domingo, 31 de julho de 2016

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 3

"No tocante à Ceia do Senhor, elas (isto é, nossas igrejas) ensinam que, com o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo são oferecidos aos que comem na Ceia do Senhor" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1540). 


A modificação do texto original da Confissão de Augsburgo foi feita pelo teólogo humanista Felipe Melanchton (1497-1560), amigo íntimo de Lutero. Ela permite que um calvinista, um luterano e quem sabe até um romano cheguem a um acordo visível, embora cada qual pense bem diferente do outro. Melanchton nunca concordou com o pensamento de Lutero acerca da Eucaristia e, ao conhecer Calvino, encontrou nele a expressão mais próxima de sua opinião pessoal. Não querendo opor-se a Lutero, alterou o texto da Confissão de maneira a permitir que luteranos e calvinistas confessassem juntos a mesma coisa, embora pensando absolutamente diferente. Foi assim que surgiu o criptocalvinismo, ou seja, o calvinismo oculto. 
Não gostaria que calvinistas que porventura me leem, ficassem ofendidos com minha honesta interpretação da visão calvinista acerca da Eucaristia. Eu aqui estou tratando de um problema doutrinário e histórico da Igreja Luterana, que é o criptocalvinismo. É provável que haja problema do "criptoluteranismo" dentro do calvinismo também. Aconselho-os a serem vigilantes quanto a isso. Cada qual deve defender o que é seu.
Eu mesmo fui calvinista e, sem saber, por muitos anos fui um "criptoluterano", pois fixava meus olhos nos elementos eucarísticos, adorava e orava ao Cristo presente "espiritualmente" NOS elementos. Quando me mudei para São Paulo, fiquei muito escandalizado diante do costume local de se comungar sentado. Portanto, embora o risco de um "criptoluteranismo" seja bem menor que o do criptocalvinismo, porque a razão exerce um fascínio muito grande sobre nós, é possível que haja "criptoluteranos" dentro das igrejas calvinistas também.
Como declarei na segunda parte desta série, em que não me posiciono contra o calvinismo, mas contra o criptocalvinismo, a liturgia é a maneira mais eficaz de colocar em evidência o calvinismo oculto.
Embora luteranos e calvinistas possam declarar a mesma fé, suas opiniões divergentes acerca da Eucaristia irão se expressar de alguma forma. A expressão mais clara ocorre na liturgia eucarística e no que vem depois, cessado o rito.
Um calvinista coerente não aceitaria elevar o pão e o cálice a fim de serem adorados pela comunidade, pois afinal não crê que Cristo esteja presente com, em e sob o pão e o vinho. Para ele, o homem Jesus Cristo está em um lugar chamado Céu, de maneira local ou circunscrita, ocupando espaço, deslocando-se de lá para cá. Para ele, elevar o pão pode conduzir o povo à artolatria ou idolatria do pão, exatamente porque acredita que pão simples continua sendo pão simples. Não crê que o pão se transforma em pão-corpo, como afirmou Lutero, na Confissão da Ceia de Cristo.
Um calvinista restringe a participação da substância do corpo e do sangue de Cristo à recepção oral dos elementos e à fé do comungante. Durante toda a Ceia, pão é simples pão e vinho é simples vinho, meros sinais de uma graça secreta, operada pelo Espírito Santo. Para um calvinista, não é o homem Jesus quem celebra a Eucaristia e também não é a Palavra que opera o sacramento, mas o rito é celebrado por um ministro e é a fé do comungante que opera o sacramento. Logo, não é de se esperar que se ajoelhem diante do altar, quando são proferidas as palavras da Instituição. Também não se deve esperar que um calvinista trate respeitosamente os elementos após a celebração eucarística, pois não passam de simples pão e vinho. Soaria supersticioso a um calvinista consumir todos os elementos no altar.
Então me volto à Igreja Luterana e detecto a ideia entusiástica de que a união sacramental se restringe ao consumo dos elementos. Antes e após o consumo, temos sobre o altar simples pão e simples vinho. Não se eleva a hóstia, temendo a artolatria. O temor à artolatria é tão grande que muitos ministros colocam a hóstia diretamente na boca do comungante, não para evitar abusos, como fazem os romanos, mas para evitar a artolatria. Ninguém se ajoelha durante as palavras da Instituição, pois perdemos a noção de que a Palavra opera o sacramento, que depois é apropriado e fruído pela fé. 
Findo o culto, sabe-se lá o que é feito com os elementos eucarísticos. Muitos luteranos descartam o vinho na pia da cozinha paroquial e misturam as hóstias do culto com as hóstias não consagradas, porque não mais creem que todo o pão é consagrado durante o rito. É ideia generalizada entre os luteranos que o pão é consagrado e torna-se pão-corpo somente na boca do comungante. De onde se tirou essa convicção, não sei dizer. Com certeza, não foi da Escritura. 
Minha opinião a respeito é que a Igreja Luterana, temendo que a doutrina romana da transubstanciação entrasse nela, adotou práticas calvinistas, não se atentando ao risco de o calvinismo entrar dentro de nossas comunidades. Pergunto: qual visão é melhor, mais bíblica e menos perigosa? A transubstanciação de Tomás de Aquino ou o espiritualismo de Calvino? Vou deixar que Lutero responda a essa pergunta: "Para mim basta que o sangue de Cristo esteja presente; com o vinho aconteça o que Deus quiser. Antes de optar pelo puro vinho com os fanáticos, iria preferir o puro sangue com o papa" (Confissão da Ceia de Cristo).
Temos que parar de pensar que a opinião de Lutero era apenas uma opinião. Ele foi bíblico! O relativismo da pós-modernidade não aceita opinião alguma como verdade absoluta, mas ela existe e, no que concerne à Eucaristia, ela está com Lutero, sem sombra de dúvida! Que me perdoem cristãos que não pensam como Lutero, mas a verdade da Eucaristia há de ser única e absoluta.
Quem me conhece sabe que sou ecumênico e vejo com bons olhos a amizade entre cristãos orientais, romanos, luteranos e calvinistas. Quem me lê sabe que não entendo por fé salvífica aquilo que nosso intelecto apreende, que há cristianismo autêntico onde quer que haja fé, independentemente da confissão, e que a fé salvífica não é assentimento intelectual com o conteúdo de alguma confissão. Não somos salvos por meio do que sabemos ou entendemos, mas por meio da fé, esta coisa misteriosa que apreende um Cristo misterioso, que atua e salva à parte da intelectualidade. O que une os cristãos não é o que pensam, mas essa fé. Por isso, para sermos amigos, não precisamos confessar a mesma coisa. A amizade ocorre entre indivíduos, entre pessoas com sua opinião formada a respeito de muitas coisas e fundamenta-se no respeito ao que o outro é. Não seria amigo de ninguém se exigisse do outro que pense igual a mim. Isso é narcisismo! Eu tenho que amá-lo como ele é para ser seu amigo. Assim entendo a comunhão que deve haver entre as igrejas. Mas não concordo com uma união às custas do sacrifício relativista da verdade. A amizade só pode acontecer quando as cartas são colocadas sobre a mesa, quando tudo é tratado com a máxima transparência, e mesmo assim somos capazes de nos amar. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 30 de julho de 2016

