sábado, 2 de dezembro de 2017

COMER, REZAR E AMAR - PARTE 2

Quando colocamos o cristianismo ao lado do paganismo, fica fácil entender por que o cristianismo se espalhou tão rapidamente pelo mundo, tornou-se a religião majoritária do Império Romano, somente pela natureza de seu discurso, sem uso de armas ou força. Realmente, o cristianismo é mais do que fé, é uma forma muito evoluída de pensar e de viver.
O mundo ocidental tem cada vez mais desprezado suas origens, posiciona-se como quem não precisa de Deus e não deve nada ao cristianismo. Muitas vezes assume uma postura até agressiva perante a cultura cristã. No entanto, por mais que o paganismo esteja ganhando força, ainda consideramos errado não perdoar quem nos ofende, defendemos a igualdade de todos e os direitos humanos, tudo isso que jamais existiria não fosse a introjeção da teologia cristã em nossa mente. Consideramos o perdão, a inclusão e a igualdade como coisas corretas e desejáveis não porque está em nossa natureza pensar assim, mas porque bebemos da fonte da Igreja há dois milênios. Hoje o mundo lança o discurso dos direitos humanos contra o discurso da Igreja, sendo que o discurso dos direitos humanos emergiu do discurso da Igreja. Infelizmente, nossa sociedade perdeu a memória.
Quem leu o texto anterior, que traça o paganismo em linhas gerais, poderá dizer: Você está exagerando, nem todo pagão é assim. De fato, os pagãos que conhecemos são mais ou menos influenciados pela Igreja e por isso assumem posturas um tanto quanto variáveis. A Igreja está no mundo como luz que ajuda a diminuir as trevas.
O Deus dos cristãos não é impessoal como o Deus pagão. É um Deus que ama, busca, perdoa e indigna-se, como se fosse pessoa humana. Por fim, os cristãos ensinam que Deus é verdadeiramente humano, de forma que todos os sentimentos humanos encontram em Deus sua matriz. Nós nos alegramos porque Deus se alegra, entristecemo-nos porque Deus se entristece, sorrimos porque Deus sorri. Deus é a fonte da humanidade. Quando Deus diz consigo mesmo: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", ele está anunciando a sua encarnação. A nossa humanidade é imagem da humanidade de Deus. O que nos torna humanos é imagem daquilo que torna Deus humano. 
O Deus dos cristãos é relacional. Primeiro consigo mesmo, pois é uno em sua substância, trino quanto ao número de pessoas. Portanto, o Deus dos cristãos é uma comunidade perfeita. Depois, é relacional fora de si, ao tratar com o homem. Mas como poderia Deus tratar com o homem se não fosse também humano? Por isso ele se faz homem para falar ao homem.


A encarnação de Deus tem enormes implicações na cosmovisão. Se Deus é homem a tratar com homens, somos chamados para fora de nós mesmos, para uma aliança visível. O cristão não tem uma espiritualidade introspectiva, porque seu Deus está de fora e chama-o à responsabilidade e à comunhão. Para o cristão, o Outro é o próprio Deus, com quem se relaciona o tempo inteiro. Portanto, a humanidade de Deus nos permite localizá-lo no homem.
Ao localizar a humanidade de Deus no homem, o cristão é dissuadido a encontrar Deus em sua natureza, mas também no Outro. Por conseguinte, a dignidade humana é revelada com clareza, tanto a nossa, quanto a do Outro. Além disso, a humanidade de Deus torna toda humanidade preciosa, seja ela a humanidade de um embrião, de uma mulher, de um negro, de um escravo. Ninguém no cristianismo é superior a ninguém, mas todos somos superiores ao restante da criação e muito dignos, essencialmente dignos, porque Deus é homem. Qualquer crime contra a humanidade é um crime contra Deus. Tudo o que louva e dignifica a humanidade, igualmente louva e dignifica a Deus.  
Por pensar assim, o cristão cuida de si mesmo, de seu corpo, de tudo aquilo que o torna humano, com zelo religioso. É disso que vem a castidade, o pudor, a moderação e a temperança. Ele não é motivado a comportar-se assim por regras, mas por saber que Deus é homem, que ele é homem e que lhe cabe cuidar do que é divino. Sua motivação está em sua configuração com Deus.
Por outro lado, o cristão cuida do próximo com o mesmo zelo, porque entende que Deus é homem, que o próximo também é homem e que é seu dever cuidar do que é divino. Ele sabe que está prestando um verdadeiro culto a Deus quando "cultua" seu próximo. Ele aprendeu a configurar o Outro a Deus.
Por ter um Deus relacional, o cristão obedece ao simplesmente relacionar-se com seu Deus. Não está preso a regras, mas ao relacionamento da fé. Tudo o que faz e deixa de fazer, é por amor a Deus, mas a um Deus que é homem e que está no homem. A norma vem de fora, vem do Deus encarnado, não é algo subjetivo. A obediência a essa norma não é interesseira, é consequência do relacionamento. 
O cristão não tem um Deus incapaz de amá-lo ou que o ama de maneira metafórica. Seu Deus o ama como um homem perfeito ama. Ele então se sente constrangido a retribuir esse amor com seu amor humano. Mas a quem direcionar esse amor? Ao homem, ou seja, a si mesmo e ao Outro, que ele aprendeu a chamar de "próximo" ou "semelhante". O Outro é tão humano quanto eu, meu semelhante na humanidade. O Outro é tão humano quanto Deus, seu semelhante na humanidade. Portanto, eu e o Outro somos o objeto do culto, não o intermédio ou instrumento.


O Deus cristão é um Deus-Unidade que busca a unidade, é um Deus-Comunhão que busca a comunhão. Nunca haverá no mundo uma sociedade como a Igreja e seu Deus. A Igreja não é só uma sociedade política, como Israel e o Islã. A Igreja é um organismo com seu Deus. Ela recebe e comunga o que é próprio de seu Deus. Deus se prolonga e se universaliza por meio da Igreja. Como organismo, a Igreja também se recebe e se comunga. Em qual religião pagã encontraríamos algo semelhante ao Batismo cristão, que sepulta e ressuscita todos os cristãos com seu Deus? Ou com a Eucaristia, em que a Igreja come e bebe seu Deus e a si mesma? A Igreja mergulha em seu Deus e em si mesma ao celebrar seus mistérios.
Muito significativo é que a Igreja veja seu Deus e o receba por meio dos sacramentos. Ela não possui ritos simbólicos, tudo é real, tudo é comunhão com Deus e consigo mesma. Tudo é concreto, visto que seu Deus é concreto.

"Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos AMEI, que também vós AMEIS uns aos outros" (S. João 13:34).

Com essa fala de Jesus, o Deus dos cristãos, concluo este panorama singelo da cosmovisão cristã. Qualquer pessoa honesta não deixará de considerar o impacto dessa cultura na preservação da sociedade. E não há outra forma de a sociedade escapar ao colapso, senão aprendendo com os cristãos sobre a relevância e dignidade do Homem e do Outro, enfim, de si mesma.

"É, pois, com um mesmo amor que amamos a Deus e ao próximo, mas amamos a Deus POR DEUS, e ao próximo POR CAUSA DE DEUS" (Santo Agostinho, A Trindade).




Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 18 de novembro de 2017

COMER, REZAR E AMAR - PARTE 1

Ao ler sobre o comércio de escravos na Líbia e ao ver as imagens, fiquei profundamente impressionado. Depois refleti sobre aquilo a semana inteira, o que me motivou a escrever.
Fato é que quando nos deparamos com crueldades dessa natureza, muitas vezes somos induzidos a pensar que se tratam de problemas localizados e distantes de nós. Mas a verdade não é essa, infelizmente. Se pensarmos bem, chegaremos à conclusão que uma mesma cultura permeia aquela sociedade e a nossa, o mundo todo, que é a cultura pagã. Aqui, debaixo de  nosso nariz, há perversidades até piores.
Neste texto, procuraremos reunir elementos que caracterizem o paganismo, não só o islâmico, mas como um todo, visto que o paganismo é uma coisa só, não importa onde esteja e a forma que assuma. Ele é sempre uma cultura ateia, individualizante e despersonificante, ainda que se apresente muito religioso e com um discurso bonito de tolerância e inclusividade.
Fato é que somente duas culturas subsistem no mundo: o cristianismo e o paganismo, a descendência de Sete e a descendência de Caim. Tudo o que contradiz o cristianismo é necessariamente pagão. Por isso, a compreensão do paganismo requer uma abordagem dialética com o cristianismo.


