sexta-feira, 23 de junho de 2017

ONDE SE ENCONTRA A MARIOLOGIA LUTERANA?

Nos últimos dias, surgiu grande polêmica em torno da figura do pastor Cláudio Duarte, relacionada ao que ele disse acerca de Maria: que ela não é mãe de Deus e que, com certeza, teve vida conjugal com José após o nascimento de Jesus. Tudo em tom de brincadeira, como é próprio desse pastor, mas dito em um púlpito, dentro de uma comunidade religiosa. Como era de se esperar, sua mensagem foi imediatamente repudiada por muitos católicos romanos.
Enquanto eu o ouvia, pensei comigo: Puxa, isso bem poderia estar saindo da boca de um pastor luterano. Sim, muitos pastores e leigos luteranos pensam exatamente como o pastor Cláudio. Então concluí: é necessário abordar sempre de novo a questão de Maria ou a mariologia.
Por outro lado, vez ou outra visualizo postagens de luteranos com invocações a Maria, que certamente não me deixam de provocar incômodo.
Então percebo que nós, luteranos, entrepostos entre romanos e protestantes no palco cristão ocidental, temos de assumir nossa postura mediana tradicional, não polarizando para nenhuma das direções, pois em ambos os polos há problemas sérios envolvendo a figura de Maria.
Uma mariologia problemática é aquela que diviniza Maria, que a coloca como advogada, intercessora, dispenseira de graças e de misericórdia. É muito problemática uma mariologia que atende à ideia de um Cristo que está irado conosco, que está indisposto a nos receber, devido ao nosso pecado, de forma que é necessário recorrer à intercessão de sua mãe. Também é muito problemática uma mariologia que torna Maria uma cooperadora da redenção humana (sinergia). É problemático e até pagão! Primeiro o homem se afunda em obras, depois passa a recorrer a quem tem obras e muito mérito para lidar com Deus em seu lugar. Dentro disso, um caminho diferente de Cristo é estabelecido e o mandamento: "E tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, isso farei" é desprezado. Portanto, uma mariologia que se opõe à Palavra de Deus.
Por outro lado, é problemática também a mariologia que procura vulgarizar a figura de Maria, tornando-a uma cristã qualquer. Essa mariologia afirma que Maria era pecadora, que a humanidade de Cristo não se formou a partir de sua humanidade, que teve uma vida conjugal normal com José após o nascimento de Jesus e que faleceu, foi sepultada, enfim, que virou terra e está aguardando a ressurreição.
Percebemos que não há respaldo escriturístico para nenhum dos dois polos. Muito pouco as Escrituras falam acerca de Maria e o que temos é insuficiente para tirar qualquer conclusão acerca de sua natureza, matrimônio e destino final. Maria, portanto, permanece um mistério impossível de ser desvendado nesta vida. Quase tudo será mera opinião, exceto três coisas, que para nós, cristãos, são DOGMAS: que Maria concebeu Jesus sem cooperação do homem, que Jesus é semente dela e que ela é verdadeira mãe de Deus.
A mariologia saudável deverá se restringir a esses três pontos. O que passar disso, é aceitável, contanto que permaneça como opinião pessoal e não contradiga as Escrituras.


De acordo com o relato bíblico, Maria concebeu Jesus por obra do Espírito Santo, sem participação de um homem. Algo que certamente pegou os judeus de surpresa, mas que foi anunciado ainda no Éden. 
Foi prometido a Eva que a semente da mulher haveria de esmagar a cabeça do demônio (Gênesis 3:15). De acordo com o entendimento dos hebreus, todo filho é semente do homem. Deus, porém, prometera a Eva uma semente de mulher, sendo esse o primeiro sinal de que a Salvação haveria de vir a partir de uma virgem.
O profeta Isaías, iluminado por essa Palavra, profetizou que uma virgem iria conceber e dar à luz um filho, que seria chamado pelo próprio nome de Deus (Isaías 7:14).
Isso foi questionado por Cerinto e outros gnósticos, que ensinavam ter sido a concepção de Jesus algo natural, decorrente da união de um homem com uma mulher. Naquela época, o problema era essencialmente cristológico, pois se duvidava da encarnação de Deus. Hoje em dia, essa mesma heresia está sendo defendida pelo liberalismo teológico, só que não pelo mesmo caminho dos gnósticos. Hoje a heresia é fruto de uma anterior vulgarização da figura de Maria. Primeiro Maria se tornou uma mulher comum, depois sua concepção deixou de ser milagrosa e tornou-se igualmente comum. Apesar de o liberalismo teológico descrer na encarnação de Deus, isso não é a fonte da heresia. Talvez seja, inclusive, a consequência.
Se Maria permaneceu virgem ou não após o nascimento de Jesus, sobre isso iremos falar mais adiante. 
Quanto a Lutero, ele com certeza acreditava na virgindade perpétua de Maria:

