mais do que devem; sim, fazem o que devem, e também isto fazem mal-e-mal. Por conseguinte, muito menos fizeram mais do que era sua obrigação em outras obras. As penas dos mártires e santos devem ser um exemplo no sentido de suportar as penas. Pois assim oramos quando celebramos suas festas: "Que imitemos também a virtude do sofrimento". A Igreja necessita de uma reforma, o que não é tarefa de uma única pessoa, do pontífice, nem de muitos cardeais - como o provou, a ambas as coisas, o último concílio -, mas de todo o mundo, mais ainda: unicamente de Deus. Mas só aquele que criou os tempos conhece o tempo dessa reforma. Nada na Igreja deve ser tratado com maior cuidado do que o santo Evangelho, já que a Igreja nada tem de mais precioso e salutar. Creio que por meio desta minha protestação fica suficientemente claro que por certo posso errar, mas que não sou um herege, por mais que rujam e se desfaçam de raiva aqueles que pensam ou desejam outra coisa" (Explicações).
Cardeal Suposto: Quer concluir? Ou já disse o suficiente? 
Lutero: "É esta a confiança dos cristãos e a jovialidade de nossa consciência: PELA FÉ, nossos pecados não são nossos, mas de Cristo, sobre o qual Deus colocou os pecados de todos nós; ele levou sobre si os nossos pecados; ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Inversamente, toda justiça de Cristo se torna nossa. Pois ele impõe sua mão sobre nós, e ficamos bem, e ele estende seu manto e nos cobre, bendito Salvador em eternidade, amém. Por isso, Beatíssimo Pai, prostrado aos pés de Vossa Beatitude, ofereço-me com tudo o que sou e tenho. Vivificai, matai, chamai, revogai, aprovai, reprovai, como vos aprouver. Em vossa voz reconhecerei a voz de Cristo que governa e fala em vós. Se mereci a morte, não me recusarei a morrer" (Explicações). 



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.
Todas as obras citadas encontram-se nos volumes 1 e 2 de Obras Selecionadas de Martinho Lutero, Editora Concórdia.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

SER



Perdido em minha escuridão profunda
Amargando a mentira de Ser 
Sou devaneio de um louco
Sou devaneio do nada
Ando pela madrugada
Sem meu Corpo
Nem Sangue
Sem um Eu
Nem nada

Que mistério há neste Corpo e Sangue

Que entram em mim para serem Eu
Que me dão o que Eu sou
Dão-me concretude
Volatilidade 
Realidade
Verdade
Tudo
Eu


Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.