O Deus pagão é sempre um Deus impessoal. Essa impessoalidade de Deus está no panteísmo, em que Deus é o cosmos, incapaz de pensar, ouvir, falar, ou seja, interagir. Está no deísmo, em que um Deus criou o cosmos e o deixou seguir seu próprio caminho, indiferente aos nossos sentimentos e à nossa realidade. Está na transcendência, que é o caso dos judeus e muçulmanos, que concebem um Deus separado das criaturas, incomunicável, impassível e imóvel. Em todo caso, percebe-se que não há Deus algum a um pagão, porque seu Deus é incapaz de relacionar-se com ele. Ter um Deus impessoal é o mesmo que não ter Deus algum, e é com base nisso que o pagão irá viver.
Como resultado de seu ateísmo, o pagão desvia toda a sua espiritualidade a si mesmo. Não sendo possível relacionar-se com um Deus exterior, o pagão relaciona-se consigo mesmo. Vá a um templo budista e veja como as pessoas buscam a Deus: cada qual em seu canto, buscando a Deus em si mesmo, alheio ao outro. O mesmo se vê na mesquita, na sinagoga, mas também no vegano, em toda pessoa que busca sua redenção na cidadania e na civilidade, como percebemos na grande massa agnóstica ocidental. Como resultado, a cosmovisão é profundamente individualista: tudo começa e termina no Eu. Eu sou a grande fonte de transformação, a causa de tudo o que acontece, a origem do êxito e da desventura, tudo gira em torno de mim, por mim e para mim. E o Outro, quem ele é? Ele é apenas o intermédio, um caminho, um objeto, um corpo. O Outro existe para o pagão da mesma forma que o restante do cosmos: está ao seu dispor, assim como o ar, a água e a terra.
Da mesma forma como o pagão olha para o Outro, ele olha para seu corpo, que ele enxerga como algo fora de si, um invólucro, um bem a ser consumido. Para o pagão, o Eu é sua alma, seu mundo interior, que ele diviniza. O corpo é apenas a morada do verdadeiro Eu, que é usada como qualquer outra morada ou bem material. 
O pagão busca a felicidade de maneira solitária. Mesmo quando aparenta buscar a felicidade alheia, ele busca sua própria felicidade, pois sua cosmovisão é individualista. Tudo o que o pagão faz ou deixa de fazer é para o seu próprio bem, para sua própria promoção e está dentro do âmbito de seu interesse. Essa felicidade pode ser de natureza espiritual e cúltica, ou somente carnal, quando então toda a espiritualidade se expressa em hedonismo, por vezes sutilíssimo. Frequentemente o hedonismo é tão somente a busca da paz de consciência, visto que uma consciência atribulada pela culpa é um empecilho ao prazer.
Uma vez seja o Eu divinizado, espera-se que dele venha a norma. Entre um Deus incomunicável e desconhecido e um Deus interior, que pode ser explorado, é evidente que o pagão deverá buscar nesse Deus interior a verdade e a norma de vida. Daí vem o subjetivismo, que caracteriza o modo de pensar pagão, seja no ocidente apóstata, seja entre os judeus, muçulmanos e budistas. A verdade é sempre algo subjetivo, ou seja, que emana do Eu. 
Esse subjetivismo é muito intolerante. É próprio do pensamento pagão desconsiderar a existência do Outro, seu pensamento, sua conduta. Mesmo quando prega a paz e a inclusividade, o pagão é autoritário e excludente, porque ele é Deus e norma. O Outro não tem que pensar, mas deve permanecer à sua disposição como receptor e ouvinte. 
Ateísta e individualista, idólatra de si mesmo, o pagão irá se comportar de maneira adequada à sua cosmovisão. Não podendo se relacionar com um Deus exterior, relaciona-se com um Deus interior, ou seja, consigo mesmo. O Outro é despersonalizado e torna-se um bem a ser usufruído. Como resultado, a existência do Outro está a serviço do Eu. Se o Outro não atender aos meus interesses pessoais, ele deve ser banido da mesma forma que se bane qualquer coisa imprestável. O Outro pode ser um embrião, que eu posso abortar; um cônjuge, de quem posso me divorciar; um trabalhador, que eu posso explorar e escravizar; um corpo humano, que eu posso usufruir; um doente, que eu posso abandonar ou matar. No modo de pensar pagão, o Outro pode ser usado da mesma forma que a água, o ar e a terra. Se me serve, é bom; se não me serve, lanço fora, sem qualquer remorso. A coisificação do Outro não é fato novo, mas é própria do paganismo, desde sempre.
A mesma relação o pagão tem com seu corpo. Se o corpo é um bem consumível, é de se esperar sua instrumentalização, sobretudo para o alcance da felicidade. Se a felicidade é vista como bem-estar espiritual, o corpo é negligenciado e castigado, pois sua aniquilação se torna um meio. Se a felicidade é vista como bem-estar carnal, o corpo se torna palco de todo o tipo de sensualização e erotização, pois novamente é reduzido a um simples meio. Em tudo isso, percebe-se com clareza que o corpo se reduz a uma coisa, que se deve descartar ou consumir, o que indubitavelmente lesa a dignidade humana e determina todo o tipo de autodegradação. Se meu corpo me traz infelicidade, irei destruí-lo, seja pela ascese, seja pelo suicídio, prostituição ou consumo de drogas. Se meu corpo traz felicidade, irei embelezá-lo, expô-lo como troféu e dedicar-me ao seu prazer. Em todo caso, nada disso depõe contra a moralidade, pois o corpo não sou Eu, mas uma coisa.
Se a verdade provém do Deus interior, ela é algo subjetivo. Entretanto, é um subjetivismo que não se restringe ao portador. Quando a verdade deixa de ser um patrimônio comum, ela necessariamente se torna um elemento coercivo, porque é próprio da verdade a busca pela legitimação. Como a legitimação depende do Outro, este se torna área de atuação, receptáculo, plateia. Se o Outro se recusa a legitimar a minha verdade, como coisa que é, deve ser eliminado. Daí toda a intolerância que caracteriza o paganismo. As pessoas são humilhadas, excluídas, desconsideradas e até mortas pelo simples fato de não legitimarem a verdade alheia. Para o pagão, o Outro não é uma pessoa, mas aquilo que legitima ou não seu modo de pensar. Se legitima, permanece, porque o pagão precisa de um espelho onde contemplar-se. Se não legitima, deve ser descartado como traste inservível e até como ameaça à sua subsistência.
Mas por que a verdade pessoal precisa ser legitimada pelo Outro? É devido às suas implicações morais. A moralidade é uma manifestação da verdade que precisa ser legitimada pelo Outro, já que envolve aprovação e condenação, coisas que somente o Outro pode fazer. Moral é aquilo que o Outro aprova. Imoral é aquilo que o Outro desaprova. De qualquer forma, o Outro é necessário para autenticar a moralidade. Mesmo quando nos julgamos, é como Outro que nos julgamos, como olhar externo sobre nós mesmos. E é por causa da legitimação moral, que a verdade subjetiva busca impor-se sobre o Outro. Não é suficiente que eu pense assim ou me comporte assim, eu quero que o Outro me aprove. Se não o fizer, irei me sentir imoral. Se me sentir imoral, serei infeliz. É por isso que o Outro deverá legitimar a minha verdade, caso contrário deverá ser banido da minha vista.
Diante do exposto, deve-se concluir que o pagão é incapaz de amar o Outro. Ele somente se ama. Seu Deus não está fora de si, mas dentro, e é para dentro que toda a razão, afetividade e espiritualidade se voltam.  O Outro é apenas um constituinte do cosmos, algo que está ao seu dispor.
Na postagem seguinte, iremos tratar sobre a cosmovisão cristã, que é a contraparte do paganismo. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


sábado, 21 de outubro de 2017

O QUE É NECESSÁRIO PARA SER CRISTÃO?