"Assim Elvídio, criatura estúpida, também quis que Maria haja tido filhos depois de Cristo, baseando-se nestas palavras do evangelista: 'E José não conheceu sua noiva Maria, até que ela deu à luz o seu primogênito'. Quis ele entender essas palavras como significando que, depois do primeiro filho, ela teve outros. Néscio grosseiro! Deu-lhe resposta acertada S. Jerônimo" (Vom Schem Hamphoras und vom Geschlecht Christi, 1543).

Jesus é verdadeira semente de Maria. Isso significa, no modo de falar do povo hebreu, que Jesus foi concebido e gerado a partir do corpo de Maria. Ele não foi colocado lá, criado lá, mas constituído lá. Isso para nós é dogma!
Alguns transformaram Maria em uma espécie de barriga de aluguel. Roubam dela a maternidade real. Embora a concepção tenha sido milagrosa, a formação da humanidade de Cristo não foi. Pelo contrário, a gestação de Maria foi uma gestação normal. A semente é de Maria, o corpo de Cristo se formou a partir do corpo de Maria, a substância de Cristo se formou a partir da substância de Maria. Negar isso é negar a semente da mulher, prometida a Eva. Negar isso é negar a encarnação do Verbo!
Sobre isso, Lutero afirma o seguinte:

"Igualmente, não é suficientemente claro que o anjo Gabriel é enviado à virgem Maria e diz: 'Eis que conceberás no teu corpo e darás à luz um filho'? Que poderia ser mais claro e evidente? Quem não sabe o que significa conceber e levar um filho no ventre ou [carregar um filho] fisicamente e dar à luz? Mas houve e há pessoas (como o bando dos anabatistas em Münster atualmente) que negam que esteja escrito que Cristo é o filho natural da Virgem, nascido da carne e do sangue dela. Eles querem convencer as pessoas a crer que expressões como 'conceber' e 'dar à luz' não equivalem a ser verdadeiramente mãe e que a criança ou filho não é uma criança natural, mas um abobado ou um monstrengo" (Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e capítulo 16 de S. João, pregado e explicado).

Posto isso, entramos numa questão séria. Está escrito no Salmo 51 que "eu nasci na iniquidade, e em pecado (de semente pecaminosa) me concebeu minha mãe". Com isso, defendemos que a semente do ser humano está maculada pelo pecado original. Sabemos que Cristo foi concebido sem pecado. Então devemos perguntar: como era a semente de Maria? Era, porventura, pecaminosa? É evidente que não. Não sendo pecaminosa, concluímos que era isenta de pecado.
Se a semente de Maria era isenta de pecado, então ela toda era sem pecado. De fato, é inverossímil que alguém esteja livre do pecado original em apenas uma parte do corpo. O pecado original não é uma doença que acomete o corpo, mas uma condição existencial e até metafísica. 
Quanto ao momento em que Maria é liberta do pecado original, as opiniões divergem. Alguns creem que Maria foi concebida sem pecado original.Outros afirmam que Maria foi tornada pura imediatamente antes de conceber, ao receber o anúncio do anjo. Por fim, muitos negam o pecado original e, por isso, não hesitam em dizer que Maria era uma mulher comum. A propósito, estes são bons espécimes de pelagianos.
Lutero, inicialmente, era da opinião romana tradicional que Maria foi concebida sem o pecado original:

"Quem duvida que Deus pode conceder a alguém tanta graça que ele cumpre [os mandamentos] plenamente, como pensamos em relação à Beata Virgem, ainda que não o faça a todos?" (A refutação do parecer de Látomo, 1521).

Depois, mudou de opinião e afirmou aquilo que os cristãos orientais sustentam: que a concepção de Jesus a purificou de todo o pecado.

"Toda pessoa que não é Deus em pessoa, como Cristo, tem concupiscência; mas o homem Cristo não a tem, porque é Deus em pessoa, e na concepção toda a carne e sangue de Maria foram purificados, de maneira que não restou nenhum pecado" (Debate sobre a Divindade e a humanidade de Cristo, 1540).

