sábado, 23 de novembro de 2019

O CONCEITO DE ANGÚSTIA (KIERKEGAARD): Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

"Por isso, quem se educa pela angústia em relação à culpa, só há de encontrar repouso na reconciliação".

Kierkegaard é um dos expoentes do pensamento luterano. Talvez ninguém tenha conseguido aprofundar tanto o sentimento luterano quanto ele. Esta sua obra, que irei comentar, é extremamente significativa: O Conceito de Angústia. Todos temos muito a aprender com ela.
O objetivo é abordar a origem psicológica do pecado, visto que a lógica não explica a irrupção do pecado, nem a dogmática, nem a ética; essas ciências analisam o pecado enquanto realidade efetiva. Para Kierkegaard, somente uma análise psicológica pode responder ao que acontece no homem antes de o pecado irromper.

O HOMEM COMO SÍNTESE
O homem é uma síntese de corpo e mente (alma), duas coisas muito contraditórias: o temporal e o eterno, o finito e o infinito. Quem opera essa síntese é o espírito.
Para Kierkegaard, o espírito é a consciência ou a individualidade. Sua nobre missão é conciliar o contraditório em nós, rumo à unidade de ser. Obviamente, não sem algum nível de perturbação ou inquietude.
O espírito avança conforme a individualidade avança. Regride conforme a individualidade regride. Daí a crítica que ele dirige à grande massa de pessoas que vivem como verdadeiros animais, tal é a supressão de espírito nelas.
Aquela pessoa que vive como um animal, só em função do prazer e dos instintos, é uma pessoa pouco ou nada dotada de espírito. Aquela pessoa que vai além do finito e avança em direção ao infinito é uma pessoa muito dotada de espírito.
Este é o ponto de partida.

"O homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém, uma síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo num terceiro. Este terceiro é o espírito. Na inocência, o homem não é meramente um animal. De resto, se o fosse a qualquer momento de sua vida, jamais chegaria a ser homem. O espírito está, pois, presente, mas como espírito imediato, como sonhando. Enquanto se acha então presente é, de certa maneira, um poder hostil, pois perturba continuamente a relação entre alma e corpo, que decerto subsiste sem, porém, subsistir, já que só receberá subsistência graças ao espírito. De outra parte, o espírito é um poder amistoso, que quer precisamente constituir a relação. Qual é, pois, a relação do homem consigo mesmo e com sua condição? Ele se relaciona como angústia".

Existe o espírito absoluto, imediato, que todo ser humano possui, mesmo um bebê recém-nascido. Existe o espírito posto, aquele que se manifesta através da consciência. O espírito manifesto é o despertar da consciência, é quando acordamos. É quando a luz da consciência é acesa! Isso acontece com todo ser humano normal, já logo ao início da infância. De repente existimos. E depois passamos a existir dentro de uma família, dentro da sociedade, dentro da humanidade. É assim que o indivíduo surge.
Para Kierkegaard, cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. Tudo o que diz respeito ao homem respeita ao indivíduo. Tudo o que acontece no indivíduo resvala no gênero humano. O percurso de cada indivíduo ocorre dentro do percurso da humanidade. A história do indivíduo se desenrola dentro da história da humanidade.

"A razão mais profunda de tal impossibilidade está naquilo que é o essencial da existência humana; que o homem é individuum e, como tal, ao mesmo tempo ele mesmo e todo o gênero humano, de maneira que a humanidade participa toda inteira do indivíduo, e o indivíduo participa de todo o gênero humano".

Dentro desse princípio ele analisa a figura de Adão. 
Adão é parte do gênero humano. Ele principia uma história que é a de todos nós e precisa ser essencialmente um de nós. Com isso, Kierkegaard critica a ideia de "justiça original", que dá a Adão um status especial, uma condição que homem algum nunca experimentou, que consiste no conhecimento perfeito de Deus e na capacidade plena de escolher entre o bem e o mal, como categorias. Adão era essencialmente um de nós!
Muita de nossa dificuldade em compreender Adão, a gênese do pecado e sua propagação pelo gênero humano se deve ao fato de colocarmos Adão fora do gênero humano, dotado de capacidades supra-humanas.