"Visto que dizemos: a fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e sim quando incircunciso" (Romanos 4:9-10).

A coisa que o diabo mais odeia no mundo é a pregação da justificação somente pela fé. Desde o início, ele opõe as obras à fé e estabelece uma antítese onde não há. Sua estratégia é fazer com que fé e obras pareçam coisas que se excluem e jogar uma contra a outra.
Não há uma antítese entre fé e obras. As obras manifestam a fé, assim como o calor manifesta o fogo, a obra revela o autor, o efeito indica a causa. Quando o diabo faz um ilusionismo e contrapõe fé e obras, as obras saem com a primazia, pois elas são visíveis. Mas que tipo de obra ganha primazia? Não aquela que é um continuum com a fé, mas aquela que está dissociada dela e que é condenável perante Deus, porque "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hebreus 11:6). 
Então veja que o diabo tem um plano muito bem estruturado. Por meio desse plano, ele quer transformar a oferta de Caim em uma obra aceitável perante Deus. 
Quando dissocio a obra da fé, eu tomo a obra como algo intrinsecamente bom e aceitável perante Deus. Por mais que trabalhe minha argumentação, é inevitável que a obra assuma um caráter bom toda vez que me disponho a contrapô-la à fé. Ou a obra é expressão da fé e aceitável por causa dela, ou a obra é boa em si mesma. Não é possível uma conclusão diferente dessas duas, por mais hábil que um orador seja.
Pior ainda: quando a obra é contraposta à fé, conclui-se que a fé é algo ruim. Pois se uma obra inerentemente boa se opõe à fé, é evidente que a fé não é boa. Não é razoável opor algo bom a algo bom. Ou fé e obras caminharão juntas ou irão combater-se e mutuamente destruir-se. Não há outra possibilidade.
Já no tempo dos apóstolos, houve a necessidade de enfatizar a pregação da fé ou das obras, a depender do abuso que surgia. Entre os judeus convertidos que defendiam a primazia das obras, São Paulo pregou a fé. Entre os libertinos que defendiam a primazia da fé, São Tiago pregou as obras. Depois dos apóstolos, com os gnósticos vivendo uma vida dissoluta e fazendo-se passar por cristãos, os pais foram obrigados a enfatizar as obras. Mas a verdade é que fé e obras não devem andar separadas, pois se pertencem. Separar fé e obras é o mesmo que separar substância e acidentes, só é possível no âmbito da intelectualidade. 
Abraão foi justificado por Deus quando creu, antes de ser circuncidado. Noé também foi justificado sem a circuncisão. Abraão e Noé foram justificados sem o sábado e as cerimônias de Moisés. Ambos sequer eram judeus. Que relevância esse antigo argumento tem para os nossos dias? 
Muitos pensam que ser cristão é aderir à ortodoxia, batizar-se, receber a Eucaristia e penitenciar-se. Há muitos que creem ser necessário aceitar Jesus e confessá-lo perante os homens. Para essas pessoas, a fé não é suficiente, são necessárias obras. Mas que tipo de obra é essa que é desejável por si só? Querem apartar os acidentes da substância, separar o efeito da causa e pior: transformar a criatura em criador. Contra essas pessoas que vêm sobre nós, dizendo: Você não pertence à Igreja porque não foi batizado por nós, ou porque não recebeu a verdadeira Eucaristia de nós, devemos clamar: Idólatras, vocês transformam a verdade de Deus em mentira, adoram e servem à criatura em lugar do Criador (Romanos 1:25).
Circuncisão e sábado, se compreendidos como algo bom em si mesmo, descontextualizados da fé, tornam-se ídolos, simulacros da verdadeira circuncisão e do sábado. Também o Batismo e a Eucaristia, quando apartados da fé, tornam-se igualmente estátuas de barro, reproduções dos verdadeiros sacramentos. Isso porque é impossível separar fé e obras. 
Se eu disser que, além da fé, é necessário ser batizado, estou necessariamente substituindo o verdadeiro Batismo, que é obra de Deus e indissociável da fé, por um falso batismo, um ídolo, uma obra humana que é boa em si mesma. Um batismo que pretende complementar a fé e que, portanto, é bom em si mesmo, não é o verdadeiro Batismo, mas um ídolo. O mesmo raciocínio eu posso transportar para a Eucaristia, para a confissão, para a oração e para qualquer obra que a Igreja realiza.
Mas se fé e obra existem como coisas indissociáveis, é evidente que a Igreja não deve ser identificada por suas obras. É possível que as obras sejam ídolos, por estarem desprovidas de fé. Portanto, a identidade da Igreja não está na ortodoxia, no Batismo, na Eucaristia ou na confissão, mas sim na fé que resulta em ortodoxia, Batismo, Eucaristia e confissão. Sendo assim, ser Igreja é um mistério, vai muito além do que se pode ver.
Que sinal é proposto então para a Igreja? Só pode haver um sinal: a Palavra. Uma vez esteja a Palavra em uma sociedade humana, é impossível que não haja fé ali. E se há fé, há verdadeiras obras, porque fé e obras são inseparáveis.
Portanto, a identidade da Igreja não está na circuncisão, no sábado, no Batismo, na Eucaristia, em qualquer tipo de rito, em qualquer boa obra, mas na Palavra de Deus, de onde provém a fé, que necessariamente resulta em obras. Se se prega a Palavra de Deus, é certo que há fé. E se há fé, é certo que há sacramentos verdadeiros e boas obras, isso independentemente da sucessão apostólica, do papado e da ortodoxia.
Ser Igreja é um mistério que nem mesmo o diabo consegue decifrar. É por isso que a Igreja prevalece sobre as portas do inferno, apesar das inúmeras divisões que ele fomenta.
Para ser cristão, não é necessário mudar de igreja, acatar uma ou outra tradição, sujeitar-se ao papa, receber um novo batismo e comungar a verdadeira eucaristia. Não, tudo isso é idolatria! Para ser cristão é necessário tão somente crer.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

IDEOLOGIA DE GÊNERO E A BÍBLIA

Estamos sendo assombrados pela ideologia de gênero, que é uma reação exacerbada a um outro demônio social, que é a exploração da mulher. Por isso, é necessário que nós, cristãos, nos voltemos às Escrituras para compreendermos o que é ser homem e mulher perante Deus e no cosmos. 