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 2



João Calvino (1509-1564) foi um teólogo humanista, de extraordinária inteligência e disciplina, que sistematizou a doutrina cristã de maneira similar ao que fez Tomás de Aquino. À sua teologia sistemática deu o nome de Institutas da Religião Cristã.
Como humanista, Calvino não conseguia ater-se à interpretação literal da Escritura, porque soava irracional e absurda muitas vezes. Por outro lado, não ousou ir contra os Pais da Igreja. Para um humanista, a filologia é muito importante. Portanto, Calvino deu muito mais valor ao que ensinaram os Pais da Igreja que o próprio Lutero.
Também buscou harmonizar entre si doutrinas contraditórias à razão humana. O resultado de seu trabalho é uma teologia extremamente lógica, de natureza escolástica, perante a qual a teologia luterana não poderia subsistir.
Sobre a Eucaristia, Calvino queria manter a presença do corpo e do sangue de Cristo nos elementos, porque assim ensinaram os Pais, mas é evidente que não acreditava nisso. Seu pensamento era essencialmente zwingliano. Para ele, pão e vinho são símbolos ou representações do corpo e do sangue de Cristo. Entretanto, a opinião dos Pais da Igreja não poderia ser desprezada e claramente opunha-se ao zwinglianismo.
Então estabeleceu uma interpretação que preservava o zwinglianismo, por mais que os calvinistas hoje recusem isso, mas oculto nas palavras da Instituição e nos ensinos dos Pais. Sua doutrina sobre a Eucaristia lhe permitia citar livremente os Pais da Igreja, embora não em seu sentido correto, obviamente.
Para Calvino, o pão consagrado continua pão e o vinho continua vinho. São representações ou símbolos de Cristo. Para ele, o homem Jesus Cristo não se encontra neste mundo, no altar, nas mãos do ministro, nem na boca do comungante, mas está em um lugar chamado Céu, de maneira local ou circunscrita. Nenhuma novidade em relação a Zwínglio. Todavia, não negou que quem recebe o pão também recebe o verdadeiro corpo de Cristo e que quem recebe o vinho igualmente recebe o verdadeiro sangue de Cristo, parecendo concordar com os Pais da Igreja. Havia, porém, um detalhe: o corpo e o sangue de Cristo não estão inclusos nos elementos, mas estão no Céu. Para ele, a Eucaristia é uma comunhão espiritual do crente com o corpo e com o sangue de Cristo, que estão no Céu. Os elementos são meros sinais de uma bênção secreta, operada pelo Espírito Santo. 
Vejo platonismo nessa visão, porque Calvino separou o mundo sensível, onde estão os elementos eucarísticos, do mundo das Ideias, onde estão o corpo e sangue de Cristo. O mesmo ele fez na eclesiologia, ao distinguir a Igreja Visível da Igreja Invisível.
Portanto, sua visão não é puramente bíblica, mas filosófica. Se Tomás de Aquino usou a filosofia de Aristóteles para explicar a presença de Cristo na Eucaristia, Calvino utilizou Platão.
Para Calvino, o ímpio não recebe o corpo e sangue de Cristo, porque não crê. Em última análise, não é a Palavra de Deus que estabelece o sacramento, mas a fé de quem comunga.
Essa sua visão sobre a Eucaristia é muito plástica e aceita por verdadeira qualquer declaração sobre a presença real ou substancial do corpo e do sangue de Cristo na Eucaristia, embora não passe de zwinglianismo, por mais que seus adeptos o neguem. 
Foi então que muitos luteranos incautos passaram a adotar a doutrina eucarística de Calvino como sendo um desenvolvimento da doutrina luterana. Daí surgiu o criptocalvinismo, em que Calvino foi adotado secretamente pelos luteranos.
Na verdade, a interpretação calvinista da Eucaristia foi um desenvolvimento do zwinglianismo. Foi uma maneira de adequar Zwínglio aos Pais da Igreja, livrando-o da acusação de estar introduzindo doutrina nova.
Há, porém, algo que retira o criptocalvinismo das sombras: a liturgia. E é sobre ela que iremos falar na última postagem desta série.
Quero colocar alguns trechos das Institutas de João Calvino, que expõem sua visão sobre a Eucaristia: "Digo que Cristo é a matéria, ou, se preferes, a substância de todos os sacramentos, uma vez que nele eles têm toda sua solidez, e fora dele absolutamente nada prometem (...). Quando o pão nos é dado como símbolo do corpo de Cristo, imediatamente se deve imaginar esta similitude: como o pão nutre, sustenta, conserva a vida de nosso corpo, assim o corpo de Cristo é o alimento único para revigorar e vivificar a alma. Quando vemos o vinho proposto como símbolo do sangue, deve-se ter em mente quais benefícios o vinho traz ao corpo, para que reflitamos que os mesmos nos são espiritualmente conferidos pelo sangue de Cristo, a saber, alimentar, restaurar, fortalecer, alegrar (...). Digo, pois, que no mistério da Ceia, mediante os símbolos do pão e do vinho, Cristo se nos exibe verdadeiramente, e deveras seu corpo e sangue, nos quais cumpriu toda obediência, no interesse de conseguir nossa justiça, para que, com efeito, primeiro com ele nos unamos em um só corpo; então, feitos participantes de sua substância, em plena participação de todos os seus benefícios, também sintamos seu poder (...). Ora, pois, como estamos longe de disputar que, de conformidade com a perpétua consistência do corpo humano, o corpo de Cristo seja finito e se mantém no Céu, onde foi uma vez recebido, até que retorne para o Juízo, assim julgamos ser absolutamente absurdo trazê-lo de volta sob esses elementos corruptíveis ou imaginá-lo por toda parte presente. Evidentemente, tampouco isso se faz necessário para que dele usufruamos de participação, quando o Senhor nos prodigaliza este benefício através de seu Espírito: que nos tornamos com ele um só corpo, espírito e alma. Portanto, o vínculo desta conjugação é o Espírito de Cristo, de cujo nexo somos ligados e é como, por assim dizer, o canal pelo qual nos advém tudo quanto o próprio Cristo não só é, mas inclusive tem (...). Com efeito, se com os olhos e a mente somos alçados ao céu, para que ali busquemos a Cristo na glória de seu Reino, assim como todos os símbolos nos convidam a ele, assim também, sob o SÍMBOLO do pão, seremos alimentados de seu corpo, sob o SÍMBOLO do vinho nos será distintamente dado a beber de seu sangue, para que, enfim, usufruamos de todo ele integralmente (...). Não é Aristóteles, mas o Espírito Santo, que ensina que o corpo de Cristo, desde quando ressuscitou, é finito e está circunscrito ao Céu até o último dia (...). Uma vez que este seja um mistério celeste, não é necessário que Cristo seja trazido para baixo a fim de estar unido a nós (...). Objetam que os indignos não deveriam ter sido por Paulo feitos culpados do corpo e do sangue de Cristo, a menos que fossem participantes deles. Eu, porém, respondo que eles são condenados não porque comiam, mas somente porque profanavam o mistério, calcando aos pés o penhor da sacra união com Deus, que deviam receber reverentemente".
 


Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 1

"Da Ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na Ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1530).

"No tocante à Ceia do Senhor, elas (isto é, nossas igrejas) ensinam que, com o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo são oferecidos aos que comem na Ceia no Senhor" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1540).