Considerando que Maria foi purificada de todo o pecado, torna-se inevitável que ela tenha permanecido virgem, visto que a carne santa de Maria não poderia se misturar à carne pecaminosa de José. Como uma mulher santa, tão santa quanto os anjos, haveria de ter relações carnais com seu marido pecador? Vê-se, então, que a questão não é tão simples e que aqui devemos de novo respeitar os Pais, como verdadeiros católicos que somos.
Qual foi, então, a situação de José? Porventura ficou ardendo de desejos por sua esposa, sem poder possui-la? Por acaso Maria o expôs ao pecado?
Um texto me chama a atenção, na famosa Legenda Áurea, da qual Lutero bebeu e que tantas vezes cita em seus textos e sermões:
 
"Daí os judeus dizerem que, muito embora Maria tenha sido de extrema beleza, nunca despertou desejos concupiscentes em ninguém. A razão disso é que a virtude da sua castidade penetrava em todos que a viam e repelia neles toda concupiscência. Ela é comparada ao cedro, cujo cheiro faz as serpentes morrerem, da mesma forma que a santidade irradiada por ela matava a serpente dos movimentos da carne. Ela também é comparada à mirra, que mata os vermes, da mesma forma que a santidade dela destrói toda concupiscência carnal. Ela possuía essa qualidade mais do que outras pessoas que também foram santificadas no ventre materno ou que permaneceram virgens, mas cuja santidade e castidade não se transmitiam aos outros, nem extinguia neles os movimentos da carne, ao passo que a força da castidade da Virgem penetrava até o fundo do coração dos impudicos, tornando-os imediatamente castos em relação a ela" (Legenda Áurea, Purificação da bem-aventurada Virgem Maria).
 
Portanto, a convivência com Maria santificou José, tornando-o um homem castíssimo. Não pela renúncia à libido, mas pela libertação daquilo que é animal, terreno e precário.
Por fim, Maria é verdadeira mãe de Deus. Negar isso é decair da fé cristã. 



O bispo Nestório viveu no século V e, em oposição ao arianismo, afirmava que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Quer dizer, é tão homem quanto um de nós, tão Deus quanto o Pai. Até aqui nenhum problema. A questão é que Nestório começou a negar isso no momento em que negou ser Maria a mãe de Deus. Para ele, Maria é mãe da humanidade de Cristo, não de sua Divindade. Com isso, ele dividiu Cristo em duas pessoas: uma puramente humana, que nasceu de Maria, e outra puramente divina, gerada do Pai. Dada a relevância da questão, isso ocasionou um concílio.
É importante destacar que, ao afirmar que Maria é mãe de Deus, a Igreja não está divinizando Maria. O que se pretende com essa afirmação é manter que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus em uma única pessoa indivisa, em uma única consciência, em uma única hipóstase. Em Cristo, Deus e homem se encontram, fundem-se, compartilham seus atributos, tornam-se um só ser. Por causa dessa união pessoal da natureza humana com a divina, pode-se afirmar que a humanidade de Cristo é onipotente (S. Mateus 28:18) e que a Divindade de Cristo verdadeiramente nasceu de Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificada e morta. O que não é possível à humanidade de Cristo, a Divindade o faz. O que não é possível à Divindade de Cristo, a humanidade o faz. Mas nunca fora da pessoa de Cristo! Onde Deus está, ali Cristo está. Onde Cristo está, certamente estão sua humanidade e Divindade, pois não existe Cristo que não seja verdadeiro homem e verdadeiro Deus. O Cristo que não for homem e Deus é, com certeza, um falso cristo.
O problema maior decorrente da divisão de Cristo em duas pessoas é que Deus deixa de participar da redenção humana. Tudo o que Cristo fez para nossa salvação não pode ser feito pela Divindade, pois nascer, cumprir a Lei, morrer e ressuscitar não são coisas possíveis a Deus, a não ser que ele se encarne. Então a heresia de Nestório coloca um homem nascido de Maria como redentor. Qual seria o papel de Deus na redenção? Afinal, ele não pode nascer, sofrer, morrer e ressuscitar. E como pode um homem vencer a Lei, a morte e o inferno? Com isso, Nestório nega a encarnação de Deus e a dupla natureza de Cristo. Porque, se levarmos a sério o que Nestório diz, há um Cristo coeterno com o Pai e o Espírito Santo, impassível e incorpóreo, absolutamente transcendente, e um homem Cristo, que seria incapaz de vencer a Lei, a morte e o inferno. A conclusão da heresia de Nestório é que o Verbo não se fez carne, mas permaneceu igual ao que sempre foi junto ao Pai e ao Espírito Santo. Igualmente se pode concluir que a libertação da morte, da Lei e do inferno não foi possível, já que um homem não pode nada contra tais inimigos. Isso é uma das muitas repaginações do gnosticismo dos primeiros dois séculos, que distinguia o Cristo eterno, que está no seio do Pleroma, do Cristo temporal, que nasceu de Maria.
Lamento que o nestorianismo esteja tão presente no protestantismo atual, a ponto de qualquer protestante considerar idolatria a afirmação de que Maria é mãe de Deus. Com isso, a encarnação do Verbo está sendo negada. Depois fica fácil dizer que a Eucaristia é simbólica e que o Batismo não justifica, pois o Verbo não se fez carne, mas continua puramente divino, tão incorpóreo quanto o Pai e o Espírito Santo, tão incognoscível quanto o Pai e o Espírito Santo. Esse foi o erro principal no discurso do pastor Cláudio, mas que poderia estar na boca de qualquer pastor luterano ou na boca de um leigo.
Quero concluir com Lutero:

"Assim também se deve dizer que Maria é a mãe verdadeira e natural da criança que se chama Jesus Cristo, e que ela é a verdadeira mãe de Deus, progenitora de Deus e tudo o que se pode dizer da mãe de uma criança como amamentar, lavar, alimentar, dar que beber, de sorte que Maria amamenta Deus, embala a Deus, faz mingaus e sopas para Deus. Pois Deus e homem é uma pessoa, um Cristo, um filho, um Jesus, não duas pessoas, dois Cristos, dois filhos, dois Jesus, do mesmo modo como também teu filho não é dois filhos, dois Joões, dois sapateiros, ainda que tenha duas naturezas, corpo e alma, corpo de ti, alma de Deus somente" (Dos concílios e da Igreja, 1539).

Autoria: Carlos Leão.
Imagens extraídas da internet.






quinta-feira, 15 de junho de 2017

O LUGAR DA MÍSTICA NA IGREJA LUTERANA - PARTE 3

Autor: Rodrigo Moreira de Almeida

No último post dessa série, vamos examinar outra vertente da mística luterana, que se diferencia da vertente devocional por seu caráter especulativo. Aparentemente, afirmar a existência de uma mística especulativa no Luteranismo contradiz o que afirmamos no post anterior, quando tratamos da impossibilidade teórica desse tipo de espiritualidade dentro da Igreja Luterana, por conta das rigorosas práticas ascéticas que ela exige. Entretanto, é importante destacar que essa vertente possui uma característica importante, que a diferencia da espiritualidade especulativa de um Mestre Eckhart, por exemplo: ao invés de praticar o Abgeschiedenheit, o voltar-se para dentro de si pelo desprendimento em relação às coisas exteriores, a mística especulativa luterana busca reconciliar natureza e espiritualidade, seguindo aí algumas indicações do próprio cristianismo germânico medieval [1]. Não há uma negação do exterior para a afirmação do Divino no "fundo da alma" do homem: pelo contrário, há uma dialética entre interioridade e exterioridade, pois tanto a alma humana quanto a Natureza têm ambas seu fundamento em Deus. É o que encontramos, por exemplo, nesse trecho de Jacob Boehme:

"Mas, quando, em meu determinado zelo, eu combatia com tanta violência contra Deus e contra as portas infernais, como se eu sempre tivesse novas forças de reserva, decidido a arriscar nisso a minha vida (o que certamente estava acima de minha força, sem a assistência do Espírito de Deus), então subitamente, depois de algumas grandes investidas, meu espírito irrompeu através das portas infernais até à geração mais interior da Divindade e ali foi abraçado pelo amor, como um noivo abraça sua amada noiva [...]. Nessa Luz, meu espírito subitamente viu através de todas as coisas, e em todas as criaturas, plantas e ervas, e através delas, conheceu o que Deus é e como Ele é, e qual é Sua vontade" [2].

O primeiro grande representante da mística especulativa luterana foi Valentin Weigel (1533-1588), pastor em Zschopau, Saxônia. Em contraste com a corrente examinada no post anterior, Weigel vê a necessidade de uma cosmologia que justifique a necessidade do novo nascimento. Assim, ele aplicará as intuições de Lutero a respeito das três partes do homem à organização do próprio cosmos:

"[Para Weigel] o mundo se apresentará composto de três 'mundos': primeiro, o universo material, o universo 'exterior', o dos corpos visíveis e tangíveis, no qual vivemos segundo nossos sentidos exteriores; segundo, o universo astral, dos corpos-forças invisíveis e, terceiro, o mundo de Deus. Estes três mundos procedem de Deus e são 'em Deus', como em sua fonte e princípio, e Deus está nesses mundos por ser a essência última e o ser dos seres que os povoam e os compõem" [3].