É de todos sabido que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Do homem, Deus criou a mulher. Entretanto, a criação da mulher aparece no relato bíblico como extensão da criação do homem e não como uma criação à parte. Ao criar a mulher, Deus prossegue na criação do homem, de maneira que a criação do homem é concluída quando a mulher é criada.
As Escrituras também nos ensinam que a mulher é idônea ao homem. Isso significa que a mulher é capaz de realizar tudo aquilo que o homem realiza, segundo as contingências de seu corpo. E aquilo que só diz respeito a ela, como a concepção, aparece como complemento do homem ("auxiliadora") e não como rival. É assim que a mulher foi criada por Deus e assim devemos compreendê-la. 
Deus é essencialmente Ira e Misericórdia. Ambas as manifestações de Deus dizem respeito à mesma essência e entre elas não há conflito, mas complementaridade. Também sabemos que primeiro Deus revela sua Ira, para depois agir com Misericórdia. Em outras palavras, é da Ira que sai a Misericórdia. A partir disso, pode-se depreender que o homem é imagem da Ira de Deus, de onde provém a mulher, que é imagem da Misericórdia. Entre homem e mulher, ambos tomados juntos como imagem única de Deus, há uma relação análoga à que existe entre Ira e Misericórdia na essência de Deus.
Sem dúvida, o homem sem a mulher não é imagem de Deus. O homem precisa da mulher para compor a imagem de Deus. Por isso é que Moisés, o pai de todos os filósofos, afirma: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; HOMEM E MULHER os criou" (Gênesis 1:27). 
Da maneira como a mulher foi criada, ela é um complemento idôneo do homem, tão inteligente, forte e capaz quanto ele. O que diz respeito somente à mulher é complemento do homem e vice-versa. Da união entre homem e mulher surge O HOMEM. Essa verdade é sinalizada pela procriação, em que a união de homem e mulher resulta em um novo homem.
Olhamos, porém, para a figura da mulher e não vemos isso. Pelo contrário, o que enxergamos é vulnerabilidade. Uma mulher muito dependente do homem, insegura, que carrega a casa nas costas, que é explorada de todas as maneiras possíveis e emocionalmente lábil. Somos tentados a pensar que a mulher é assim por natureza, mas isso não é verdade. Tudo isso que enxergamos de ruim na mulher é resultado ou consequência do pecado.
É da tensão gerada pela exploração da mulher que surgiu a ideologia de gênero, como tentativa de solucionar um problema. No entanto, por ser uma proposta reducionista e extremista, ela se torna um problema pior ainda. A mulher não precisa deixar de ser mulher para fugir à exploração. Pelo contrário, é necessário que a mulher seja empossada de sua verdadeira condição para resistir.
As feministas querem resolver o problema da mulher acabando com a mulher. Sabemos que esse não é o melhor caminho. Além disso, as feministas erram ao buscar a solução dentro do pecado. A única solução é o retorno da mulher ao que é plano de Deus, que chamamos de santificação. 
Ao propor a santificação, a Igreja não está sendo simplista. Na verdade, ela está buscando a solução naquilo que antecede o pecado, ou seja, ela está um passo à frente das feministas.
Se de fato queremos revolucionar a educação de nossos filhos, devemos ensinar-lhes desde cedo o temor do Senhor. Devemos propor-lhes o caminho da santificação como um retorno ao que Deus quer para nós, não como uma coleção de regras a serem observadas de maneira irrefletida. Devemos ensinar nossos filhos sobre o que são: homem e mulher, imagem de Deus quando unidos, não quando separados. Que a mulher é, por natureza, capaz, tanto quanto o homem. Assim produziremos mulheres de verdade, mulheres santas, que são fortes, hábeis, tanto quanto os homens, mas seguras de si, não rivais dos homens.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A EUCARISTIA DE SÃO JUSTINO MÁRTIR - PARTE 2

"Deus, portanto, testemunha que lhe são agradáveis todos os sacrifícios que lhe são oferecidos em nome de Jesus Cristo, os sacrifícios que este nos mandou oferecer, isto é, os da Eucaristia do pão e do vinho, que os cristãos celebram em todo lugar da terra. (...) Concordo que as orações e ações de graças feitas por homens dignos são os únicos sacrifícios perfeitos e agradáveis a Deus. São justamente apenas esses que os cristãos aprenderam a oferecer na comemoração do pão e do vinho, na qual se recorda a paixão que o Filho de Deus sofreu por eles" (São Justino, Diálogo com Trifão, Editora Paulus).



São Justino mártir, em harmonia com seus contemporâneos, entendia a Eucaristia como sendo um novo sacrifício, um sacrifício universal de ação de graças, muito superior aos da Antiga Aliança. Essa visão sacrifical é, de fato, uma doutrina católica, que nós, luteranos, não devemos temer, desde que bem explicada e entendida.
Para São Justino, a Eucaristia não é uma obra que se presta a Deus com o objetivo de obter mérito ou indulgência. Não é um sacrifício que se rende a um Deus irado com o intuito de reconciliá-lo. Além disso, a oferta não consiste em pão e vinho, corpo e sangue de Cristo. Para São Justino, a oferta consiste em orações e louvor. Ele, inclusive, deixa claro que os ÚNICOS sacrifícios agradáveis a Deus são estes. 
Consoante a isso, pode-se afirmar que a oferta eucarística não é propriamente do sacerdote, mas de toda a Igreja que, em uso de seu sacerdócio comum, ora e louva. 
A razão de orarmos e louvarmos não é a obtenção de méritos perante Deus. A nossa pobreza e o amor ao Cristo que se doa por nós, para nos enriquecer, devem ser a verdadeira motivação a participarmos do pão e do vinho, do corpo e do sangue.

Quero concluir a reflexão de hoje com a Apologia da Confissão de Augsburgo


"E este é o uso principal do Sacramento, no qual se torna aparente quem é idôneo para o Sacramento, a saber, as consciências aterrorizadas, e de que maneira devem fazer uso dele. TAMBÉM É ADICIONADO O SACRIFÍCIO. Pois há pluralidade de fins para uma mesma coisa. Depois que a consciência, erigida pela fé, percebeu de que terrores é libertada, então, deveras, agradece seriamente pelo benefício e pela paixão de Cristo, e faz uso da própria cerimônia para louvor de Deus, a fim de, com essa obediência, mostrar gratidão, e testemunha que magnifica os dons de Deus. DESSA MANEIRA, A CERIMÔNIA SE TORNA SACRIFÍCIO DE LOUVOR" (Artigo XXIV, parágrafo 74).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet. 

sábado, 30 de setembro de 2017

A EUCARISTIA DE SÃO JUSTINO MÁRTIR - PARTE 1

São Justino, mártir do século II, escreveu o seguinte, a respeito da Eucaristia:

"Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos(1) e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração (2) e vive conforme o que Cristo nos ensinou.
De fato, não tomamos coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim (3) nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo (4) que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças - alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne (5) - É (6) a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado" (I Apologia, Editora Paulus).



(1)Temos aqui uma clara referência à comunhão fechada. A Eucaristia é uma comunhão entre pessoas que comungam a mesma fé.

(2) São Justino confessa que o Batismo não é um ato simbólico ou um simples selo, mas um rito eficaz, que opera a regeneração e a remissão de pecados. Não o rito em si, obviamente, mas a Palavra de Deus que está unida a ele. É por isso que S. Justino usa a palavra: "Traz". O Batismo "traz" a Palavra, que opera a regeneração e a remissão de pecados. Não trouxesse ele a Palavra, não operaria nada. Mas como traz a Palavra, opera tudo.

(3) São Justino relaciona o dogma da Encarnação do Verbo à presença substancial de Cristo na Eucaristia. Duvidar da presença real de Cristo na Eucaristia significa duvidar da Encarnação do Verbo. 

(4) Não é a fé do comungante que opera o milagre eucarístico, muito menos o sacerdócio. Quem opera o milagre é o Verbo de Deus.

(5) Nosso santo Pai mantém intacta a substância do pão e do vinho. Cristo está presente de fato na Eucaristia, com seu verdadeiro corpo e verdadeiro sangue, mas sua presença não altera a substância dos elementos. Ele diz que o pão e o vinho são transformados (ou seja, digeridos) e nutrem o corpo, exatamente porque permanecem o que são, não obstante Cristo esteja neles.

(6) O pão É o corpo de Cristo. O vinho É o sangue de Cristo. Não devemos tomar "É" por "SIGNIFICA". Os santos Pais tiveram a oportunidade de corrigir uma suposta omissão ou falha dos apóstolos, colocando um "SIGNIFICA" no lugar de "É", mas não o fizeram. E não o fizeram porque não pensavam assim. Portanto, a Igreja, em seus primórdios, interpretava literalmente a Palavra da Instituição.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 17 de setembro de 2017

E POR FALAR EM SANTA CRUZ...

Dia 14 de setembro é a data que a Cristandade reserva para a exaltação da Santa Cruz. Neste ano, a celebração se deu dentro de um outro contexto: a profanação da Santa Cruz pela exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", encerrada antes da hora devido ao seu teor fortemente agressivo não só contra a fé cristã, mas contra o patrimônio comum da moralidade. E se a finalidade de quem reuniu as obras da exposição é nos fazer pensar, que pensemos então, como cristãos que somos, em como nossa sociedade pagã vêm tratando os símbolos ou ícones. 