Alguém consegue perceber qual a diferença entre as duas declarações acima? Não é coisa simples. Qualquer um concluiria que ambas as declarações afirmam a mesma coisa, com palavras diferentes. Ambas atestam que o corpo e o sangue de Cristo são recebidos por aqueles que participam da Ceia do Senhor. Ambas deixam claro que quem comunga o pão e o vinho eucarísticos comunga a substância de Cristo. Bem, para entender a diferença entre a versão de 1540 da Confissão de Augsburgo em relação à versão de 1530 terá que primeiro compreender a visão verdadeiramente luterana a respeito da Eucaristia e a visão calvinista. Quem não dominar ambas as visões, que são muito diferentes, não conseguirá perceber diferença alguma.
Lutero ensinava que as palavras de Cristo "isto é o meu corpo" e "isto é o meu sangue" deveriam ser interpretadas de maneira literal, ao pé da letra. A palavra "isto" (touto) refere-se ao que Jesus segurava em suas mãos, um pão. No entanto, ele chamou aquele pão de seu corpo e deu-o aos seus discípulos. Também refere-se ao cálice de vinho, que ele apresentou como seu sangue e deu aos discípulos para que o bebessem. Lutero teria crido que seus olhos e paladar o enganavam e preferiria afirmar que não mais existiam pão e vinho, mas somente corpo e sangue, não fosse a explicação clara de S. Paulo a respeito. São Paulo deixa claro que a substância do pão e do vinho permanecem (1 Coríntios 10:16-17 e 1 Coríntios 11:26-28). Engana-se muito quem afirma que Lutero concluiu racionalmente que pão e vinho permanecem. Não, ele foi bíblico. Não fosse a intervenção de S. Paulo, ele teria aderido ao ensinamento de Roma que o pão se transforma em corpo e que o vinho se transforma em sangue, pois violentamente ele costumava agredir sua razão com o azorrague da Escritura. Sola Scriptura!
Lutero professava que a substância do corpo de Cristo une-se à substância do pão de maneira milagrosa, sobrenatural ou celeste. Não propôs nenhuma explicação a respeito. Também professava a união da substância do sangue de Cristo ao vinho de maneira milagrosa, sobrenatural ou celeste. A isso ele chamou de União Sacramental. Para que não distorcessem seu pensamento, ele chegou a ponto de afirmar: "Por isso os fanáticos e a glosa no Direito Canônico procedem mal ao criticarem o papa Nicolau por haver forçado a Berengário a confessar que ele tritura e mastiga com os dentes o verdadeiro corpo de Cristo. Quisera Deus que todos os papas tivessem agido de maneira tão cristã em todas as questões como esse papa agiu
com Berengário nessa confissão" (Confissão da Ceia de Cristo). Pouca importância Lutero deu à questão se o corpo e sangue de Cristo estão presentes de maneira local ou não no pão e vinho, se ocupam espaço ou não. Para ele, o importante é que se mantenha a verdade que o corpo e sangue de Cristo estão substancialmente no pão e no vinho, no altar, nas mãos do ministro e na boca dos comungantes.
Ele acreditava que o corpo de Cristo e o sangue de Cristo estão presentes junto ao pão e ao vinho mesmo na boca de um ímpio. Não condicionou essa presença mística à fé do comungante, igualmente seguindo à Escritura: "Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do CORPO e do SANGUE do Senhor" (1 Coríntios 11:27). Quem peca contra o pão não peca contra a pessoa de Cristo, mas especificamente contra seu corpo. O mesmo raciocínio é válido para o vinho. "Pois Paulo não diz: Quem comer este pão indignamente, este é réu de Cristo (...), do modo como se torna culpado diante do rei quem zombar de sua imagem. Pelo contrário, S. Paulo indica que a culpa acontece em relação àquelas partes de Cristo às quais se igualam pão e vinho e das quais são sinais, ou seja, é réu do corpo e sangue (...). S. Paulo (...) diz que se peca contra as partes, ou seja, contra corpo e sangue de Cristo. Isso é uma ofensa mais íntima e mais grave do que [pecar] contra a majestade e autoridade de Cristo" (Confissão da Ceia de Cristo).
