sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

OS TRÊS USOS DA LEI

"Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. Ele é como árvore plantada junto à corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-sucedido" (Salmo 1:1-3). 




Ao falar sobre Lei, é importante que se pontue que, para um luterano, a Lei é a Lei espiritual (Romanos 7:14), cumprida unicamente pelo amor (Romanos 13:8). Essa coisa de observar o sábado (ou domingo), proibir imagens e pagar dízimo não tem nada a ver com o povo cristão, que é um povo espiritual, nascido do Espírito, colocado longe dos rudimentos do mundo. A Lei é cumprida pelo amor e unicamente por ele. Portanto, ao invés de se desfazer das imagens, o cristão não idolatra. Ao invés de entregar o dízimo, ele é generoso. Ao invés de observar o sábado, ele dedica seu tempo a Deus. Não está preocupado em como evitar alimentos impuros, mas em como evitar a impureza. E assim por diante. Deus definitivamente não está interessado na circuncisão da carne, mas na circuncisão espiritual (Deuteronômio 10:16).
Pois bem, de acordo com a tradição luterana, baseada em S. Paulo, a Lei de Deus tem três usos: o civil, o teológico e o uso próprio dos regenerados.
O uso civil diz respeito ao princípio racional da moralidade, ao direito natural, à ética, que rege o comportamento de todos os homens, conduzindo-os à civilidade. Por isso, a temperança é virtude para qualquer povo de toda a face da terra, enquanto que a intemperança é uma desvirtude. Esse conhecimento da Lei é intrínseco da razão e todo ser humano faz uso dele, indistintamente. Para qualquer pagão, matar é crime e quem lhe informa isso é a razão, onde Deus semeou sua Lei (Romanos 2:15). Esse uso também existe no âmbito religioso, quando não há um entendimento espiritual da Lei, só o carnal, como entre os judeus, muçulmanos e entre cristãos fundamentalistas.  
O uso teológico não é obra da razão humana, mas de Deus. É quando o homem se sente profundamente pecador, quando é acusado por sua consciência e sente-se inimigo de Deus. A Lei mostra ao homem sua miséria, sua profunda maldade perante um Deus santo, que haverá de puni-lo, caso não se emende. O homem se sente assassino, ladrão, invejoso, adúltero, idólatra, embora não tenha infringido nenhuma lei civil e goze de boa reputação perante os homens. É nessa hora que também entram as religiões, tentando apaziguar as consciências aflitas. Entretanto, o único remédio para a alma que se encontra envergada pela culpa é o Evangelho, o Deus que promete remissão gratuita dos pecados a todo aquele que crê, que não é possível de se encontrar fora da Igreja.
O terceiro uso é o mais elevado de todos, mas diz respeito somente aos regenerados, ou seja, aos que creem no Evangelho. É o mais elevado não por ser o mais importante, mas devido ao fato de ser o uso que primeiro Deus estabeleceu. É o uso primordial da Lei, dado a Adão e Eva quando foram criados, dado aos anjos do Céu. É a base da soteriologia porque Cristo fez esse uso da Lei para salvar os homens. É o uso perene da Lei, que existirá para sempre no Céu. É espiritual por excelência, pois é inacessível ao arbítrio humano. O arbítrio humano decide ou não pelo primeiro uso da lei, mas não pode decidir-se pelo terceiro uso. O terceiro uso é dado por Deus juntamente com a fé.
Professamos que somos justificados pela fé. O que é ser justificado, de acordo com S. Paulo? É ser declarado justo por Deus. É quando Deus decide me declarar justo, cancelando minha dívida com ele e atribuindo a mim a justiça de Cristo. Deus diz ao que crê: "Você não tem mais qualquer pecado a partir de agora. Estou atribuindo a você a perfeita justiça de Cristo, como se fosse sua e de fato é sua, a partir de agora. É como se você mesmo tivesse agido com justiça e não Cristo. Então o que decido dar a Cristo darei também a você, pois agora vocês são uma única pessoa, uma só carne". Isso é a imputação de justiça que Deus soberanamente realiza em relação ao que recebe Cristo pela fé. Então a fé torna nosso o que seria exclusivo de Cristo, ou seja, a justiça. 
Mas ser justificado é ser justo. Deus não só declara o crente justo, como o torna justo, concedendo-lhe o Espírito Santo e, com ele, o amor, que cumpre a Lei. Então podemos dizer que o justificado é justo, o que equivale a dizer que o justificado é honesto, é veraz, é generoso, é temperante, é amável, é compassivo, e assim por diante. Ser justificado é ser! 
O terceiro uso da Lei está na natureza do regenerado. Não é passível de aprendizado e, como é algo que agora diz respeito à natureza, não pode ser deixado de lado. Eu posso abrir mão de agir com justiça, quando me atenho ao primeiro uso, mas não posso abrir mão de ser justo, porque isso seria abrir mão de ser quem eu sou. Quem é justificado e tem o Espírito Santo, ama e esse amor é uma condição definitiva. 
Então a Lei se torna, em seu terceiro uso, o caminho da plenitude, o caminho da bem-aventurança. No terceiro uso da Lei está a identidade humana, sua configuração com Cristo, sua configuração com o próprio Deus, do qual a Lei, em seu terceiro uso, serve como espelho: "Ser-me-eis santos, porque eu, o SENHOR, sou santo e separei-vos dos povos, para serdes meus" (Levítico 20:26). É assim que imagino a Lei, em seu terceiro uso: o espelho que reflete a justiça de Deus, que deve ser contemplada pelos homens e anjos não como regras a serem obedecidas, mas como sentido da vida. Esse reflexo de Deus não deve ser temido, mas buscado. É o que o salmista fazia, é o que Lutero fazia, quando usava o Decálogo como itinerário de oração. 
A Lei, em seu primeiro uso, sujeita-nos a regras exteriores, por meio das quais ela nos propõe uma justiça exterior. Em seu segundo uso, a Lei nos sujeita ao pecado e ao inferno, ao encher-nos de medo perante um Deus irado, e assim nos prepara para a recepção da graça. Em seu terceiro uso, a Lei nos liberta, dignifica, felicita e promove, ela nos plenifica e eleva ao Céu. É por isso que, sem sombra de dúvida, o uso mais elevado da Lei é o terceiro. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 18 de dezembro de 2016