No mundo ocidental, cada vez mais tem crescido a aversão contra os símbolos ou ícones, que vêm sendo compreendidos como instrumentos de dominação e opressão. Cada símbolo ou ícone representa uma instituição e toda instituição é uma manifestação de poder. Entretanto, poder é visto de maneira preconceituosa, unilateral e pejorativa, porque é compreendido apenas como força coerciva e excludente. A família, o governo, a Igreja, todos os símbolos ou ícones sociais vêm sendo alvo de dura perseguição por parte de grupos que querem aniquilar toda e qualquer forma de poder. Em outras palavras, o poder é visto como um mal social, que deve ser combatido.
Filho se volta contra os pais, esposas contra os maridos, leigos contra ministros, alunos contra professores, cidadãos contra o Estado. Quem detém o poder é visto como inimigo e não como colaborador.
A Santa Cruz é um símbolo do verdadeiro poder. Diferentemente do que é propagado por muitos grupos, o poder não é uma força coerciva e excludente, mas serviço, o que a Cruz vem mostrar muito bem. Porque foi numa cruz que Deus serviu à humanidade na carne de seu Filho. Não nos forçou a nada, não excluiu ninguém, apenas usou o seu poder para vencer a morte e o inferno por nós e para nós.
As instituições em geral mais servem que coagem. Hoje, que sou pai, vejo que sirvo muito mais que obrigo. Todos reclamamos do governo, e com razão! Mas ai de nós se ele não existisse. A Igreja é vista como ícone de poder e dominação, mas é ela que nos serve na hora da morte, quando nenhuma ideologia terrena nos presta auxílio e estamos sozinhos. É ela que tem ido ao encontro dos enfermos e excluídos, não com uma nova ideologia, mas com médicos, professores, enfermeiros, medicamentos, pão e consolo. Um professor está servindo aos alunos com seu conhecimento, via de regra mal pago e desvalorizado pela sociedade.
Poder é um privilégio tão grande que muitos não querem. Os jovens não querem casar e ter filhos, não querem se envolver com a política, o que é estranho, pois muitos afirmam que poder é um privilégio e é do ser humano querer ser privilegiado. Então, por que não querem? Porque há um custo, que não querem pagar. Quem detém o poder é obrigado a servir e isso eles não querem.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 10 de setembro de 2017

FÉ E CRENÇAS SOBRE A EUCARISTIA

"Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós formamos um só corpo, embora sejamos muitos, pois todos participamos do mesmo pão" (1 Coríntios 10:16-17).

O propósito desta publicação é analisar sucintamente a fé luterana acerca da Eucaristia e as crenças que coexistem com ela.
A visão verdadeiramente luterana acerca da Eucaristia é chamada de "união sacramental". Nós professamos que a Palavra da instituição deve ser interpretada literalmente. O pão se torna o corpo de Cristo, o vinho se torna o sangue de Cristo, sem que pão e vinho deixem de existir. 
O luteranismo autêntico rejeita a ideia de metabolismo ou transformação do pão em corpo e do vinho em sangue, por não haver respaldo escriturístico para isso. São Paulo nos deixa claro que o pão é a "comunhão do corpo" e que o cálice é a "comunhão do sangue". Nossa confissão é que o verdadeiro corpo de Cristo une-se ao pão de maneira milagrosa, assim como o sangue ao vinho. Não é uma presença local, mas sublime, inacessível à razão humana. Entretanto, essa presença não é menos verdadeira e concreta que a presença local. 
Nós, também, enfatizamos que a participação do corpo e do sangue é para a remissão dos pecados. Por meio da Eucaristia, recebemos o fruto do sacrifício de Cristo, que é a remissão dos pecados e a vida eterna. Para nós, a Eucaristia é para perdoar e salvar, ela não tem outro propósito.


A primeira crença envolvendo a Eucaristia é o simbolismo. Por nenhum outro motivo, senão pela incredulidade, alguns deram uma interpretação alegórica à Palavra da instituição. Para eles, o pão é um símbolo do corpo, o vinho é um símbolo do sangue. Não entendemos ainda qual a base dessa analogia, porque os defensores do simbolismo até hoje não concluíram se o pão simboliza o corpo natural de Cristo ou a Igreja. 
Quando dizem que ele simboliza o corpo natural de Cristo, recorrem a S. João 6, onde Jesus se apresenta como "o pão da vida", uma clara alusão à sua Palavra. Jesus afirma, nessa pregação, que "AS PALAVRAS que eu vos tenho dito são espírito e são vida" (S. João 6:63). Portanto, o "pão da vida" não é propriamente a Eucaristia, mas tudo aquilo que Cristo diz.
Por outro lado, quando afirmam que é a Igreja, recorrem a 1 Coríntios 10:16-17, querendo defender a ideia de que corpo, nesse texto, é a Igreja. 
Bem, glosar esse texto não é uma tarefa tão simples, como pretendem. Quando S. Paulo ensina que "o pão que partimos é a comunhão do corpo", ele se refere ao corpo de Cristo ou à Igreja? É necessário que esse ensino de S. Paulo seja harmonizado com a instituição da Eucaristia. Cristo deixou muito claro que o pão partido é seu corpo OFERECIDO, não a Igreja (S. Lucas 22:19-20). O corpo que Cristo deu aos apóstolos é o mesmo corpo que foi OFERECIDO na cruz, algo que a Igreja não fez. Portanto, é de se esperar que S. Paulo tenha em mente o corpo de Cristo que foi oferecido na cruz, não a Igreja. Além disso, como introduzir a "comunhão do sangue" na alegoria da Igreja?
Já no versículo 17, São Paulo afirma que os coríntios são um só corpo porque participam do mesmo pão, que é a comunhão do corpo de Cristo, o mesmo corpo que foi entregue na cruz. A ideia central do texto é que há uma unidade entre quem cultua e quem é cultuado. Há uma unidade entre os pagãos e os deuses que eles cultuam, assim como há uma unidade entre os cristãos e Cristo. Vejam que o texto não prova, de forma alguma, que o pão seja uma analogia da Igreja. São Paulo não faz uma comparação entre a unidade da Igreja e o pão, mas estabelece que a unidade da Igreja é CONSEQUÊNCIA da participação do pão, que é o corpo de Cristo, o corpo OFERECIDO.
Quando questionado sobre qual o proveito da Eucaristia, o simbolista não tem algo muito concreto a dizer. Afirma algo vago, como "fortalecimento da fé", porque não acredita que a Eucaristia tenha o poder de salvar. Pudera, que ato simbólico teria o poder de justificar? Ninguém pode ser justificado com base em obras. Tudo o que acontece na Eucaristia para um simbolista está dentro do âmbito da intelectualidade, que é uma obra humana. Por esse motivo, ele não tem segurança alguma naquilo que está fazendo, não é algo em que pode confiar, pois só há o agir humano, no qual tudo é incerto.
Se o simbolista não tem o respaldo escriturístico, ele também não tem a história da Igreja e a pregação dos Pais a seu favor. Muito pelo contrário, a história da Igreja e a pregação dos Pais testemunham que Cristo está substancialmente presente na Eucaristia. Já no segundo século, Santo Inácio de Antioquia, em sua Epístola aos Esmirniotas, afirmou:

"Eles se afastam da Eucaristia e da oração, porque não professam que a Eucaristia É a carne de nosso Salvador Jesus Cristo, que sofreu por nossos pecados e que, na sua bondade, o Pai ressuscitou".

Um simbolista prefere dizer que a Igreja esteve sempre errada, desde o seu início, desde o período apostólico, a admitir seu erro.