Lutero insistia que o milagre ocorre graças à Palavra de Deus, que tudo pode. Aquilo que Deus promete é cumprido, por mais absurdo que pareça. Não condicionou esse milagre à fé de ninguém.
Todavia, não desprezou a fé e posicionou-se contra a doutrina do ex opere operato (1), porque acreditava que somente a fé apreende a Palavra de Deus e faz uso dela. O ímpio, embora receba em sua boca a substância do corpo e a substância do sangue de Cristo, recebem-nos para sua própria condenação. 
Em momento algum Lutero arriscou palpitar sobre quando é que a união sacramental ocorre ou deixa de ocorrer. Sola Scriptura sempre! Entretanto, por compreender que pão e vinho consagrados são coisas santíssimas, ordenou que todo o pão fosse consumido no altar, bem como todo o vinho. Que nada restasse do rito eucarístico! 
Lemos em Hermann Sasse: "Quanto ao próprio Lutero, não pode haver a mínima dúvida de que ele jamais limitou a presença real ao instante da distribuição e do recebimento. Nunca abandonou a ideia de que, pelas palavras da consagração, o pão e o vinho "se tornam" o corpo e o sangue de Cristo. De outro modo, nem a elevação, que foi usada em Witenberga até 1542, nem a adoração de Cristo, que está presente nos elementos, poderia ter sido justificada. Sempre considerou zwinglianismo (2) negligenciar a diferença entre uma hóstia consagrada e uma não consagrada, e sempre foi o costume da Igreja Luterana consagrar nova porção de pão ou vinho ou ambos quando se faz necessário mais do que se providenciou originalmente" (Isto é o meu corpo, Editora Concórdia). No rodapé, o seguinte comentário: "Em 1543, Lutero e Bugenhagen (WA Br. 10, Número 3888) deram sua opinião numa controvérsia quanto a se as hóstias consagradas podiam ser preservadas juntamente com as não consagradas para outra consagração. Lutero critica o costume. Nada dos elementos consagrados deve ser guardado, mas deve ser consumido".
Então perceba que a visão de Lutero é puramente bíblica. Não é uma visão racional da Eucaristia, mas puramente bíblica. É próprio do verdadeiro luteranismo voltar as costas à razão natural e simplesmente crer na absurdidade da Palavra de Deus. Em seus textos, sermões e aulas, Lutero não se cansa de xingar a razão, enaltecendo sempre o texto da Escritura. Uma de suas críticas mais acerbas à razão é esta: "Assim, a razão julga todos os artigos da fé, pois não entende que o supremo culto é ouvir a voz de Deus e crer. Mas ela supõe que aquelas coisas que ela mesma escolhe e faz com boa intenção e devoção particular, como dizem, agradam a Deus. Quando Deus, portanto, fala, a razão julga que sua palavra é heresia e palavra do diabo, pois lhe parece um absurdo (...). Essa luta, com certeza, travou a fé com a razão em Abraão, mas a fé, nele, venceu, destruiu e sacrificou aquela inimiga mais violenta e perniciosa de Deus. Assim, todos os piedosos que penetram com Abraão nas trevas da fé, matam a razão, dizendo: 'Tu, razão, és tola porque não cogitas das coisas de Deus, por isso, não me importunes, mas cala-te, não julgues, mas ouve a Palavra de Deus e crê" (Comentário da Epístola aos Gálatas).
Como você acha que soou a doutrina luterana sobre a Eucaristia, bem como o asco que Lutero tinha da razão humana depravada e rebelde contra Deus, entre os humanistas de seu tempo? Com que desprazer os humanistas ouviram e leram Lutero chamar a razão de feiticeira e até de diabo. 
No Colóquio de Marburgo, Lutero foi acusado de docetismo (3) por seus oponentes, que declararam o óbvio: que afirmar que o corpo de Cristo está contido no pão é o mesmo que declarar que seu corpo não é verdadeiramente humano. 
É certo que a visão luterana sobre a Eucaristia, verdadeiramente bíblica, não haveria de durar muito tempo, exatamente por conta do humanismo, que exaltava a razão humana e o entusiasmo.
De fato, não durou mais do que vinte ou trinta anos, como veremos nas postagens seguintes. 