"Qualquer tentativa, portanto, de explicar o significado de Adão para o gênero humano como caput generis humani naturale, seminale, foederale, para lembrarmos expressões dogmáticas, confunde tudo. Ele não é essencialmente diferente do gênero humano; pois nesse caso o gênero humano nem existiria; ele não é o gênero humano, pois aí nem haveria o gênero humano; ele é ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que explica Adão, explica o gênero humano, e vice-versa".

Adão é tão-somente o primeiro ente do gênero humano, em estado de inocência, isento da corrupção. No mais, é igual a nós.

O ESPÍRITO DE ADÃO

Kierkegaard, como bom luterano, nega enfaticamente o livre-arbítrio. Adão não conhece o mal. Também não conhece o bem, que só pode ser dialeticamente entendido a partir do mal. Ninguém conhece o bem como bem sem a antítese do mal. Isso é impossível!
Que Deus é o Sumo Bem, Adão só terá ciência disso quando se deparar com o mal. Enquanto o mal não se manifesta, Deus é somente Deus à consciência humana. 


Kierkegaard não entra neste mérito. Mas a não ser que concedamos poderes supra-humanos a Adão, este só chegará ao conhecimento mais profundo de Deus após a queda, que lhe permitirá conhecer o mal e, dialeticamente, o bem. Antes da queda bem e mal são, para Adão, um nada.
O espírito de Adão não tem diante de si o bem, nem o mal, nem o finito, nem o infinito, nem o absoluto, nem o relativo. Ele está posto diante do nada e esta é sua angústia. Angústia não no sentido de sofrimento, mas no sentido de expectativa, força contida, água  represada. A doce angústia da ignorância, que determina a busca.

"A inocência é ignorância. Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem. (...) Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há algo de diferente que não é discórdia e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então? Nada. Mas nada, que efeito tem? Faz nascer angústia. Este é o segredo profundo da inocência, que ela ao mesmo tempo é angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade efetiva, mas esta realidade nada é, mas este nada a inocência vê continuamente fora dela".

"A angústia que está posta na inocência, primeiro não é uma culpa e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com a felicidade da inocência. Observando-se as crianças, encontra-se nelas a angústia de um modo mais determinado, como uma busca do aventuroso, do monstruoso, do enigmático".



Kierkegaard sempre vê a angústia como o estado de inquietação do espírito frente ao nada. Ela sempre antecede a pergunta: "E agora?"
Quando Deus ordena a Adão não comer do fruto do conhecimento e acrescenta a ameaça de morte, então o espírito de Adão não está mais diante do nada, mas de uma possibilidade. Ou melhor, o nada se transmuta em possibilidade.
A possibilidade é um nada, porque carece de conteúdo. É infinita, porque nela tudo cabe. Tudo é possível! O possível é retratado por Kierkegaard como um abismo.

"Angústia pode-se comparar com vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual é a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse ele encarado a fundura!... Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece".


Agora diante do vazio da possibilidade, a angústia do espírito se intensifica ao máximo. Não está diante da possibilidade do bem e do mal, ou da obediência e da desobediência, ou de duas categorias bem definidas. A possibilidade é algo infinito e não pode ser mensurada, não pode ser expressa, não pode ser categorizada. A relação com a possibilidade não está dentro da lógica, mas é pura angústia.
A relação de Adão com a possibilidade infinita é antipática e simpática. "A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipática". Todos nós sabemos o que é isso: a atração do proibido sobre nós. Odiamos, não queremos, mas amamos e não fugimos. Um sentimento paradoxal em relação ao objeto proibido que nos faz andar em torno dele, flertando-o. Parafraseando Jesus, poderíamos arrancar os olhos, mas preferimos mantê-los e dar umas espiadinhas. E quanto maior a angústia, mais frequentes e prolongadas as espiadas. Até que caímos no laço.