Desamparados pelas Escrituras e pelos Santos Pais, alguns simbolistas foram obrigados a colocar o corpo e o sangue de Cristo substancialmente na Eucaristia, mesmo a contragosto. Foi então que surgiu o espiritualismo.
O espiritualismo afirma que comer o pão é participar espiritualmente do corpo de Cristo, que está localmente no Céu. Igualmente, beber o vinho é participar espiritualmente do sangue de Cristo, que está localmente no Céu. 
Se o simbolismo ao menos tentou provar-se como verdade por meio das Escrituras, o espiritualismo pouco se interessou por isso. Os argumentos dos espiritualistas são os mesmos dos simbolistas, eles recorrem aos mesmos textos e apresentam a mesma exegese. Eles não se sentem movidos a ter que provar sua opinião pelas Escrituras. Contentam-se com a razão, que se deixa inspirar por Platão. Para os espiritualistas, é a autoridade da razão que autentica sua crença, não há necessidade de se recorrer às Escrituras.
O espiritualismo é uma manifestação do neoplatonismo cristão, que despreza a matéria como algo ruim e almeja a imaterialidade. O comungante espiritualista é movido a intelectualmente abandonar a matéria corruptível e elevar-se ao Deus incorruptível. Tudo é permeado pela intectualidade e pela contemplação. Embora afirme que é uma comunhão espiritual, trata-se de um claro esforço intelectual de sublimar a matéria e elevar-se ao mundo da incorruptibilidade, que é o Céu.
Debater o espiritualismo com as Escrituras não é um problema em si, porque eles não querem provar seu ponto de vista com base nelas, mas na razão. Então, que fiquem com a razão e continuem batendo na tecla que não é razoável que coisas tão sublimes se rebaixem a esta nossa realidade precária. Só cuidem para que não tragam esse mesmo raciocínio para o dogma da Encarnação do Verbo, onde é impossível um rebaixamento mais profundo. Quanto a nós, luteranos, ficaremos com o Sola Scriptura.
Por falar em dogma da Encarnação, é notória a dificuldade dos espiritualistas a respeito, porque não admitem que Cristo seja sempre Deus e homem. Estão dispostos a admitir que Cristo seja Deus e homem em um lugar que chamam de Céu. Fora desse lugar, Cristo não é humano. Portanto, há duas pessoas em Cristo: uma humana e outra divina, que se sobrepõem somente no Céu, de maneira local. Em resumo: são todos nestorianos!
As Escrituras nos ensinam que Cristo está à direita de Deus (Efésios 1:20) e no Céu (Atos 3:21). Por direita de Deus devemos entender a sua onipotência (Salmo 118:16), que está em todo lugar e, ao mesmo tempo, em lugar algum. A direita de Deus não está sujeita ao tempo e ao espaço, não é um lugar, é uma realidade incorpórea. Também não tenho nenhuma prova escriturística que o Céu seja um lugar, como os neoplatônicos pretendem desde sempre. Mas supondo que estejam certos, que o Céu seja um lugar específico, o que devo alegorizar: o Céu ou a direita de Deus? Se for preciso alegorizar, o que não precisamos, que alegorizemos o Céu, porque a direita de Deus é algo muito maior que um suposto lugar. A direita de Deus é um atributo dele e não podemos alegorizar a essência de Deus. 
A pergunta que se segue é: Como pode um homem ser onipresente? Lembremo-nos que esse homem é Deus e tudo pode. Mas deixemos isso para os curiosos, porque não é função da Igreja explicar, somente confessar.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.


quinta-feira, 7 de setembro de 2017

MUITA OU POUCA ÁGUA? EIS A QUESTÃO

O Batismo necessita de dois elementos: a Palavra de Deus e a água. No entanto, o elemento mais importante não é a água, como alguns pretendem, mas a Palavra.Seja a água corrente ou parada, muita ou pouca, haja ou não imersão, quem batiza é Deus, por meio de sua Palavra.


"Quanto ao Batismo, procedam assim: Depois de ditas todas essas coisas, batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Se você não tem água corrente, batize em outra água; se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente. Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Didaqué, Padres Apostólicos, Editora Paulus).


Pode-se reduzir a água, contanto que não se reduza o valor da Palavra.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

FAÇAMOS O HOMEM À NOSSA IMAGEM

"Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus" (S. João 3:3).

Nascido da semente da mulher, ou seja, sem colaboração do homem, Jesus é a criação refeita de Deus. Nele se encontra o verdadeiro homem, com o qual Deus está unido em uma só pessoa. Nele está a dignidade humana, que deriva da dignidade do próprio Deus. É ele a verdadeira Imagem de Deus, aquele no qual habita toda a plenitude da Divindade, aquele homem que se pode chamar de Deus, porque de fato é. Adão, da maneira como foi criado, não era o protótipo da verdadeira humanidade, mas a prefiguração do Senhor Jesus. O protótipo da verdadeira humanidade é Jesus.
O primeiro indício da Encarnação de Deus se encontra no ato criador do homem: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança" (Gênesis 1:26). Deus tinha em si mesmo o modelo para a criação do homem, porque ele próprio haveria de se encarnar no tempo, embora seja homem desde sempre, na eternidade, onde não há antes ou depois. 


O propósito redentor de Deus está intimamente conectado à sua própria humanidade. O verdadeiro homem se encontra unido pessoalmente a Deus, imerso no mistério da Trindade, compartilhando a Justiça de Deus e tudo aquilo que lhe é próprio. O desejo de Deus para com a humanidade caída é elevá-la à dignidade que ele lhe conferiu desde a eternidade. Do Antigo ao Novo Testamento, toda a atividade de Deus na história humana visa a isso. 
A glória de Deus está intimamente conectada à glória do homem. Por isso mesmo, Deus clama que o louvemos por meio de obras de misericórdia, porque quando o homem é honrado e dignificado, Deus é honrado e dignificado. Por outro lado, quando o homem é profanado, Deus é igualmente profanado. 
Oseias prega: "Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos" (Os 6:6). E Miqueias: "Agradar-se-á o SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma? Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus" (Mq 6:7-8). Por fim, Jesus: "O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" (S. Mateus 25:40).
Portanto, Deus submete todo o conhecimento acerca dele ao conhecimento do homem e todo o seu serviço ao serviço do homem. Qualquer prática religiosa que se volta para um Deus não encarnado ou transcendente é ímpia. A verdadeira piedade busca Deus na concretude da humanidade e não na especulação ou meditação solitária. Quer conhecer Deus? Então conheça o homem, porque é no homem onde Deus está e onde ele quer ser encontrado. Não é no campo das ideias, mas no seio da Virgem. Não é na abstração, mas na Igreja, no Sagrado Ministério e nos sacramentos.
Como íamos falando, o propósito redentor de Deus está atrelado ao seu conhecimento da humanidade. Ele quer que nossa humanidade seja purificada de suas mazelas até configurar-se à verdadeira humanidade, que está nele mesmo. É como se o "façamos o homem à nossa imagem e semelhança" se estendesse no tempo e passasse por toda a história humana, por todas as eras, em que Deus revela seu desejo de fazer o homem à sua própria semelhança, tendo Jesus como modelo eterno.  
O novo nascimento pregado a Nicodemos nada mais é do que ser criado por Deus, não segundo o modelo de Adão, mas de acordo com o modelo da verdadeira humanidade, que é Jesus. A Palavra: "Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer da ÁGUA e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus" (S. João 3:5) vem nos mostrar que o início da obra redentora de Deus está no Batismo, na água que é veículo do Espírito e que nos enche dele. O Batismo não é um ato momentâneo, mas é o princípio de uma nova criação, porque ele nos configura ao modelo de Cristo, o que não ocorre da noite para o dia, mas terá sua consumação somente na ressurreição dos mortos. 


Mas a pregação ouvida por Nicodemos vai além da ideia de um simples aperfeiçoamento humano perante Deus, que aliás é uma ideia muito popular entre os pagãos. Nicodemos ouve o seguinte: "O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é Espírito" (S. João 3:6). Quem nasce de Deus é Deus, compartilha de sua Justiça e dignidade, ainda que não possamos entender o que isso significa e embora isso se dê no âmbito da fé, pois tudo o que vemos em nós é precariedade. Eu vejo em mim um animal, mas Deus me enxerga como a si mesmo.
Deus cumpre o seu "façamos o homem à nossa imagem e semelhança" por meio do Santo Batismo. Entramos na água como animais, saímos dela como Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus em uma pessoa indivisa. Perante nós mesmos, é um nascimento, porque temos toda uma vida de penitência pela frente. Mas perante Deus já somos o que ele gostaria que fôssemos, desde os tempos eternos: Espírito!