Assim como, segundo Lutero, o homem é corpo, alma e espírito, para Weigel o cosmos é composto de três "mundos": material, astral e espiritual, este último equivalente ao que os escolásticos denominavam "eviternidade", a morada dos anjos [4]. Ontologicamente, o "espírito", "a mais alta, mais profunda e mais nobre parte do homem", segundo Lutero, está localizado no mundo espiritual, que não é tanto lugar, mas um estado, no qual a alma se encontra unida a Deus, assim como os anjos no Paraíso. Nesse caso, a união com Deus é vivenciada como uma experiência interior, já que o homem, sendo o "rei da criação", possui dentro de si esses três "mundos": 

"[...] o homem é, ao mesmo tempo, microcosmos e microtheos, imagem, similitude e expressão tanto de Deus como do mundo, o que lhe assegura um posto absolutamente central no universo. Basta, ademais, ler atentamente a Bíblia para convencer-se disso. Com efeito, não sabemos que Deus criou o mundo do nada, enquanto que formou o homem 'do mundo' e lhe insuflou seu próprio espírito? Formou-o do mundo e, portanto, [ele] é o verdadeiro representante do mundo, é o pequeno mundo [microcosmos], o mundo em resumo, e não há nada na natureza que não esteja no homem. É um 'extrato' do mundo. O que explica a possibilidade do conhecimento: ao conhecer o mundo, o homem não faz nada mais do que conhecer a si mesmo [...]" [5].

Valentin Weigel


Ao conhecer o mundo, o homem conhece a si mesmo, e ao conhecer a si mesmo (isto é, conhecendo-se "em espírito", na parte mais profunda de seu ser), o homem conhece a Deus. Entretanto, esse conhecimento "em espírito" só é possível para o homem regenerado, isto é, para o homem que se "esvaziou" de si mesmo para ser plenificado pelo Espírito Divino. Assim como os três "mundos" estão "em Deus", na medida em que dependem dele, como em sua fonte ou princípio, o homem está "em Deus", na medida em que O reconhece como a raiz de sua existência, "abandonando-se" a ele [6]. De fato, Weigel insiste que o conhecimento sobrenatural é puramente passivo e que quem opera na alma regenerada é o próprio Deus, o que equivale à "passividade" da alma durante o "noivado místico" e sua absoluta dependência de Cristo para realizar qualquer boa obra, dois aspectos importantes da mística devocional luterana, como já foi apontado no post anterior.
A obra de Weigel (toda ela divulgada postumamente) abriu caminho para o trabalho do maior místico especulativo da tradição luterana: Jacob Boehme (1575-1624). Apresentar um resumo do sistema especulativo de Boehme certamente ultrapassaria o escopo deste post. Por isso, exporemos aqui apenas alguns pontos básicos desse sistema.

Jacob Boehme
Seguindo à tradição mística alemã de Mestre Eckhart, que faz distinção entre Gottheit (Deidade) e Gott (Deus), Boehme distingue no Divino uma dimensão apofática, denominada por ele de Ungrund (o "Sem-Fundo"). Este "Sem-Fundo", equivalente à "Deidade" de Mestre Eckhart, é o Divino absolutamente incognoscível, do qual tudo, inclusive o próprio Deus, é uma manifestação [7]. A primeira manifestação do Ungrund é o que Boehme denomina o "primeiro princípio" ou "fogo negro", que gera o segundo princípio, denominado por ele "luz". Sendo a "luz" gerada pelo "fogo negro", não é totalmente oposta a ele, mas é como a manifestação de sua verdadeira natureza [8]. Embora aparentemente estranhas à teologia luterana, essas intuições nada mais são do que uma transposição metafísica de algumas ideias teológicas de Lutero, para quem Deus é não só Amor e Misericórdia, mas também Ira e Rigor. Essas qualidades divinas se expressam na distinção básica, presente na teologia luterana, entre Lei e Evangelho, que não são princípios opostos, mas complementares: assim como a manifestação do segundo princípio revela o "tesouro escondido" por trás das trevas do primeiro princípio, o Evangelho revela a verdadeira essência da Lei: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
Essas duas qualidades inerentes ao Ser Divino estavam em harmonia, mas a queda de Lúcifer transformou-as em potências que se opõem. O primeiro princípio, que antes estava dialeticamente incorporado no Ser Divino, agora se encarna como "Inimigo" de Deus [9]. O resultado é a manifestação do terceiro princípio, o nosso mundo, no qual os dois primeiros princípios se apresentam não mais como harmônicos, mas como antagônicos.
Nessa ilustração de Dyonisius Andreas Freher, é mostrada a criação do mundo segundo Jacob Boehme: o círculo da direita, representando o primeiro princípio, e o círculo da esquerda, representando o segundo princípio, ambos concorrem para a formação do terceiro princípio, o nosso mundo, representado pelo círculo da parte inferior, tendo o sol no centro e a terra abaixo.