COMO PROFESSAMOS A PRESENÇA DE CRISTO?

"E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século" (São Mateus 28:20).


A presença de Cristo na intimidade da Igreja é sua presença através da Palavra, a mesma que está presente na Bíblia, na Pregação, no Batismo, na Eucaristia e na absolvição.
Cristo é a Eterna Palavra de Deus. Quando o profeta Isaías diz: "a Palavra de Deus permanece eternamente" (Isaías 40:8), não devemos entender a Palavra de Deus como sendo uma profecia, um texto ou algo do tipo, algo que diz respeito à linguagem humana e é temporal, mas como sendo algo inerente ao próprio Deus e essencialmente Deus, pois só Deus é eterno. Foi S. João que clarificou isso para nós, ensinando que a Palavra de Deus é essencialmente Deus (S. João 1:1) e é um ser pessoal, o próprio Cristo (S. João 1:14).
Cristo está presente em sua Igreja porque é a Palavra de Deus. Os nossos ouvidos e intelecto lidam com palavras e com sinais, mas é o próprio Cristo, que é a Eterna Palavra de Deus, que lida conosco. Enquanto as palavras do texto, as palavras pregadas, o pão, o vinho e a água alcançam e movem nossos sentidos e intelecto, o próprio Cristo vem lidar misticamente conosco, transformando-nos profundamente. Portanto, há dois receptáculos: o intelecto para as palavras e para os sinais, a fé para o próprio Cristo que nos vem como Palavra de Deus.
Como nos explicou tão bem Rodrigo Moreira de Almeida, em seus dois textos sobre o assunto (*), o misticismo luterano se fundamenta nessa Palavra de Deus que se encontra na Pregação e nos sacramentos. Para o verdadeiro luterano, a Pregação não é uma simples exposição doutrinária ou catequese, assim como a Eucaristia e o Batismo não são meros ritos, mas veículos da Palavra de Deus, que é o próprio Cristo. De maneira que a experiência com a Pregação e com os sacramentos é uma experiência mística com o próprio Cristo, presente em sua Igreja. 
Quando afirmamos que Cristo se faz presente em sua Palavra, muitos imaginam uma presença metafórica, como aquela produzida pela saudade, em que não há uma presença de fato. Assim como um filho que perdeu a mãe diz que, em seu coração, sua mãe está sempre presente, muitos imaginam que Cristo está presente dessa maneira na Igreja. Isso não é verdade! Lutero combateu muito esse princípio que coloca Cristo longe de nós, presente conosco apenas histórica e simbolicamente.
Cristo está de fato presente entre nós e este é o principal consolo que temos. Sua presença é como Palavra de Deus, algo ininteligível, somente crível. Não queira divagar sobre a natureza de Cristo em tal presença, apenas creia nela e seja consolado.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

Referência:
(*) 
http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html 

http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/11/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html

sábado, 17 de dezembro de 2016

UM DEUS VESTIDO DE COTIDIANO

"Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (1 João 5:4).