(1)Ex opere operato é a doutrina da Igreja de Roma que ensina ser o sacramento sempre eficaz, independentemente da fé de quem o realiza e de quem o recebe.
(2) Zwinglianismo é a doutrina de Ulrico Zwuínglio, que ensinava serem o pão e vinho eucarísticos meros símbolos do corpo e do sangue de Cristo.
(3) Docetismo é a heresia do primeiro século que negava ser o corpo de Cristo verdadeiramente humano.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quarta-feira, 13 de julho de 2016

OLHOS NO ESPELHO

"Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros" (Romanos 7:22-23).


Há diferentes maneiras de dividir o homem, seguindo o padrão bíblico. O ser humano consiste em corpo e alma ou em corpo, alma e espírito. Encontramos nas Escrituras respaldo para as duas divisões da humanidade. É importante ressaltar que o homem é corpo e alma (ou corpo, alma e espírito). Não podemos afirmar, com base nas Escrituras, que uma alma seja homem, da mesma maneira como não chamamos um cadáver de homem. O ser humano é substancialmente corpo e alma ou corpo, alma e espírito, como queira. Ninguém olha para um cadáver e diz: ali está o homem, mas diz que ali está o corpo de um homem. 
Além dessa divisão do homem no que tange à sua essência, há uma outra: o homem é carne e espírito. Carne refere-se ao pecado inato, espírito refere-se à justiça adquirida. Essa divisão não é substancial, porque o pecado está no homem como acidente. Não é uma divisão do homem, mas do homem caído. Portanto, é uma divisão de interesse mais soteriológico que antropológico. 
Lutero trabalha muito essa divisão da humanidade caída. Toda vez que cita carne e espírito em seus textos, é nisso que ele está pensando. Também nos ensina a distinguir dessa maneira ambas as palavras sempre que forem colocadas em oposição nas Escrituras. 
Carne e espírito abrangem o ser humano como um todo: corpo e espírito, todas as suas faculdades, tudo o que ele é substancialmente, enquanto homem caído.
Carne (no grego, sarx) refere-se ao pecado que herdamos de Adão. É a inata rebeldia contra Deus, presente em absolutamente todo o nosso ser. Não praticamos nenhuma obra isenta de carne, ainda que sejamos os cristãos mais devotos do mundo, ainda que nossa obra seja tão esplendente quanto o martírio. Não há nada no homem que esteja livre do pecado de Adão. Por isso, ninguém pode apresentar uma obra perfeita a Deus. Igualmente, ninguém está imune ao erro, nem mesmo os apóstolos, pais e doutores da Igreja, como Lutero tanto enfatiza. A carne é a principal razão de não sermos justificados por nossas obras, visto que não está em nosso poder removê-la de tudo quanto fazemos, pensamos e somos. É por causa da carne que não temos absolutamente mérito algum perante Deus. A carne "é o pecado que habita em mim", nas palavras de S. Paulo. Lutero também designa a carne de homem exterior, seguindo Santo Agostinho.
Por que carne? Penso que a palavra carne tenha sido escolhida para designar pecado por ser algo amplamente visível. De fato, nosso pecado está sempre patente diante de nossos olhos a nos frustrar. Não precisamos de fé para chegarmos à conclusão que somos miseráveis pecadores. A razão simples tem trazido os homens a essa conclusão, sem necessidade das Escrituras. É por causa da percepção da carne que o homem é tão infeliz. 
Quanto ao espírito (no grego, pneuma), ele refere-se ao homem criado pelo Espírito Santo. Como disse Jesus a Nicodemos: "O que é nascido da carne (sarkos) é carne (sarx); e o que é nascido do Espírito (Pneumatos) é espírito (pneuma)" (São João 3:6). É a nova vida dada por Deus ao homem caído, que também é chamada de regeneração, nascer de novo, novo homem, novidade de vida, mente (noos), renovação da mente (noos) e homem interior (eso anthropon).