Para voltar à harmonia original, é preciso passar pelo mesmo processo que gerou os dois princípios do Ser Divino. No plano humano, isso se manifesta na complementaridade entre Lei e Evangelho no processo salvífico: o rigor da Lei atua de modo puramente negativo, fazendo o homem desesperar-se totalmente de si mesmo. Essa "descida aos infernos", no entanto, deve ser complementada com uma "ascensão aos céus", que só é possível pela atuação da Graça, por meio do Evangelho, pois, com ela, o homem torna-se capaz de agradar positivamente a Deus:

"A Lei pode fazer a pessoa anular-se / autonegar-se diante dos seus pecados, mas esse esvaziamento não salva. O salvo não apenas deixa de desagradar a Deus (esvaziamento), mas deve agradá-lo positivamente (recebimento da fé). Em outras palavras, o processo de esvaziamento não pode ser confundido com salvação, pois vem da Lei, enquanto que a fé outorgada ao esvaziado vem da Graça" [10].

Entretanto, como o ponto de vista de Boehme é cosmológico, toda a criação deve passar pelo mesmo processo das trevas à luz. O que está em jogo não é simplesmente a salvação individual, mas a apocatástase, a renovação de todas as coisas. Nesse processo, é fundamental conhecer a natureza e o mundo corpóreo, pois, como dirá mais tarde F. C. Oetinger, um discípulo de Boehme dentro da comunhão luterana, "Leiblichkeit ist das Ende der Werke Gottes" ("A corporalidade é a finalidade das obras de Deus") [11].

"A doutrina de Boehme constitui uma Naturphilosophie [filosofia da natureza] do tipo mais profundo, um fato que foi reconhecido não apenas por filósofos, começando com Hegel, mas também, ocasionalmente, por membros da comunidade científica. Sabe-se que o próprio Newton foi influenciado pelo teósofo alemão, e mesmo em nossos dias há o exemplo de Basarab Nicolescu, um cientista que voltou aos ensinamentos de Boehme para insights incidindo sobre a física de partículas" [12].

Portanto, a mística especulativa de matriz luterana busca uma integração entre homem e natureza, ausente na mística especulativa católica romana, devido à qualidade mais ascética desta última. Como vimos no primeiro post desta série, o luteranismo, seguindo aí algumas tendências do próprio cristianismo católico medieval, busca uma forma de espiritualidade "que integrasse o natural no sobrenatural, isto é, uma perspectiva tendendo em direção a Deus sem ser contra a Natureza, uma piedade que não é monástica, mas acessível a todo homem de boa vontade em meio às preocupações terrenas" [13]. É essa perspectiva que encontramos na mística de Weigel e Boehme.

NOTAS:

[1] Em conversa com Mateus Soares Azevedo, S. H. Nasr explica que o Cristianismo medieval celta e germânico tinha uma apreciação mais positiva da natureza do que o cristianismo latino: "A civilização medieval latina tinha os 'pontos cegos' em relação à natureza, em razão da perspectiva jurídica do mundo romano, que de fato incorporou o Cristianismo, ao passo que as civilizações do norte da Europa, a céltica e a germânica, tinham uma abertura muito maior para o entendimento da Natureza" (Mateus Soares Azevedo, Iniciação ao Islã e ao sufismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 117). Exemplos dessa devoção do cristianismo germânico medieval pela Natureza podem ser encontrados, segundo Azevedo, nos escritos de Hildegarda de Bingen e Alberto Magno.

[2] Jacob Boehme. A aurora nascente, 19, 11 e 13. 

[3] Alexandre Koyré. Misticos, espirituales y alquimistas del siglo XVI alemán, Madrid: Akal, 1981, p. 155. Tradução minha.