"Falar de bem  e mal como objetos da liberdade, significa conceber de modo finito tanto a liberdade quanto os conceitos de bem e de mal. A liberdade é infinita e aparece do nada"

E curvado sob a angústia, Adão peca.
O pecado irrompe como um salto qualitativo. Da qualidade de não pecador à qualidade de pecador, do estado de inocência ao estado de culpabilidade. O pecado emerge como o súbito, como o salto. Adão se lança ao abismo!

"O primeiro pecado é a determinação qualitativa, o primeiro pecado é o pecado".

"O pecado entra, portanto, como o súbito, isto é, pelo salto; mas este salto põe ao mesmo tempo a qualidade; mas quando a qualidade é posta, no mesmo instante o salto está voltado para dentro da qualidade e é pressuposto pela qualidade, e a qualidade pelo salto"


O pecado não tem um gérmen. Ele surge do nada! Ele subitamente aparece, mas eticamente justificado pela angústia.

AS CONSEQUÊNCIAS DO PECADO

Ao pecado se segue a corrupção. 
Kierkegaard devolve a questão à dogmática. Não está no escopo de sua análise avaliar a corrupção.
A visão da Igreja sobre a corrupção é que ela é privação do bem. O homem continua essencialmente o mesmo, imagem de Deus, porém privado do bem e profundamente enfraquecido. O homem não sabe mais quem ele é!
O que Kierkegaard ressalta é que a angústia leva ao pecado e o pecado ocasiona a angústia. Então uma nova angústia surge após o pecado. 
Sobre esta única consequência do pecado é que Kierkegaard prosseguirá em sua análise.  

O DILEMA DA SEXUALIDADE

A sensualidade, entendida como aquilo que é agradável aos sentidos, existe em toda a criação. Ela está na beleza, na harmonia, nas formas, na melodia, no sabor e nos odores.
O espírito inocente, em seu estado de ignorância, não é capaz de apreendê-la como tal e, por isso, não a recusa. Quando, porém, o espírito é posto (e isso aconteceu por causa do pecado), então ele percebe o sensual e o recusa.
A sensualidade é alheia ao espírito. Um espírito bem determinado recusa o prazer temporal como algo animalesco e indigno do homem. Para o espírito, só o eterno é digno do homem.
Ao recusar o sensual, o espírito estabelece dialeticamente um novo princípio: a sensualidade. Mas a sensualidade como pecado! Daí o pudor que sobrevêm a Adão e Eva, levando-os a cobrirem as partes pudendas e a esconderem-se de Deus.
O reconhecimento do sensual como algo que deve ser expulso gera angústia e determina tensão entre os gêneros. O espírito posto vê no corpo a animalesca sensualidade masculina ou feminina. E pior: detecta uma pulsão do masculino para o feminino e vice-versa, que é a libido. E quanto maior a angústia, maior a libido!
O ato sexual que, no estado de inocência, deveria ser um ato puramente racional, torna-se agora um instinto procriativo quase impossível de refrear.
É, então, que o pecado transforma os gêneros em instinto procriativo. E é desse instinto procriativo que a história começa, pois dele vêm todos nós. 

"A sensualidade não é então a pecaminosidade, mas no momento em que o pecado foi posto e no momento em que é posto, ele transforma a sensualidade em pecaminosidade (...). Ao comer do fruto do conhecimento, introduziu-se a diferença entre bem e mal, mas também a diversidade sexual enquanto instinto (...). O sexual não é pecaminosidade, mas - por um momento falarei de modo acomodatício e tolo -, se Adão não tivesse pecado, então o sexual jamais teria existido como instinto. Um espírito perfeito não se deixa pensar como definido sexualmente. Isso está em harmonia com a doutrina da Igreja a respeito da condição dos ressuscitados, em harmonia com as representações da Igreja sobre os anjos, em harmonia com as definições dogmáticas a propósito da pessoa de Cristo".
 

"A pecaminosidade não é então a sensualidade, de jeito nenhum; mas, sem o pecado, não há sexualidade e, sem sexualidade, nenhuma história".