O espírito é a fé no Evangelho criada pelo Espírito Santo. Espírito é também a justificação, em que Deus declara o homem justo, imputando-lhe a justiça de Cristo. Deus declara que o homem é tão justo quanto Cristo ou une o homem a Cristo numa só pessoa. Portanto, espírito é Cristo em nós, apropriado pela fé. 
Ora, se Cristo está em nós, temos todos os seus méritos, tudo o que ele é. Isso é espírito.
A palavra espírito (pneuma) denota invisibilidade. É que a justiça cristã está oculta no Céu. Enxergamos com facilidade a carne, mas não o espírito. O espírito ganha visibilidade conforme crescemos na fé.
Deduz-se então que nem todo homem é carne e espírito. Por isso é que afirmei que essa divisão humana não é antropológica. Quem não crê, não tem a justiça de Cristo e é puramente carne. Quanto ao crente, ele é concomitantemente carne e espírito. 
O homem que crê é espírito em construção e carne em degeneração. Conforme o espírito vence a carne, ele vai ganhando corporalidade e começa a tornar-se visível. Entrementes a carne vai perdendo sua corporalidade e começa a ocultar-se, tornando-se igualmente matéria de fé. 
Mas veja bem: a carne continuará existindo em nós até o dia da ressurreição dos mortos. Ninguém conseguirá em vida exterminá-la por completo. Ainda que sua fé o faça transportar montes, não se esqueça que ainda é carnal.
Muitos não conseguem mais enxergar sua carne, por serem muito espirituais. Não enxergando a carne, deixam de crer na sua existência, quando são mortalmente atacados por ela, tornando-se presunçosos. Passam a depositar a confiança em suas obras e tornam-se juízes dos outros.
É por isso que a pregação da Lei continua tendo grande serventia aos cristãos verdadeiros. O espírito está absolutamente livre da Lei e desfruta a justiça perfeita de Cristo. A Lei não tem poder algum sobre o espírito, não é sua instrutora, muito menos sua senhora. Ela é o instrumento que o espírito utiliza para combater a carne. Aliás, tudo o que o espírito tem para destruir a carne e ganhar espaço no homem é a Lei. Caso nos tornemos espirituais o bastante para não enxergarmos mais nossa carne, devemos investir contra ela com a Lei: "Não cobiçarás". Se ela ainda permanecer oculta, devemos recorrer a outra Lei mais rigorosa: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força". Então veremos que ainda somos carnais e que há muito a ser destruído.
Hoje estou completando trinta e seis anos de vida e ponho-me a meditar: quanto espiritual já sou? Como já afirmei em textos anteriores, percebo o quanto sou espiritual quando identifico com nitidez minha carnalidade. Quanto mais pecador me sinto, quanto mais derrotado e vil me identifico, mais percebo que sou espiritual. Naqueles dias em que chego em casa abatido por causa de meus pecados e deito-me na cama triste, choroso, com o olhar cansado voltado ao crucifixo, então sou consolado pela consciência de ser um pouco mais espiritual que antes. Por outro lado, quando começo a me sentir livre da carne, então me perturbo, porque sei que ela está me conduzindo à soberba. Nessas horas eu recorro à Lei e a utilizo para ferir minha carne, dizendo a mim mesmo: Vem e obedece a esta Lei, se de fato és espiritual: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força". Essa Lei é o pior dos chicotes. 
Consola-me saber que um dia eu não serei mais carnal. Enquanto esse dia não chega, não permitirei ser iludido por minha carne. Toda vez que me sentir muito santo, quero dar ouvidos ao Jesus que pergunta três vezes: "Você me ama com o amor perfeito (Agape)?". Então responderei com S. Pedro: "Eu o amo com um amor deficiente e carnal (Philia)". Essa é a minha prece no dia de hoje.

"Assim, pois, se olharmos para o pecado, somos pecadores, se olharmos para o Espírito somos justos. E, desse modo, em parte somos pecadores e, em parte, somos justos" (Lutero).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


domingo, 3 de julho de 2016

MEU TESTEMUNHO

"Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (1 João 5:4).