Santo Ireneu: "Nisto Deus difere do homem: Deus faz, o homem é feito. Aquele que faz é sempre o mesmo e quem é feito tem necessariamente início, meio, aumento e desenvolvimento. Deus faz o bem, o homem recebe o bem. Deus é perfeito em tudo, igual e idêntico a si mesmo, é por inteiro luz, pensamento, substância e fonte de todos os bens, enquanto o homem recebe o progredir e o crescer para Deus. Enquanto Deus é sempre o mesmo, o homem que se encontra em Deus progredirá sempre em direção a Deus" (Contra as Heresias, volume IV).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

SANTIFICAÇÃO: DA AUTONOMIA À UNIDADE

"A letra mata, mas o espírito vivifica" (2 Coríntios 3:6).

Quando se fala em Lei, a primeira coisa que nos vem à mente é o quê? Regras. E no contexto religioso, culpa e condenação. Este é o imaginário humano acerca da Lei. Nós temos uma tendência a considerá-la um mal necessário.
Embora haja divergências dentro do luteranismo acerca desse assunto, a Lei é algo que integra a razão e, portanto, faz parte da humanidade. Quando Deus criou os homens à sua imagem e semelhança, a Lei foi igualmente criada. Deus nos criou seres morais, tomando a si próprio como modelo de moralidade. Então, um Deus moral criou o homem à sua imagem e semelhança, igualmente moral. 
As Escrituras nos chamam de deuses, por nossa capacidade de refletir moralmente e julgar: "Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo" (Salmo 82:6). Portanto, o homem foi criado por Deus como um deus, como um ser moral, que ama e busca o que é bom e repele o que é mal. Isso dá à Lei um significado ontológico. É impossível ser um homem sem a Lei.
Como o homem é imagem de Deus, tudo aquilo que o constitui é bom, porque Deus é bom. Logo, a Lei é algo muito bom. Não devemos enxergá-la como um mal necessário. 
O pecado, no entanto, corrompeu todas as faculdades humanas, colocando-as em rebeldia contra Deus. De repente, a imagem de Deus se voltou contra ele, o bom se voltou contra o bom, o justo se voltou contra o justo. E então o que era imagem deixou de ser, o que era bom se tornou mau, o que era justo se tornou injusto. O bom não pode trabalhar contra a bondade, mas a favor dela. Se o bom se volta contra a bondade, então deixa de ser bom e torna-se mau. Assim, enquanto o homem foi expressão da justiça, ele permaneceu justo. Quando imaginou ter justiça própria e, com ela, opôs-se à justiça de Deus, tornou-se injusto. 
A origem do pecado está, portanto, na autonomia humana. Quando o ser humano se sentiu um deus, um ser bom e justo, não mais a expressão de Deus, ele opôs sua justiça à Justiça, sua bondade à Bondade, tornando-se injusto e mau. Agora, portanto, temos duas justiças, duas bondades, que se antagonizam. Não há mais cooperação, mas rivalidade, pois há uma lei contra a Lei. 

Tal foi a desordem estabelecida, que o ser humano é mau ao ser bom e injusto ao ser justo, pois não colabora com a bondade e a justiça de Deus, ele as antagoniza. Não é mais expressão de Deus, mas seu rival. O homem agora é um deus que peleja contra Deus. "Espantai-vos disto, ó céus, e horrorizai-vos! Ficai estupefatos, diz o SENHOR. Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm a água" (Jeremias 2:12-13).
Aqui está o motivo pelo qual o homem não pode mais ser justificado pela Lei. É que ele não consegue agir de acordo com a Lei de Deus, mas de acordo com sua própria lei e contra Deus. A perversão do homem não está em sua natureza ou substância, mas no fato de ser uma natureza ou sustância autônoma, que não pode colaborar com Deus. E se não pode colaborar, é certo que rivaliza. Hoje, por mais que um ser humano se esmere por ser bom, ele necessariamente o fará contra a Bondade.
É por isso que as Escrituras se opõem à ideia de livre-arbítrio, porque o ser humano, enquanto ser autônomo, não pode realizar nada de bom, pois sua bondade sempre será inimiga da verdadeira Bondade, que está em Deus. Ele não pode mais decidir-se por Deus, pois é autônomo. É um ser que comparece perante Deus, um rosto contra o outro, uma lei contra a outra, uma justiça contra a outra. Ao nos chamar à responsabilidade, Deus nos mostra que estamos contra ele.
A decisão de Deus está em nos fazer retornar à sua comunhão, para que não mais sejamos deuses contra ele, mas deuses nele, que o expressam, que partilham da mesma bondade e da mesma justiça, que atuam em perfeita sinergia. Para isso, é necessário que Deus mate nossa autonomia.
Com esse objetivo, Deus primeiro estabelece a heteronomia. Ele quer que nós, enquanto indivíduos, deixemos de lado nossa própria lei e nos sujeitemos à sua Lei. Não quer que cumpramos a nossa lei, mas a dele. Ele ordena que nos tornemos seus colaboradores, sua expressão, o que não nos é possível, enquanto seres autônomos. Portanto, a Lei de Deus se impõe contra a nossa lei. Como não conhecemos mais o caminho da comunhão, enxergamos a Lei de Deus como nossa inimiga, como algo ruim, uma ameaça. A heteronomia nos mostra que estamos contra Deus, mas não nos informa como estar a favor dele e por ele. Se eu transformar a Lei de Deus em várias regras e propor-me a seriamente cumpri-las, ainda assim estarei agindo contra a justiça de Deus, pois perdi o caminho da comunhão. É por isso que S. Paulo chama a Lei de Deus de letra que mata. Ela não é essencialmente ruim, mas eu a vejo ruim porque ela está fora de mim, contra mim e interpela-me o tempo inteiro. Ela não me agrada, porque lança luz sobre a realidade de ser eu um deus que está contra Deus. Ela transforma em mentira tudo o que julgo ser verdade. Ela converte em injustiça aquilo que considero muito justo. Ela me transforma em um diabo, um inimigo de Deus, mas não só quando erro, inclusive quando sou muito bom e justo.
Depois Deus nos reinsere em sua comunhão, por meio da fé. Conforme o homem vai perdendo sua autonomia perante Deus, ele volta progressivamente a expressá-lo. O estado de confronto vai cedendo espaço ao estado de sinergia. Não mais meu olhar se volta contra Deus, mas torna-se oblíquo e evolui para um mesmo olhar. Isso S. Paulo chama de espírito que vivifica. O objetivo de Deus é que haja uma só Lei, um só Deus, uma só Bondade, uma só Justiça.
A comunhão não é algo que posso operar. Deus é o outro, aquele que me responsabiliza, aquele perante o qual estou. Nossa autonomia nos limita a isso e não podemos, por recurso próprio, desvencilhar-nos. É necessário que Deus nos envolva e permeie com sua justiça. É necessário que sejamos um só Deus e uma só Justiça. Definitivamente, não é de nossa alçada algo tão sublime. Por isso, insistimos que não só a iniciativa é de Deus, mas a obra toda. Não sou eu que entro em comunhão com Deus, mas é ele que entra em comunhão comigo. A sinergia existe e é o objetivo último de Deus, mas é impossível que ela coexista com a autonomia. A sinergia só será possível no estado de glória.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.




sábado, 29 de julho de 2017

EUCARISTIA É UM SACRIFÍCIO?