[4] Segundo Tomás de Aquino, a "eviternidade" é um meio-termo entre a eternidade e o tempo, sendo o modo próprio de existência dos seres angélicos (Suma teológica, I, q10, ad5). 

[5] Alexandre Koyré. Misticos, espirituales y alquimistas del siglo XVI alemán, p. 165-166. Tradução minha.

[6] Para falar desse "abandono", Weigel usa o mesmo termo da tradição especulativa de Mestre Eckhart: Gelassenheit

[7] Essa distinção equivale parcialmente àquela presente na teologia ortodoxa entre a Essência Divina, totalmente transcedente e incognoscível, e as Energias Divinas, pelas quais Deus atua no mundo e se torna cognoscível ao homem. De fato, a distinção eckhartiana entre a Deidade (Gottheit) e Deus (Gott) tem como base a afirmação da atividade do segundo e da ausência de atividade do primeiro: "Deus trabalha, a Deidade não trabalha: não há nada para ela fazer, não há nenhuma atividade nela. Ela nunca considerou qualquer trabalho. Deus e a Deidade se distinguem no que diz respeito àquilo que opera e àquilo que não opera" (Sermão 56).

[8]Boehme expressa essa geração como um "processo", mas apenas para fins didáticos: "Esses engendramentos não têm início algum, mas se engendraram assim desde toda a eternidade [...]. Contudo, tenho de colocá-los um depois do outro, segundo a maneira e a linguagem criatural, do contrário não poderias compreendê-lo [...]" (Aurora nascente, 23, 17-18).

[9] Podemos encontrar uma representação simbólica dessa transformação na narrativa de Gênesis: no primeiro dia, Deus cria a Luz e, com ela, seu oposto dialético, as Trevas. No entanto, a sequência da narrativa mostra que as Trevas deixam de ser o complemento necessário da Luz para se personificarem na figura da Serpente, adversária de Deus e dos homens.

[10] Franklin Ferreira. Sobre o arminianismo, calvinismo e o uso da história do pensamento cristão. Nota disponível em: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=467

[11] Segundo Boehme, tanto o primeiro quanto o segundo princípio se manifestam através de três qualidades ou forças, totalizando seis qualidades mais uma, que representa a passagem do primeiro para o segundo princípio. A última qualidade a se manifestar, no segundo princípio, é justamente a tangibilidade ou corporalidade.

[12] Wolfgang Smith. Christian gnosis: from Saint Paul to Meister Eckhart. San Rafael: Sophia Perennis, 2008, p.127.

[13] Frithjof Schuon. The question of protestantism. Disponível em: http://www.worldwisdom.com/public/viewpdf/default.aspx?article-title=The_Question_of_Protestantism_by_Frithjof_Schuon.pdf. Tradução minha.

Trata-se de uma trilogia sobre o misticismo alemão. Se você se interessa pelo assunto:
Primeiro texto: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html 
Segundo texto: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/11/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html
 
As imagens foram extraídas da internet.













sábado, 10 de junho de 2017

RELAÇÃO ENTRE O ESPÍRITO SANTO E A PALAVRA NA ECONOMIA DIVINA

"No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz" (Gênesis 1:1-3).


No texto que narra a criação de todas as coisas, a palavra Deus não está no singular (Adonai), mas no plural (Elohim). É o primeiro indício nas Escrituras da pluralidade que há em Deus. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Elohim poderia ser traduzido por Deuses, mas as Escrituras deixam muito claro que há um só Deus. Portanto, a palavra Elohim denota a pluralidade que há nesse único Deus.
Embora haja um só Deus, uma só essência ou substância divina, a Igreja ensina que nesse Deus ou nessa substância divina, que é única e indivisível, há três Pessoas. Portanto, Deus é um conselho de três pessoas. 
Como todos os povos vieram de Adão, o conhecimento perfeito de Adão acerca dessa pluralidade foi perdido por seus descendentes. Por causa disso, creio eu, surgiu o politeísmo. O pecado original retirou do homem o conhecimento perfeito acerca de Deus. Por causa disso, o homem caído, não compreendendo mais essa pluralidade que há em Deus, dividiu a Divindade única em vários deuses. Coube a Cristo e à Igreja restaurar esse conhecimento perdido, embora esteja amplamente revelado nas Escrituras do Antigo Testamento, sobretudo nesse texto que narra a criação.
Esse Deus plural, Elohim, destaca reiteradas vezes sua unidade, mas não deixa de ser plural, de ser um conselho ou de ser Elohim. Revela seu nome a Moisés, diz que é o único Deus, o único Senhor, que fora dele não há Deus, mas não deixa de ser Elohim. Portanto, quando Israel invocava YAHWEH, invocava esse Deus plural, esse Elohim, o mesmo Deus criador. YAHWEH é, portanto, a revelação mais grandiosa desse Deus Elohim. É um equívoco atribuir esse nome a Deus Pai isoladamente, como se o Filho e o Espírito Santo não pudessem compartilhar dele.