Conversei dias atrás com um amigo que tem estudado teologia cristã e que está experimentando uma dura transformação em sua vida, pois era ateu e agora reconhece que  existe um Deus e que é pecador. Atualmente, está lendo as Confissões de Santo Agostinho. Falamos longamente sobre a experiência cristã, que consiste tão somente em fé no Evangelho. Também conversamos sobre a distinção correta entre Lei e Evangelho e acerca da natureza da fé. Uma de suas perguntas foi: "Quando é que Deus aconteceu em sua vida? Gostaria que você escrevesse sobre isso".
Pois não. Hoje vou falar sobre a experiência minha com Deus, que é a experiência cristã. Também dedico o texto a esse meu amigo, com todo o carinho do mundo.
Nunca houve um dia sequer em minha história consciente no qual eu não tenha crido. Até onde minha memória pode alcançar, eu sempre cri. 
A teologia veio nos últimos quinze anos. Mas sempre cri no Evangelho, mesmo quando não sabia o que era o Evangelho. Por isso mesmo não acho pertinente sujeitar a eficácia do Evangelho à sua correta compreensão. Soube que Jesus havia me substituído na cruz somente aos vinte anos de idade. Até então, sabia que Jesus havia morrido por mim e que me amava. Contentava-me com isso e vivia feliz. Não conhecia a dimensão do sacrifício de Cristo. Foi com assombro que descobri que Deus havia castigado o meu pecado na carne inocente de seu Filho, a fim de me salvar do Dia da Ira. 
Não conhecia a obra vicária de Cristo, mas já cria. Passei toda a infância e juventude, pela graça de Deus, orando, entregando a Jesus minhas necessidades, clamando por socorro nas horas de aperto e alegrando-me com suas respostas. Alcancei muitas graças ao longo de toda a infância e juventude, desde a cura de uma verruga no joelho à minha entrada em uma universidade pública. O interessante é que sempre cri, mas por muito tempo não soube o que era Evangelho e até aos vinte anos não tinha ciência que Cristo havia me substituído como Cordeiro de Deus. Com isso eu quero mostrar que a fé não depende da correta compreensão do Evangelho.
Muitos querem sujeitar a eficácia do Evangelho e a fé salvífica à correta compreensão do Evangelho. É que o homem sempre retorna às obras e com muita dificuldade avança na senda da justificação somente pela fé. Queremos colaborar com a eficácia do Batismo através de nossa profissão de fé. Queremos colaborar com a eficácia da Pregação do Evangelho através de nossa compreensão. Queremos restringir a eficácia da Eucaristia àqueles que corretamente discernem o corpo e sangue de Cristo nos elementos. Estamos sempre querendo dar uma ajuda a Deus através de nossas obras.
Na verdade, a fé no Evangelho realiza tudo sem nossa colaboração. Ainda que alguém não saiba explicar o que é o Evangelho. Ainda que confunda Lei e Evangelho. Ainda que não tenha um conhecimento correto acerca do Santo Batismo e da Eucaristia, nem por isso se pode afirmar dele que não crê e que precisa ser catequizado para crer.
Aqui não quero desvalorizar o estudo das Escrituras e o aprofundamento teológico. O que quero deixar claro é que não somos salvos pelo que sabemos, mas por nossa fé.   
Creio que a fé surgiu em mim no dia do Santo Batismo. Talvez antes. Não posso dizer quando é que esse milagre ocorreu em mim. Não sei dizer se recebi a fé antes do Santo Batismo, para que pudesse apropriar-me dele, ou se recebi a fé ao ser batizado. Fato é que a fé me acompanha desde o Santo Batismo, pelo menos. Se S. João Batista creu quando era feto, por que eu haveria de pensar que isso não aconteça todos os dias nos ventres de tantas mães cristãs, que consagram seus filhos a Deus? A intercessão obtém TUDO de Deus, inclusive a fé e a salvação de um feto.
Fui crescendo com essa fé. Lembro-me de quantas vezes orei a Deus com lágrimas nos olhos, ainda criança, rogando a ele o perdão dos pecados. Brincava de escola dominical e de pastor. Fazia serviços fúnebres de bonecos de papel e de animaizinhos mortos. Lembro-me de pedir à minha mãe que orasse a Deus para curar enfermidades minhas ou para que eu conseguisse dormir, porque estava com medo. Era muito arteiro, exceto quando estava diante de um professor de escola dominical. Como gostava de aprender histórias da Bíblia! Lembro-me com nostalgia do cheiro de álcool dos trabalhinhos de escola dominical. Lembro-me do cheiro de madeira que exalava dos tacos e dos bancos da igreja. 
Em minha juventude, sofri muito as transformações que ocorreram em meu corpo e mente, mas sempre na presença de Deus. Conservei-me casto durante toda a minha juventude, graças a Deus. Também me lembro das lágrimas de angústia que derramei diante de Deus por ser incompreendido pelos meus colegas, pela solidão e pela dificuldade para entrar na universidade. Quantas vezes orei a Deus pedindo um amigo. Em tudo isso eu vejo a mais profunda fé, mas não sabia que confissões de fé existiam e nem sequer tinha conhecimento do que Cristo havia feito por mim na cruz.