Dias atrás, a esposa de um senhor de minha comunidade faleceu. Desde 2014, quando passei a frequentar os cultos dessa minha comunidade, soube que essa senhora estava muito enferma, debilitada e acamada, sendo cuidada por seu marido. Orava pelos dois, sem saber quem eram. O seu marido não ia aos cultos, só cuidava dela, o tempo inteiro. Disseram-me que foi um casal que muito bem fez à vida da comunidade. Entretanto, não os conhecia. Até que dias atrás soube da morte dessa senhora.
No domingo seguinte ao falecimento dela, apareceu um senhor triste e cabisbaixo na igreja. Enquanto eu tomava um café, aguardando o início do culto, ele puxou conversa comigo e comentou que havia muita gente nova na comunidade. Apressei-me em cumprimentá-lo. Então soube que ele era o esposo daquela senhora que havia falecido. Quis consolá-lo e busquei algum recurso, como filhos, por exemplo, mas eles não tiveram filhos. Ele estava sozinho desde o falecimento da esposa. Então recorri ao recurso do silêncio e continuo orando por ele.
Muita coisa veio à minha mente desde domingo passado. Esse senhor ficou ausente dos cultos por anos, cuidando de sua esposa. Quando ela faleceu, ele não quis mais ficar em casa, mas veio ao culto, ouviu a Palavra, comeu a Palavra e bebeu a Palavra, em busca de saciedade. Quanto aprendizado é possível extrair disso! Inclusive, estou comovido enquanto escrevo.
Por anos, aquele senhor vivenciou toda a sua espiritualidade à beira do leito da esposa. Ela foi o seu alimento espiritual diário, o sinal da Palavra de Deus, sua Eucaristia e Batismo, sua Pregação. Não tinha como vir aos cultos, mas o culto estava ao lado dele, sobre uma cama, e ele permaneceu de pé, por nenhum outro motivo, senão pela Palavra de Deus. 
Cristianismo é isso! Tudo o que acontece nos ritos só encontra seu significado fora deles. É necessário ser cotidianamente cristão, porque nosso Deus é um Deus encarnado, é um Deus humano, revestido de sociedade, cultura, história, dilemas, alegrias, dissabores. É um Deus revestido de gente! E somente no cotidiano, em nossas interações mútuas e com o mundo em geral, é possível comungá-lo. Ele está no pobre, na mãe, na viúva, no órfão, no governo, em tudo o que há de muito humano, concreto e vulgar. Para encontrar esse Deus, não é preciso fechar os olhos e voltar-se para a interioridade, mas é necessário abrir os olhos, olhar atentamente para os lados e, principalmente, para o próximo. Esse senhor não permaneceu faminto quando, por motivo de necessidade, teve de se afastar dos ritos, porque a Palavra de Deus estava em sua própria casa. 
Não estou querendo desvalorizar os sacramentos e o ministério da Igreja. Esse senhor recebia visitas pastorais e comungava regularmente. A questão é: o rito por si nada vale se meu Deus não for humano, se eu não recebê-lo como homem e como Igreja, como cidadão do mundo, como pedra viva, como sal da terra e luz do mundo. O cristianismo falhou quando entendeu que a vida mística deveria ser fora da sociedade, num deserto, num lugar isolado. Foi Lutero que resgatou a ideia de vida mística em família e em comunidade, no ordinário da vida, e creio que nada é mais luterano que isso.
Por fim, admira-me ver como a fé resiste a qualquer argumento racional. Afirmar que Deus opera tudo é fruto do intelecto. Eu posso dizer sempre, intelectualmente: Deus opera tudo em todos, tudo colabora para o bem dos que amam a Deus, só é possível confiar em Deus porque nada foge ao seu controle. Mas a fé não tem nada a ver com essas explicações. A fé não dá a mínima a explicação alguma. Ela simplesmente confia e prossegue. É a noiva cercada de muitos convivas, mas que só enxerga o noivo. 
Ninguém tem o poder de deter a fé, nem o mundo, nem o diabo, nem a morte. Ela é surda e essa surdez é sua fortaleza. Ela não é estimulada por argumentos, nem desestimulada por eles. Por isso mesmo, a fé está livre de todas as manipulações possíveis. É evidente que nosso intelecto é passível de manipulação, mas nossa fé ninguém pode com ela, por isso ela segue invicta e haverá de nos conduzir ao Céu. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet. 

domingo, 11 de dezembro de 2016

DEUS SE IMPORTA

"Jesus, vendo-a chorar, e bem assim os judeus que a acompanhavam, agitou-se no espírito e comoveu-se. E perguntou: Onde o sepultaste? Eles lhe responderam: Senhor, vem e vê! Jesus chorou" (S. João 11:33-35).