quarta-feira, 14 de outubro de 2015

AS INDULGÊNCIAS - PARTE 2


Na postagem anterior, explicamos no que consiste o sacramento da penitência para os católicos romanos. Sem conhecer a visão que eles desenvolveram acerca da penitência, não é possível falar das indulgências, que é o nosso objetivo, porque estamos no mês da Reforma luterana.
Veja-se que entregar o perdão dos pecados ao homem não é boa coisa. Sujeitar o perdão dos pecados à sincera tristeza por havê-los cometido e à confissão de cada um deles é algo extremamente perigoso. Pode, por um lado, gerar falsa segurança, o que geralmente se dá às custas de hipocrisia e de um empobrecimento muito grande do que é pecado. Por outro, quando a consciência é atingida pela Lei de Deus, pode conduzir a pessoa ao desespero, como ocorreu com Dr. Martinho Lutero. 
Tenho minha firme opinião que o purgatório não é doutrina católica e apostólica. Fosse católica e apostólica, deveria constar das Escrituras, dada a sua relevância e porque os apóstolos ensinaram abundantemente sobre pecado, tribulações, comunhão dos santos e galardão. Também era de se esperar que houvesse opinião consensual entre os cristãos de sucessão apostólica, o que não é fato. Apenas os católicos romanos (e as igrejas orientais sujeitas ao Vaticano) confessam a existência do purgatório.
Portanto, o purgatório é fruto inevitável de uma teologia baseada em obras e méritos. Se alguém deseja auxiliar Deus em sua salvação, certamente terá que pensar em algo do tipo, pois morremos em pecado e com a consciência atribulada. 
Com base na doutrina do purgatório é que surgiu a doutrina das indulgências. De fato, indulgências não significam "perdão dos pecados", como os professores de história costumam ensinar. A Igreja de Roma mantém que o perdão dos pecados é obtido pelo Batismo e pela confissão, graças ao sacrifício de Cristo na cruz. Tendo sido batizada e absolvida dos pecados mortais, a pessoa está livre da punição eterna, porque Cristo foi punido no lugar dela. Entretanto, como já abordamos na postagem anterior de maneira detalhada, cada pecado, mesmo os involuntários, que a Igreja de Roma chama de veniais, tem suas consequências ou penas temporais. Guarde bem a palavra "pena" no sentido de "consequência", porque essa palavra será usada muitas vezes.
É evidente que todo pecado, mesmo quando é perdoado, produz penas temporais, tais como adoecimento, divisões, inimizade, insônia, angústia, depressão e até indenização ou cadeia, quando o pecado, além de infringir a Lei de Deus, infringe também a lei dos homens. Ninguém há de negar as penas temporais que o pecado suscita. Com certeza, o sacerdote não pode livrar a pessoa dessas penas. Quanto a Deus, ele pode, mas geralmente não o faz, porque as penas temporais têm o bom propósito de nos tornar pessoas melhores.
Também existe a Cruz do cristão, com a qual ele mortifica a sua carne, enquanto peregrina por este mundo. O cristão se exercita na mortificação de sua carne e no crescimento espiritual através de muitas tribulações, que também podemos incluir na conta das chamadas penas temporais. 
Portanto, as penas temporais servem ao aperfeiçoamento do cristão. Ele cresce sob o estímulo delas. Abatido por muitas tribulações e culpa, o cristão aprende a amar a Deus mais que a si próprio e a confiar mais em Deus que nos homens. 
Sobre as penas temporais, encontramos excelentes escritos apostólicos. Por exemplo, São Paulo disse: "Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus" (2 Coríntios 7:1). Também: "Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas" (2 Coríntios 4:16-18). E o mais belo de todos, na minha opinião: "Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a igreja" (Colossenses 1:24). E eu poderia citar muitos e muitos outros exemplos riquíssimos de penas temporais para o aperfeiçoamento cristão. 
De fato, não há cristianismo sem Cruz. E a Cruz consiste em penas temporais.
Dr. Martinho Lutero, ao debater essa questão, disse algo que deve ser consensual entre os cristãos: "que a verdadeira contrição PROCURA E AMA as penas" (tese 40).