O PECADO HEREDITÁRIO
O mesmo processo espiritual descrito em Adão ocorre em cada indivíduo. Todos nós nos angustiamos diante da possibilidade infinita, todos nós demos o salto qualitativo, todos nós introduzimos o pecado e a culpa no mundo. 
Kierkegaard se recusa a enxergar o pecado hereditário como uma doença contagiosa que é transmitida dos pais aos filhos. Para ele cada indivíduo cai individualmente. Cada indivíduo tem responsabilidade completa e infinita sobre sua própria queda.

"Não há porque se incomodar: a pecaminosidade não é uma epidemia que se propague como a varíola no gado, e 'toda boca seja fechada'. É bem verdade que uma pessoa pode dizer, com profunda seriedade, que nasceu na miséria e que sua mãe a concebeu em pecado; mas, a rigor, só poderá afligir-se com razão quando ela mesma tiver trazido o pecado ao mundo e colocado tudo sobre seus ombros, pois é uma contradição entristecer-se esteticamente pela pecaminosidade"
Há, porém, um "algo a mais" que nos diferencia de Adão, em seu primeiro pecado: nossa individualidade surge dentro de uma história de pecaminosidade, o pecado nos antecede. Ninguém antes de nós resistiu ao salto qualitativo. Fomos concebidos em meio à loucura da libido. Desde cedo fomos educados como meninos e meninas, roupas foram postas sobre nossas genitálias e crescemos em uma sociedade amplamente erotizada. Fomos individualmente constituídos sob um regime da fraqueza, que é a corrupção humana, a qual Kierkegaard não nega. Até porque é óbvia e salta aos olhos!
Cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. Cada indivíduo está fadado a carregar em si os pecados de todo o gênero humano como se fossem seus, e de fato são!
Todo esse contexto torna a angústia perante a possibilidade algo muito mais intenso e irresistível. É um contexto por demais cruel e ninguém escapa a ele. Entretanto, não se deve excluir o indivíduo de uma participação positiva na culpa. Ele próprio é a causa de seu pecado. Não deve buscar em Adão o responsável, nem em qualquer outro, senão em si próprio! Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!
A ideia de queda individual pode ser confundida com a heresia pelagiana. É a primeira coisa que nos vêm à mente, enquanto estudamos a tese. Mas Kierkegaard deixa claro que o pelagianismo erra por colocar cada indivíduo fora do gênero humano, descontextualizado, como se fosse uma ilha.
O pecado avança, então, quantitativamente ao longo da história humana: mais um, mais um, mais um, como um sorvedouro. Entretanto, o salto qualitativo sempre acontece ao nível do indivíduo.

"O gênero humano tem sua história; nesta, a pecaminosidade tem sua determinação quantitativa contínua, mas invariavelmente a inocência só se perde pelo salto qualitativo do indivíduo"

O DILEMA DO PECADO E A REDENÇÃO

A angústia é sempre a tensão do espírito perante a possibilidade infinita. Ela sempre envolve o espírito perante o nada infinito, o incomensurável vazio. 
Conforme a história do gênero humano avança e, com ela, o pecado, essa angústia vai assumindo formas diferentes. E essas formas de angústia históricas ocorrem também ao nível do indivíduo, porque cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. O nada da possibilidade transmuta-se ao longo do tempo, embora seja o mesmo nada.
Para os pagãos, o vazio da possibilidade é o destino. Na ausência de uma Providência divina, o homem está entregue ao nada do destino e precisa viver intensamente cada instante, porque o destino inexorável se aproxima. Ninguém tem o poder de alterá-lo. Na melhor das hipóteses, é possível conhecê-lo. Daí os oráculos.
Para os judeus, o vazio da possibilidade é a "possibilidade da culpa". O judeu já tem a Providência Divina e não está sujeito ao destino. E agora avista a possibilidade da culpa e angustia-se. Ele não teme a culpa em si, mas o sentir-se culpado. Daí os sacrifícios e as diversas interpretações da Torá, que objetivam abolir o sentimento de culpa, embora não a culpa em si.
Para o cristão, o vazio da possibilidade é a culpa consumada. Ele teme SER culpado. Já não é uma questão de sentir-se culpado, mas de SER essencialmente e infinitamente culpado. Culpado de tudo!
A culpa se torna o distintivo do cristão. Os mais santos se destacam não pela perfeição das obras, mas pela intensidade da culpa vivenciada. Quanto mais angústia perante a culpa, mais cristão se é.
Uma vez consumada a culpa, o arrependimento vem, recriando uma liberdade. O cristão se perde na culpa e é reencontrado no arrependimento. 
Neste momento é impossível não se lembrar de Lutero!

