sábado, 18 de janeiro de 2020

EUCARISTIA E O DILEMA DO RECEPCIONISMO

É certo que para um luterano de verdade, cujas raízes sorvem o mais puro catolicismo, não há nada mais importante a ser discutido que os Sacramentos. A espiritualidade luterana concentra-se na recepção e vivência dos Sacramentos, daí a ênfase enorme dada à questão, como facilmente se constata na Liturgia e nas prédicas.
Um luterano autêntico, radicado na fé católica límpida, confessa firmemente que Jesus Cristo está presente corporalmente na Eucaristia. Destaque-se que não é o crente que se ELEVA ao corpo de Cristo, supostamente localizado em um suposto lugar, o Céu. Não, é Cristo que DESCE a nós, com seu corpo e sangue. Está na Eucaristia da mesma forma que esteve na manjedoura, no barco com os discípulos, no Monte Tabor, no Getsêmani e na cruz, só que invisivelmente.
A presença invisível de Cristo entre nós é conforme a Glória assumida ao ressuscitar dentre os mortos. Uma humanidade não mais circunscrita e visível, mas misticamente absorvida pela Divindade e além de nossas capacidades naturais . Após a ressurreição, as aparições de Jesus deixam de ser coisa natural e passam a ser verdadeiros milagres. O usual é sua invisibilidade. Sua visibilidade é o novo, é a surpresa, é o impossível!
Cristo agora torna-se visível quando quer, não mais por natureza. 
Que Cristo DESCE a nós, basta que nos atentemos ao sentido simples das palavras: "Isto é o meu corpo"; "isto é o meu sangue". Não precisamos de uma interpretação complexa quando temos ao nosso dispor uma que é tão simples. Se o ministro declara: "Isto é o meu corpo" e nos apresenta um pão, é muito mais simples e adequado crermos que o corpo de Cristo está aqui, entre nós. Evidentemente, se está entre nós, é porque DESCEU. Embora não possamos compreender o modo, podemos compreender o resultado, sendo a ideia de DESCENSO a via mais reta e provável.


É, então, que surge uma divisão entre os luteranos. Uma parte crê que o corpo e sangue de Cristo estão presentes à boca do comungante, não antes, nem depois (recepcionismo). Outra parte crê que pão e vinho são transformados em corpo e sangue ao serem consagrados, antes mesmo de serem consumidos (consagracionismo). Entenda-se por transformação o milagre da presença corporal do Cristo que desce, não como transubstanciação, que é um conceito exclusivamente romano e estranho ao catolicismo como um todo. Pão e vinho como cenários de um milagre, tal como o Santo Sepulcro o foi.
Honestamente, não encontro um motivo bíblico para essa dupla interpretação. Motivos históricos e relacionados à praxis podem ser elencados, porém não razões escriturísticas. De acordo com as Escrituras, a Eucaristia se torna corpo e sangue de Cristo durante a sua celebração, antes mesmo da recepção oral. Comer e beber consumam a obra Eucarística, mas não a determinam.
Quando Cristo declara: "Isto é o meu corpo", "isto é o meu sangue", ele passa a ter em suas mãos a obra completa de sua Palavra. Ele claramente convida os discípulos a comer e beber o que é real. Se os discípulos recusarem a comer e beber, a realidade posta ali não irá se dissolver. O que Cristo diz é Verdade, independentemente de nossa resposta. "Ele disse, e foram feitas; ele ordenou, e foram criadas"
Outra prova que temos nos é fornecida por São Paulo:  

"Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?" (1 Coríntios 10:16).

São Paulo chama de "comunhão do sangue de Cristo" ao cálice abençoado, não ao vinho bebido. Também chama de "comunhão do corpo de Cristo" ao pão que é partido, não ao pão que é comido. Somos, assim, instruídos a crer que o pão já é comunhão do corpo e que o vinho já é comunhão do sangue antes mesmo de os recebermos. Quando o pão é partido deixa de ser simples pão. Quando o cálice é abençoado deixa de ser simples cálice. Ora, tais coisas acontecem no altar, não na boca do comungante.
Quanto ao que é pregado pela Igreja desde os primórdios, não resta a menor dúvida. Quero citar um único exemplo, retirado dos escritos de Santo Ambrósio: 

"Portanto, para te responder, antes da consagração não era o corpo de Cristo, mas te digo que depois da consagração já é corpo de Cristo. Ele disse, e foi feito; ele ordenou, e foi criado (...) Antes da consagração, é pão; mas quando as palavras de Cristo aparecem, é corpo de Cristo. Escuta então o que ele diz: 'Tomai e comei disso todos, porque isto é o meu corpo'. Antes das palavras de Cristo, também o cálice está cheio de vinho e de água; do momento em que as palavras de Cristo são usadas, isso torna-se o sangue que redimiu o povo" (Sobre os Sacramentos, IV Livro, Editora Paulus). 

Qual a relevância dessa discussão, visto que ambas as opiniões mantêm a humanidade de Cristo? É que o princípio recepcionista predispõe a um maior desleixo em relação ao rito eucarístico. De repente, o rito em si, com suas orações tão significativas e ricas, perde a relevância, que é buscada somente na manducação oral. Percebemos isso, infelizmente, em muitas paróquias luteranas, que já reduziram ao máximo a extensão do rito. Muitos pastores têm pressa em consagrar os elementos e distribuí-los ao povo, sem dar o devido significado e valor ao durante.
Infelizmente, junto com a praxis vem toda uma intuição doutrinária, que neste caso favorece o brotamento do simbolismo e do espiritualismo.
A muitos parece que a liturgia tem um mero valor estético. Não, ela ajuda a manter a pureza da doutrina. Uma atitude displicente perante o rito Eucarístico irá ressoar negativamente na teologia. O inverso também é verdadeiro: erros na doutrina irão repercutir nos atos litúrgicos, tendendo a diminuí-los, seja por diluição, ao acrescentar, seja por dissipação, ao tirar.
Que Deus ajude a sua Igreja a sempre ter em alta consideração os Sacramentos. Que não sejam expressões do belo, nem meras tradições ou costumes, nem sejam confrontados com a Pregação. Até porque eles são o ponto mais alto da Pregação: "Porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, ANUNCIAIS a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Coríntios 11:26). 

Autor: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.