A questão central é que a Igreja de Roma considera que essas penas temporais perduram após a morte, de maneira que as almas dos que morrem na amizade de Deus continuam sendo aperfeiçoadas por essas penas temporais no purgatório. É então que as indulgências entram em cena.
As indulgências são reduções ou cancelamento das penas temporais do purgatório, obtidas por quem está vivo. A Igreja de Roma considera que determinadas obras, realizadas da maneira como ela especifica, auferem a quem as pratica indulgências e que essas indulgências podem ser transferidas a quem se encontra no purgatório, reduzindo e até cancelando suas penas temporais. Essa transferência de indulgência ocorreria devido à unidade da Igreja neste mundo, no purgatório e no Céu, como um único organismo. Então os méritos de Cristo, da virgem Maria e dos santos socorreriam as almas que se encontram no purgatório, aliviando suas penas temporais, podendo inclusive libertá-las desse estado. Quando alguém obtém uma indulgência, ele está tendo acesso a esses méritos, por intermediação da Igreja, podendo utilizá-los para si ou para outrem.
As indulgências são obtidas através de obras muito simples, decididas pela Igreja de Roma, tais como orações pelo papa, esmolas, jejuns, participação na Eucaristia, leitura do catecismo, peregrinações, leitura da Bíblia e confissão. São obras muito simples, onde a Igreja decide que, por meio delas, é possível acessar os méritos de Cristo, da virgem Maria e dos santos, usando-os para si mesmo ou auxiliando, por meio deles, quem está no purgatório, com o intuito de reduzir (ou mesmo abolir) suas penas temporais. 
As indulgências conferidas às obras podem ser parciais ou plenárias. As indulgências parciais aliviam as penas temporais. Quanto às plenárias, removem por completo as penas temporais, permitindo à alma deixar o purgatório e entrar no gozo do Céu. 
É permitida a aquisição de uma indulgência plenária por dia. Destarte, um bom católico romano pode livrar uma alma do purgatório por dia, desde que cumpra rigorosamente a obra que irá lhe conferir uma indulgência plenária. 
Obviamente, quem prescreve as obras que garantem indulgências e decide se essas indulgências serão parciais ou plenárias, novamente, é a própria Igreja de Roma, através de um uso ilegítimo das Chaves.
Com isso, a Igreja de Roma imagina um grande "tesouro de indulgências", que são os méritos de Cristo, da virgem Maria e de todos os santos reunidos, como uma espécie de poupança, que pode ser acessado mediante obras prescritas pela Igreja, para alívio ou libertação das almas do purgatório. Aqui se fala até de obras "supererogatórias" dos mártires, isto é, sobre o mérito grandioso de seu martírio, porque consideram que o martírio foi uma obra por demais excelente, indo além do que é exigido por Deus.
Uma exposição simples dessa doutrina já nos mostra porque Dr. Martinho Lutero, doutor em Bíblia, cura d'almas, que havia prometido ser fiel às Escrituras, não poderia se calar. A questão é por demais séria, porque ensina obras, méritos e põe em risco a verdadeira fé. Nessas horas, vejo que a Igreja de Roma é poupada pelo silêncio de doutrinas como essa. Ainda bem que pouquíssimos católicos romanos têm conhecimento disso ou levam isso a sério. Até rezam pelos mortos, mas sem saber o que estão fazendo, como devoção particular, o que é menos pior.
Bem, a primeira coisa é que não existem méritos dos santos. Todos os méritos dos santos, inclusive os da virgem Maria, são os méritos de Cristo. Nenhum cristão conquistou um mérito sequer neste mundo, por mais proba e piedosa que tenha sido a sua vida, ainda que tenha se doado a Deus em martírio. É Deus quem age através de seus santos. É ele quem deve ser honrado pelo que a Igreja faz. Desviar o louvor de Deus para a Igreja é idolatria. Jesus ensinou: "Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer" (Lucas 17.10). São Paulo disse: "Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebestes, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?" (1 Coríntios 4.7). Também: "Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Filipenses 2.13). Santo Agostinho de Hipona: "Meus bens são tuas obras e teus dons". Portanto, deve-se manter a suficiência dos méritos de Cristo em seus santos. Se somos recompensados, é por pura misericórdia de Deus, que desconsidera o pecado inerente a cada boa obra que realizamos EM CRISTO. Porque fora de Cristo não existe nenhuma boa obra perante Deus, somente pecado. Como ensinou S. Paulo: "TUDO o que não provém de fé é pecado" (Romanos 14.23).