"Se então a liberdade teme a culpa, o que ela teme não é reconhecer-se culpada caso o seja, mas o que ela teme é tornar-se culpada, e é por isso que a liberdade reaparece, como arrependimento, tão logo a culpa é posta".


Quando o homem se lança à possibilidade infinita da culpa e entrega-se à angústia excruciante, dessa angústia irrompe a fé. Uma vez entregue à culpa, o homem é exercitado pela angústia a não mais esperar por nenhum alívio temporal.
A possibilidade da culpa é infinita e compreende todos os pecados possíveis, do menor ao maior. Todo indivíduo é possivelmente um assassino, um adúltero, um depravado, um ladrão, um blasfemo e um apóstata. Não há monstruosidade que a possibilidade não comporte. Quem se lança à possibilidade da culpa incorpora tudo isso em si e padece tudo o que tem de padecer.
Esse padecimento é de onde vem a verdadeira solidariedade. Pois que o cristão autêntico toma como pecado seu o pecado do próximo, toma como infortúnio seu o do próximo. A calamidade é a realidade do outro e a possibilidade minha.
A culpa leva o princípio de que cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano até às últimas consequências. Eu sou o ladrão, o assassino, o lascivo, o cruel. O que o outro é na realidade, eu sou na possibilidade. E a possibilidade é sempre muito pior que a realidade. 
Então eu sou o que o outro é e muito pior, porque ninguém está tão fundo que não possa afundar mais! A calamidade do outro é finita, a minha é infinita! Se ele adulterou uma vez, eu POSSO adulterar mil vezes. Se ele roubou uma vez, eu POSSO roubar mil vezes. E assim por diante.


"Conta-se de um ermitão hindu que vivera por dois anos só de orvalho, que ele certo dia foi à cidade, provou vinho e caiu no vício da bebida. Pode-se entender esta história, como qualquer outra semelhante, de diferentes maneiras. Pode-se fazê-lo à maneira cômica, pode-se fazê-lo à maneira trágica, mas a individualidade que é formada pela possibilidade terá muito que fazer com uma única história desse gênero. No mesmo instante identifica-se absolutamente com esse infeliz, não conhece nenhuma escapatória da finitude que lhe permita evadir-se. Agora, a angústia da possibilidade o tem como presa, até que possa entregá-lo, salvo, aos braços da fé; noutro lugar ele não encontra repouso, pois qualquer outro ponto de repouso não passa de conversa fiada, ainda que seja prudência aos olhos dos homens. Eis por que a possibilidade é tão absolutamente formadora".



Uma vez o espírito se enxergue o pecador máximo, então não há para ele redenção possível neste mundo. Não há destino, não há sacrifício, não há erudição, não há boas obras, não há indulgências, não há nada de temporal ou finito que lhe sirva de lenitivo.
E dessa total nulidade é que surge a fé, que agarra a possibilidade infinita da redenção.
O herói da fé é aquele que mergulha no nada da culpa, angustia-se ao extremo, assume essa angústia essencialmente e se deixa moldar por ela. Enquanto é moldado pela angústia, não segura em nada que seja finito, mas na fé. É a fé que não o deixa perecer.

"Da finitude pode-se aprender muita coisa, mas não a se angustiar, a não ser num sentido muito medíocre e corrompido. Por outro lado, aquele que aprendeu a angustiar-se de verdade pode mover-se como na dança logo que as angústias da finitude começam a ressoar e quando o aprendiz da finitude perde a razão e a coragem".


Autoria: Carlos Alberto Leão
Imagens extraídas da internet
Trechos retirados de "O Conceito de Angústia", Editora Vozes.