Dando seguimento à reflexão anterior, reafirmamos que somos católicos. Não no sentido de sermos romanos, porque ser católico não é ser romano. Somos católicos porque entendemos que a pregação da Palavra não começou com Lutero, mas muito antes, desde Adão. Cremos que foi por meio do ministério da Palavra que Moisés, por exemplo, tomou conhecimento de tudo o que aconteceu desde a criação do cosmos até seus dias. A própria Bíblia é fruto da pregação da Palavra, o mais excelente. O que não aceitamos é a carne do ministério da Palavra, o catolicismo carnal ou falso catolicismo, que quer estatuir contra a Palavra de Deus. Pelo contrário, queremos purificar nosso catolicismo de tudo isso. O catolicismo tem de ser bíblico!
Assim ensina S. Paulo: "Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja maldito" (Gálatas 1:8). Veja que ele se desautoriza a pregar contra a Palavra de Deus, bem como a todos os outros apóstolos e anjos do céu. De maneira que se um Pai da Igreja, um doutor, um anjo vindo do céu, a própria Virgem Maria, qualquer criatura linda que nos apareça, se ela vier com alguma Palavra que contradiga a doutrina da fé, estamos autorizados a dizer: "Arreda de mim, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus e sim das dos homens" (S. Mateus 16:23). 
Lutero ensina que, no mundo, devemos nos atentar primeiro a quem diz, depois ao que é dito. Mas na Igreja, o contrário deve ser feito: devemos nos atentar primeiro ao que é dito, depois a quem diz, porque nenhum pregador está livre da carne e das tentações do demônio. Se nem S. Pedro esteve livre da carne, não devemos esperar isso de ninguém e manter a Palavra de Deus como padrão de toda a verdade. Cristo nos adverte dos falsos cristos (S. Mateus 24:24), porque o demônio tenta os pregadores ao erro e muitas vezes logra êxito.  
Mas hoje iremos falar sobre a visão eucarística de Lutero e sua relação com o catolicismo tradicional. Veremos um exemplo de como Lutero usa a Palavra de Deus como faca afiada para desossar o catolicismo.
Primeiro, Lutero mantém a presença substancial de Cristo na Eucaristia, porque a Palavra de Deus é clara a esse respeito. Ele ensina que Cristo está no pão e no vinho substancialmente, da mesma forma como esteve no ventre de Maria, na manjedoura e na cruz. Cristo diz: "Isto É o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim" (S. Lucas 22:19). Não é por uma questão de bom senso que devemos estatuir uma alegoria aqui. Se fôssemos nos guiar pelo critério do bom senso, Cristo com certeza haveria de se desencarnar e a Trindade haveria de se fragmentar em três deuses. Se o bom senso fosse nosso mestre, iríamos nos tornar todos arianos. 


Lutero também não coloca a humanidade de Cristo no Céu, mas na destra de Deus, em todo lugar onde Deus está. Isso não é ubiquidade do corpo, como alguns afirmam, mas onipresença. Cristo é verdadeiro homem e sua humanidade é idêntica à nossa, não é onipresente em si mesma. Mas como na pessoa de Cristo a humanidade está fundida na Divindade, ela compartilha dos atributos de Deus e torna-se onipresente. É uma visão bíblica da pessoa de Cristo: "Disse o SENHOR ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés" (Salmo 110:1). Aqui Lutero também é católico, pois essa interpretação herdamos dos Pais. 
Segundo, Lutero mantém a substância do pão e do vinho, em obediência à Palavra de Deus. São Paulo diz que o pão partido é a comunhão do corpo de Cristo, assim como o cálice abençoado (1 Coríntios 10:16). A ideia de transformação do pão em corpo e do vinho em sangue não tem respaldo escriturístico. O pão não se transforma em corpo, mas é a comunhão do corpo. O vinho não se transforma em sangue, mas é a comunhão do sangue. 
A ideia de transformação gerou um novo culto na Igreja, que é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Por causa disso, Lutero teve de recorrer às Escrituras contra os Pais. Quando os Pais pregaram sobre a transformação, com certeza não previam que um dia esse ensino, aparentemente inofensivo, haveria de subsidiar a prática de um culto estranho.
São Paulo afirma que o pão que PARTIMOS é a comunhão do corpo de Cristo. Com base nessa Palavra, o pão é o corpo de Cristo apenas durante o rito eucarístico. O mesmo podemos afirmar acerca do cálice. No entanto, não devemos tratar esse pão e vinho consagrados como pão e vinho comuns, pois se tornaram sagrados quando foram retirados do uso comum para se tornarem Templo do Senhor. Por esse motivo, Lutero proíbe misturar hóstias consagradas com hóstias não consagradas.
Terceiro, Lutero se opõe à ideia de sacrifício para expiação de pecados. Desde os primórdios, como verificamos na Didaqué, a Igreja compreende a Eucaristia como sendo um novo sacrifício, o sacrifício da Nova Aliança. De acordo com os Pais, um sacrifício de louvor, com o qual se bendiz a Deus pelo dom da salvação. Depois, degenerou-se a um sacrifício expiatório, muito semelhante aos sacrifícios dos judeus. 
Aqui jaz uma enorme dificuldade em distinguir Lei e Evangelho. Pois Deus é compreendido como um juiz severo, irado contra nossos pecados, que precisa ser apaziguado por uma obra ou por um sacrifício. Isso gerou uma série de abusos, sobretudo as missas privadas e as missas pelos mortos. Novamente, os Pais não foram capazes de prever as consequências de seu ensino.
A Eucaristia não é uma obra humana pela qual nos tornamos dignos de algo. Ela é uma obra de Deus! É Deus quem efetua a Eucaristia em nós. Nossa participação é passiva ou receptiva, como bem nos demonstram a Virgem Maria e S. João ao pé da cruz. A fé não executa nada, mas somente recebe a misericórdia de Deus. 
Lutero então chega à compreensão que só há um tipo de sacrifício que a fé pode prestar: o sacrifício de louvor. Como diz a Palavra: "Acaso, como eu carne de touros? Ou bebo sangue de cabritos? Oferece a Deus sacrifício de ações de graças" (Salmo 50:13-14). A postura da fé em receber e dar graças é o verdadeiro sacrifício que Deus requer. Mesmo os judeus piedosos, quando ofereciam uma vítima a Deus por seus pecados, não tinham a intenção de apaziguá-lo, mas criam em sua misericórdia e a louvavam. Toda vez que um judeu piedoso sacrificava, ele o fazia em respeito à Palavra de Deus, numa atitude de adoração e louvor. Ele não tinha outra intenção senão a glória de Deus. 
Os judeus ímpios, por sua vez, prestavam sacrifício de obras com o intuito de pacificar a Deus. Eles acreditavam que Deus estava irado e que o sangue do animal sacrificado iria acalmá-lo. Infelizmente, por melhor que tenha sido a intenção dos Pais, a ideia de sacrifício deu margem a essa mesma impiedade. Portanto, a ideia de sacrifício não foi inofensiva e não tem respaldo bíblico algum. Os judeus ímpios ao menos tinham a Palavra de Deus, mas nós não, o que agrava o pecado.


Quando Cristo ordena: "Fazei isto EM MEMÓRIA DE MIM" (S. Lucas 22:19), ele estabelece um sacrifício de louvor aos crentes. Ele quer que o façamos não por medo, ou para obter bens temporais ou eternos, mas EM MEMÓRIA DELE. Isso significa que devemos partir o pão e beber do cálice por estima e amor a Deus, confiantes em sua misericórdia, e não com o intuito de pacificá-lo. A palavra escolhida por Cristo quer suscitar em nós profundo respeito, amor, intimidade e confiança, pois memória é algo que fazemos em relação a quem amamos muito. Ele poderia ter dito apenas "fazei isto", mas quis estimular em nós o amor e a intimidade filiais.

"Pois não serás condenado ou salvo pela doutrina de alguém outro, seja ela verdadeira ou falsa, mas somente por tua própria fé. Portanto, cada qual ensine o que quiser, a ti, porém, compete observar se o que crês te resulta em supremo perigo ou benefício" (Lutero, Como Instituir Ministros na Igreja).

Autoria: Carlos Leão.
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