Ademais, orar, comungar, confessar-se, ler a Bíblia são obras que nos são prescritas porque precisamos delas, não para obter algo em troca. Não é uma questão de negociação, mas de pura necessidade. Quem não pratica essas obras está em risco de perder sua fé, que é alimentada somente pelo Evangelho. Temos que dar Evangelho à nossa fé, para que ela não definhe e morra. 
A segunda coisa é que obras que deveriam nos trazer prazer e alívio, que deveriam ser praticadas espontaneamente, com o coração transbordante de graças, tornam-se disciplina. Tudo o que é bom torna-se cansativo e ruim quando é transformado em obrigação. Então orar se torna um fardo, bem como ler a Bíblia, confessar-se e comungar o corpo e sangue de Cristo. Devemos nos atentar ao salmista, por meio do qual Deus declara: "O que me oferece sacrifício de AÇÕES DE GRAÇAS, esse me glorificará" (Salmo 50.23). Davi também pede a Deus: "Restitui-me A ALEGRIA da salvação e sustenta-me com um ESPÍRITO VOLUNTÁRIO" (Salmo 51.12).
A terceira questão é até onde as penas temporais persistem. Todos nós sabemos que os pecados nos acarretam penas temporais. Deus, porém, em sua misericórdia, transforma essas penas temporais em verdadeiras bênçãos para os cristãos, de maneira que são aperfeiçoados por elas, tornando-se cada vez melhores, menos apegados a si mesmos e ao mundo, cada vez mais íntimos de Deus. Mas as penas tempo-rais terminam quando o tempo termina para nós, ou seja, quando morremos. Ninguém leva penas temporais para além-túmulo. Quando a morte vem, tornamo-nos livres da Lei e das penas temporais. Assim ensinou S. Paulo: "Porquanto quem morreu está justificado do pecado" (Romanos 6.7). Também: "Porventura, ignorais, irmãos (pois falo aos que conhecem a lei), que a lei tem domínio sobre o homem toda a sua vida? Ora, a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal" (Romanos 7.1-2). Apocalipse 14.13: "Então, ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que DESCANSEM das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham". Profeta Isaías: "A sepultura não te pode louvar, nem a morte glorificar-te; não esperam em tua fidelidade os que descem à cova. Os vivos, SOMENTE os vivos, esses te louvam" (Isaías 39.18-19). 
Enfim, a Igreja de Roma alega que a doutrina do purgatório e das indulgências devem ser mantidas porque são de grande consolo para a família enlutada. Mas não se deve consolar ninguém com mentira. O apóstolo S. Paulo nos ensina como é que se deve consolar uma família enlutada: "Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes como os demais, que não têm esperança. Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras" (1 Tessalonicenses 4.13-14, 18).
Para que recorrer à filosofia dos escolásticos e aos concílios papais, não ecumênicos, quando temos tão abundante e clara informação por parte dos apóstolos, todas elas muitíssimo confiáveis?
Quero deixar claro que este é o meu posicionamento como Igreja da Confissão de Augsburgo. Dr. Martinho Lutero, à época em que questionou vários problemas que havia na doutrina da penitência e, por isso mesmo, foi excomungado, não pensava dessa maneira. Por exemplo, ele acreditava na existência do purgatório, embora tenha lhe dado uma interpretação evangélica. Posteriormente, após sua excomunhão, abandonou de vez a ideia de um purgatório.
Por isso, na próxima (e última) postagem sobre as indulgências, somente Dr. Martinho Lutero irá expor sua opinião. Então veremos o quão sua excomunhão foi injusta. 