Os santos Pais deram a esse mistério o nome de Trindade. Nessa Trindade há um só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Como ocorre numa família ou em qualquer conselho, há uma economia interna, em que cada membro desempenha sua função. Não sabemos como isso acontece no seio de Deus, na sua intimidade, pois é algo inefável, que somente Deus pode compreender. A Palavra de Deus, porém, apresenta-nos essa economia segundo a nossa possibilidade, para que nela meditemos respeitosamente e nela creiamos. Como iremos falar sobre algo misterioso, rogo a Deus que perdoe a fraqueza de nossa carne e que leve em conta a nossa fé.
O texto da criação nos mostra que o Deus Elohim criou os céus e a terra, tudo o que existe. Deus fala, Deus é a Palavra e Deus paira sobre a face do abismo. O Deus que fala é diferente da Palavra que dele sai. O Espírito Santo não é o que fala, nem é a Palavra, mas aquele que paira sobre o abismo. É importante que se destaque que embora o que fala, a Palavra e o Espírito Santo sejam pessoas distintas, são um único Deus, uma só natureza divina. Ainda assim não podemos concluir que são três Deuses idênticos, muito menos que cada pessoa seja uma fração desse único Deus. Portanto, a Trindade é o mistério dos mistérios. Devemos aceitar sem entender, simplesmente porque a Palavra o diz.
A Palavra é gerada do Pai e atua na criação pelo poder do Espírito Santo. O Espírito Santo é aquele que paira sobre o abismo, que está junto e unido à criação, correspondendo à eficácia da Palavra, ao seu poder fora de Deus.
Imaginemos uma chama. Sabemos que ela é fogo por causa da luz e do calor, embora a luz e o calor não sejam propriamente o fogo, mas seu efeito ou poder. Assim devemos imaginar o Espírito Santo no ato criador de Deus e também na Divina Providência: o Espírito Santo é o poder de Deus intimamente unido à sua Palavra. Assim como a luz e o calor são o poder e a eficácia do fogo, mas não são o fogo, o Espírito Santo é o poder e a eficácia da Palavra, embora não seja a Palavra. 
Por outro lado, se o fogo é subtraído de seu poder de iluminar e aquecer, jamais o perceberemos. Nossa razão compreende o fogo a partir de seus efeitos. Assim também é a eterna Palavra gerada de Deus. Nós não a perceberíamos se não fosse o seu poder, que é o Espírito Santo, mais unido a ela que a luz e o calor ao fogo. 
Em S. Lucas 4:16-21, Cristo levanta o testemunho do profeta Isaías acerca de si mesmo: "O Espírito do SENHOR Deus (YAHWEH adonai)está sobre mim, porque o SENHOR (YAHWEH) me ungiu para pregar as boas novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados" (Isaías 61:1). Cristo é a eterna Palavra de Deus que se encarnou. Seu poder ou eficácia é o Espírito Santo que o ungiu. Então, pelo poder do Espírito Santo ou revestida dele, é que a Palavra, que é Cristo, opera grandes milagres, vence o pecado e a morte, e devolve a vida à criação.
Se o Espírito Santo é Deus pairando sobre o abismo do cosmos, hoje ele é Deus pairando sobre o abismo do pecado, reconstruindo tudo aquilo que o pecado destruiu. Mas ele não o faz sem a Palavra ou independentemente dela, mas unido a ela como o calor e a claridade estão unidos ao fogo.
Podemos usar essa reflexão sobre a economia divina para criticar aqueles que imaginam o Espírito Santo agindo fora da Palavra, ou sem a Palavra. Isso não existe! Deus Espírito Santo está unido à Palavra como seu poder ou eficácia junto às coisas criadas. Assim devemos crer nele, conforme o que nos foi revelado. Onde não está a Palavra de Deus, é impossível que o Espírito Santo esteja ali, assim como é impossível haver luz e calor sem o fogo. Por outro lado, onde a Palavra de Deus está, sua eficácia junto à criação provém de Deus Espírito Santo, assim como a luz e o calor provêm do fogo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.