É então que chego a duas realidades: a fé fictícia e a fé verídica. A fé fictícia é sempre uma praga, porque a pessoa vai para o inferno achando que é serva de Deus. Aprende os fundamentos da teologia cristã e assimila-os intelectualmente. Alguns vão muito longe e formam-se pastores e padres, doutores em teologia, mas não creem de fato. É uma fé intelectual e fictícia, fabricada pelo estudo, pelo aprendizado e por livros. É uma fé que não transforma a vida, que não resulta em santidade, em contrição e em penitência.
Quanto à fé verídica, esta é um milagre de Deus. Não posso recorrer com segurança a Lutero ao definir o que é fé, pois nem ele, que só falava disso, conseguiu firmar-se em uma só definição. Eu acredito que a fé está em nós como a concupiscência. Assim como a concupiscência habita em nós e manifesta-se de todas as maneiras possíveis: intelecto, emoções, palavras e pensamentos, agindo contra a nossa vontade, sempre nos forçando ao mal, a fé igualmente está em todo o nosso ser e em todas as nossas faculdades, arrastando-nos a Deus. Mesmo quando não queremos ser de Deus, ainda assim somos de Deus. Mesmo quando não queremos orar, oramos. Quando não queremos perdoar e amar, perdoamos e amamos. Mesmo quando queremos cometer pecado grave, não conseguimos ir adiante. A fé nos liga a Deus e não nos deixa partir, obrigando-nos a confessar com S. Pedro: "Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna" (S. João 6:68). Igualmente, quando pecamos, a fé provoca em nós intenso pesar e arranca de nós lágrimas amargas. Também nos devolve ao Deus misericordioso, para que nos cure com seu perdão. 
A fé verídica é existencial. Permeia tudo. Assim como não há obra cristã isenta de concupiscência, confesso que não há obra cristã isenta de fé. Por causa dessa fé que está em cada obra cristã é que Deus aceita nossas obras. Caso contrário, ele as rejeitaria como pecado mortal. 
Recebemos a concupiscência contra a nossa vontade, por ação do diabo. Quanto à fé, recebemo-la igualmente contra a nossa vontade, por ação de Deus. 
A concupiscência nos puxa para baixo, para a terra, enquanto que a fé nos puxa para o alto, para o céu. A vida cristã é, portanto, uma tensão entre duas forças: concupiscência e fé. O homem cristão está entre o mundo e o céu. Como disse Lutero, o cristão não está no chão nem no céu, mas no telhado. 
A fé fictícia não gera fruto algum, cede à argumentação e não subsiste diante das provas. A fé verídica, por sua vez, transforma todo o ser, todas as relações, sobretudo a relação com Deus. Ela não recua diante das provas e não se interessa por argumentos. Subsiste em meio à ignorância e floresce nos pobres de espírito. Conforme o salmista: "Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor" (Salmo 8:2). A fé verídica não foge ao martírio. Enfrenta a tudo e a todos. Vence o mundo e todos os diabos.
A fé verídica é dádiva de Deus. Ao cristão verídico cabe zelar por essa fé, evitando a todo o custo o pecado, que é capaz de matá-la, e alimentando-a com o homem Jesus Cristo, substancialmente presente na Pregação, na absolvição e na Eucaristia. Quando o homem encontra uma pérola de grande valor, deve vender tudo o que tem para apropriar-se dela (S. Mateus 13:45-46). Quem não tem essa dádiva, deve buscá-la e por ela empenhar céus e terra. Quem a tem, deve guardá-la com carinho e cuidar dela.
Uma coisa que lamento sempre é que muitos foram agraciados com a fé verídica, mas não tratam essa dádiva com o devido respeito. São displicentes, não leem as Escrituras, não oram, têm preguiça de ir à igreja e relegam-na ao campo das não prioridades. Não querem uma fé fortalecida, que ganhe espaço sobre a concupiscência, mas contentam-se com uma fé franzina, tímida e muito pouco expressiva. Essas pessoas estão mais vulneráveis a cair em pecado grave e a perder a sua fé.
De todas as bênçãos que o homem pode receber de Deus, a maior certamente é a fé. Sem ela, nada que Deus nos dá servirá ao nosso bem, antes será usado pecaminosamente, em proveito próprio e em rebeldia contra Deus. Quem crê deve sempre agradecer a Deus por sua fé e fazer tudo o que lhe for possível para manter essa fé sempre viva e vigorosa. 
A fé vive de Evangelho. É com o Evangelho que devemos alimentá-la. Quanto mais forte ela se torna, mais eficazmente ela combate a concupiscência e melhora a qualidade de nossas obras. Quanto mais forte ela se torna, mais amamos e mais servimos. Quanto mais forte ela se torna, mais agradamos a Deus.
Esta é a minha experiência cristã. Sou cristão contra a minha vontade, mesmo quando não gostaria de ser, porque recebi de Deus a dádiva da fé, que não me permite fazer o que minha natureza pecaminosa quer e gostaria de fazer. Todos os dias oro. Quase todos os dias leio as Escrituras. Não deixo de ir aos cultos nem quando estou doente. Com isso, não quero me mostrar como melhor que os outros, mas como alguém que tem consciência de ter um dia recebido uma pérola de inestimável valor e que cabe a mim guardá-la com carinho, como a coisa mais sagrada do mundo, protegendo-a de todos aqueles que a querem roubar de mim.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.