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

AS INDULGÊNCIAS - PARTE 1


Eu me lembro de minha adolescência, quando pela primeira vez ouvi falar de Dr. Martinho Lutero, de suas denúncias contra o comércio de indulgências, de sua excomunhão pelo papa e do cisma que se seguiu a isso. Eu não sabia o que eram indulgências. A professora de história nos ensinou que indulgências eram "perdão dos pecados" e que Roma estava vendendo o "perdão dos pecados".
Creio que muitos evangélicos e até mesmo católicos romanos não têm ideia do que sejam as indulgências. Na minha opinião, eles não estão perdendo nada. Mas como as indulgências são ainda ensinadas pela Igreja de Roma e como as críticas levantadas por Dr. Martinho Lutero contra elas foram a causa de sua excomunhão, acho importante refletir sobre esse tema, principalmente porque estamos no mês da Reforma luterana. 
Para entender as indulgências, é necessário antes entender a visão da Igreja de Roma daquilo que considera sacramento da penitência. A penitência, de acordo com sua doutrina, é constituída de contrição, confissão e satisfação. Contrição é a tristeza sincera por haver pecado. A confissão é quando a pessoa, triste por causa do pecado, relata ao sacerdote seu pecado, a fim de ser absolvida. A satisfação é a pena prescrita a quem se confessou e foi absolvido, consistindo de reparação do erro, orações, jejuns e obras de misericórdia. A finalidade da satisfação é fazer com que a pessoa, na medida do possível, faça a reparação do erro, reflita sobre seu erro e aprenda com ele.
A prática da satisfação pelo pecado também ocorre em igrejas protestantes. Por exemplo, há pastores protestantes que se recusam a casar na igreja moças grávidas e muitas comunidades mantêm o costume de privar fieis da eucaristia por determinado tempo, mesmo havendo confissão do erro, mesmo quando a pessoa declara o desejo de emendar-se. Então a satisfação existe até mesmo nas igrejas protestantes, com o intuito de averiguar a sinceridade do arrependimento. 
A Igreja de Roma também classifica os pecados em veniais e mortais. Os pecados veniais são cometidos involuntariamente, enquanto que os mortais são atos deliberados. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, todos os pecados mortais devem ser confessados, ou melhor, relatados um a um ao sacerdote, até mesmo aqueles pecados mais secretos, cometidos contra o nono e décimo mandamentos do Decálogo. Após minuciosa confissão, os pecados são absolvidos e cabe ao penitente fazer algum tipo de reparação ou aprender com seu erro, através da disciplina espiritual, que é a satisfação.
De acordo com a Igreja de Roma, as consequências do pecado (ou penas) são temporais e eternas. As consequências eternas do pecado, ou seja, a morte eterna no inferno, são desligadas pela absolvição do sacerdote. Quem pagou o preço desse desligamento foi Jesus, mediante seu sacrifício. Quanto às consequências temporais do pecado, estas não são desligadas pelo sacerdote e deverão ser sofridas pelo penitente, nesta vida e, muito provavelmente, no purgatório.
Purgatório é uma condição ("fogo purificador", nas palavras do Catecismo) em que as almas de quem morreu na amizade de Deus padecem as consequências temporais de seus pecados e são purificadas pelo sofrimento, até que se tornem perfeitas e possam entrar no gozo do Céu.
Tudo isso não é nenhum crime contra a razão humana. Muito pelo contrário, crime contra a razão é ensinar a justificação somente pela fé, sem necessidade de obras, tendo por base os méritos e a perfeita satisfação de Cristo por todos os pecados. Que os erros têm consequências temporais, isso é evidente. Quem erra sofre as consequências de seu erro. Nós, em Minas Gerais, dizemos que quando a cabeça não pensa, o corpo é que padece. 
A satisfação pelo pecado é, sem dúvida, uma maneira interessante de avaliar a veracidade do arrependimento e tem um propósito didático. Nós utilizamos o método da satisfação em nossos lares, ao disciplinar nossos filhos. Portanto, os Pais da Igreja, quando estabeleceram a satisfação, certamente tinham uma boa intenção.
Também é agradável à razão a ideia de purificar-se dos erros por iniciativa e esforço próprios. É o que espíritas, budistas, muçulmanos, hinduístas e todos os pagãos fazem, porque a ideia de justiça alheia que nos é imputada não é nem de longe razoável. Nossas leis evidenciam a racionalidade de punir quem erra, mesmo havendo sincero arrependimento. Se fé e razão podem ser conciliadas, não é ideia descabida pensar em um purgatório, onde a pessoa possa se purificar de seus pecados e ser reabilitada deles.
Entretanto, a doutrina católica romana sobre a penitência têm sérios problemas associados, que põem em perigo a verdadeira fé. Não é prudente fugir a essas questões. Em se tratando de um cura d'almas, como Dr. Martinho Lutero o foi, a necessidade de enfrentar essas questões assume uma dimensão muito maior.
Comecemos pela classificação que a Igreja de Roma faz dos pecados em veniais e mortais. São Paulo nos ensina com muita clareza que a única consequência do pecado é a morte, que começa agora, no tempo, e nunca termina. Quem peca começa a morrer e esse processo de morte é perpétuo. São Paulo não excetuou pecado algum ao declarar que "o salário do pecado é a MORTE" (Romanos 6.23). E quanto aos gentios, que pecavam sem saber que estavam pecando, ele declarou que "assim, pois, todos os que pecaram SEM LEI também SEM LEI perecerão" (Romanos 2.12). Pecado é coisa séria demais para ser considerado venial. Por cada pecado Cristo morreu. E não fosse sua morte vicária na cruz, todos nós estaríamos condenados para sempre, não só pelos ditos pecados mortais, porque todo pecado é, segundo S. Paulo, mortal. O chamado pecado venial só existe no contexto da fé, em que Deus graciosamente perdoa nossos pecados involuntários e cotidianos de maneira contínua. Portanto, nenhum pecado é venial segundo sua natureza, mas segundo a misericórdia divina aos que creem.
Sempre digo que quem subestima o pecado igualmente subestima a graça. Jesus disse: "Aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama" (Lucas 7.47). Portanto, quem reduz o pecado inevitavelmente irá reduzir a graça de Deus.
Passemos então para a primeira parte da penitência, que é a contrição. O Catecismo da Igreja Católica ensina que a contrição é a tristeza profunda ou "dor da alma" provocada pelo pecado. É necessário que haja essa tristeza premente para que o perdão ocorra. Isso é uma questão muito problemática porque não sabemos o quanto é necessário entristecer-nos para que de fato sejamos absolvidos do pecado. Para piorar, muitos pecados graves não nos suscitam tristeza, por mais que a queiramos, devido à nossa natureza pecaminosa. O Catecismo bem tenta amenizar esta situação ao falar em "predisposição" ao perdão. Daí fica a dúvida cruel: estou de fato triste pelo meu pecado e serei perdoado? Ou não serei perdoado ainda, por não estar triste o suficiente? Outra questão é a natureza dessa tristeza. A pessoa pode estar triste não por causa do pecado cometido, mas pelas consequências dele. Não foi o amor à Lei de Deus que provocou a tristeza, mas interesses pessoais. 
Vamos então à segunda parte, que é a confissão. Bem, a confissão privada é um costume excelente. Eu adoraria poder confessar meus pecados a um ministro da Palavra periodicamente, porque muitas vezes me sinto sobrecarregado de pecados e percebo em mim a necessidade de falar, desabafar, chorar e ser aconselhado. Acho linda a relação entre pastor e ovelha dentro da Igreja de Roma, no contexto da penitência.
De fato, os pecados devem ser confessados, para serem absolvidos. Jesus quis que cada um de nós ouvisse: "Perdoados lhe são os seus muitos pecados". Para isso, instituiu o ministério das chaves. É uma pena as igrejas protestantes (aqui não me refiro à igreja evangélica luterana) terem abandonado as chaves. Igualmente lamento o fim da confissão privada nas igrejas luteranas. Mas o problema que quero abordar aqui é a exigência da Igreja de Roma que a pessoa enumere seus pecados mortais, que os confesse um a um, ainda que sejam muito secretos. 
É impossível enumerar os pecados que cometemos, ainda mais quando a confissão é mensal ou anual. Isso enreda consciências, porque, a menos que se reduza o que é pecado enormemente, ninguém conseguirá enumerar seus pecados ao sacerdote. Nem o sacerdote terá tempo e paciência para ouvir. Quem aprende com S. Paulo o que é pecado, não conseguirá confessar todos os seus pecados um a um, ainda que fique dia e noite, semanas, meses e anos, a vida inteira no confessionário. Então a ordem de confessar pecado por pecado obriga a pessoa a reduzir o conceito de pecado, o que é péssimo e lesivo à verdadeira fé.
Com relação à terceira parte da penitência, que é a satisfação, ela foi instituída pelos Pais com a melhor das intenções. Mas aqui cabe avaliar o que se ganha e o que se perde com a prática da satisfação. Certamente quem repara seu erro e cumpre determinada obra é obrigado a refletir sobre seu pecado, o que é deveras salutar. Por outro lado, a satisfação pode se transformar em uma escolinha de boas obras e méritos. É muito fácil a uma alma fraca achar que está fazendo algo para merecer o perdão de Deus. Também o Catecismo não lhe facilita a vida, porque ele se refere à satisfação como maneira de "satisfazer" ou "expiar" os pecados. Então é necessário colocar em um prato da balança os perigos a que se expõe a ovelha quando lhe é ordenado satisfazer pelo seu erro e, no outro prato da balança, colocar os benefícios da satisfação. Isso precisa ser colocado na balança sim, principalmente porque a satisfação é tradição humana e, portanto, dispensável. 
Para finalizar este primeiro texto sobre a questão das indulgências, quero apresentar também os problemas envolvendo a ideia de consequências temporais do pecado nesta vida e no purgatório. Todo mundo que comete algum erro terá que padecer as consequências dele, ainda que seja perdoado. Todos sabemos muito bem disso. É então que pergunto por que se criou o purgatório? Eu digo "criar" com convicção, porque nada consta nos evangelhos e nos escritos apostólicos sobre sua existência. Também nunca houve consenso entre os cristãos quanto ao purgatório. Portanto, não é doutrina apostólica e católica, mas humana. Estou certo que o purgatório foi criado pela razão humana, como consequência lógica de uma teologia fundamentada em obras e méritos. 
Quando me ponho a meditar nas separações, angústia, perdas irreparáveis, julgamentos, prisões, carestia, calamidades, enfermidades e morte corporal, que são consequências temporais de nosso pecado, indago se há de fato a necessidade de um outro mundo para continuar padecendo a consequência temporal de nossos erros. Acaso não são suficientes as terríveis penas temporais que amargamos aqui? Igualmente, quando penso na cruz da renúncia, que todo cristão é obrigado a carregar, sofrendo todo o tipo de perseguição e vexame, por causa de sua fé, questiono se é necessário passar pelo purgatório para aprender o despojamento de si mesmo e o verdadeiro amor. Minha convicção é que não. A razão humana sugere muita coisa errada, porque se baseia no que vê. Também não tenho o testemunho da Escritura, nem a opinião consensual dos cristãos, porque a Igreja Ortodoxa Grega, que é de sucessão apostólica, nunca acreditou na existência do purgatório. Por outro lado, as Escrituras falam inúmeras vezes do aperfeiçoamento humano através de muitos sofrimentos neste mundo, através de muitas cruzes, que nos obrigam a amar a Deus mais e mais e a amar-nos cada vez menos. De fato, o único purgatório autenticado pela Escritura é a Cruz. É a Cruz que nos aperfeiçoa neste mundo, preparando-nos para o Céu. O quanto cada cristão deverá padecer neste mundo, cabe a Deus decidir. Todavia é certo que o cristão não padecerá além de suas forças (1 Coríntios 10.13).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.