Deus não é um ser impessoal e indiferente à realidade humana, ele pessoalmente sofre, lamenta e chora. O Deus proposto pelo mundo, fruto do deísmo iluminista, é um ser que criou o universo e suas leis, deixando-o seguir seu próprio caminho. Esse Deus não ama, não se compadece, não age misericordiosamente, não perdoa ninguém. É um Deus que não podemos culpar pelas tragédias que nos sobrevêm, mas também é um Deus que não pode nos socorrer em nossa indigência profunda.
Como a humanidade está ontologicamente ligada à Divindade, sendo impossível ao homem sentir-se humano sem recorrer a Deus, sem deixar a esfera animal em direção a Deus, o homem que concebe um Deus impessoal passa a buscar a humanidade na indiferença e na insensibilidade, na impessoalidade e na despersonalização. Se meu Deus não se importa, se ele não é misericordioso, se ele não perdoa, se ele não é um ser pessoal para relacionar-se pessoalmente comigo, meu esforço por sair da esfera animal será no sentido de também não me importar, nem ser misericordioso, nem é preciso perdoar e, por fim, não preciso sequer ser uma pessoa para relacionar-me pessoalmente com o outro. De repente, tudo isso se torna animal, inadequado, fraco e vil. Isso é a tragédia das tragédias!
O Deus verdadeiro é um ser pessoal, que ama, que se compadece e que chora. Esse conhecimento acerca de Deus eleva sobremaneira os sentimentos humanos, pois eles estão em Deus e só podemos dizer que são muito humanos porque estão em Deus. Aqui o homem encontra espaço para a fraqueza e não tem vergonha dela. O outro também se reveste de muita dignidade, porque Deus chora pelo outro, não por si mesmo. Portanto, é divino chorar pelo outro, compadecer-se dele, empenhar-se por ele, socorrê-lo, perdoá-lo e amá-lo; divino e muito humano também.
Por outro lado, o pesar de Deus vem mostrar a nós, que cremos, que não é tão simples responder à tragédia humana como nestes termos: Foi Deus que quis. Essa resposta é essencialmente deísta e não tem nada a ver com o cristianismo, porque afasta Deus de sua criação, como aquele que friamente determina e que não se compadece, nem age com misericórdia. 
Deus de fato determina tudo o que acontece, cada tragédia que nos assola, tudo, absolutamente tudo! Nada foge ao conhecimento e vontade de Deus. Mas não devemos imaginar um Deus que determina friamente o que acontece, sem se importar com sua criação. De uma maneira que nos é incompreensível, Deus determina tudo o que acontece, sem que isso exclua seu sincero pesar, conforme nos atestam as lágrimas de Jesus. 
Como não conseguimos compreender esse Deus que tudo faz, que tudo opera, frequentemente nós o culpamos por nossas desgraças. Entretanto, só nesse Deus podemos encontrar consolo, porque ele chora.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


domingo, 4 de dezembro de 2016

ABORTO E A RELATIVIZAÇÃO DA ÉTICA


Há um ano atrás, decidi nunca mais assistir à Rede Globo, como reação a um vídeo gravado por atores "globais", em defesa do aborto. Nesse vídeo, eles humilham a Santa Mãe de Deus, juntamente com Deus e todos os cristãos, deixando claro a quem a mensagem está sendo endereçada: a esse povo cristão retrógrado. Cuspiram naquilo que é o mais sagrado para nós, cristãos: a Encarnação da Palavra de Deus no ventre virginal de Maria. Nunca mais assisti à Rede Globo e isso me fez um bem enorme. De fato, Rede Globo está entre as coisas mais supérfluas da vida.
Mas agora, dias atrás, o fantasma reapareceu com muito mais poder, porque dessa vez o parecer favorável ao aborto veio do Supremo Tribunal Federal, representado pelo ministro Barroso. O ministro deixou claro que a vida de um concepto não tem valor perante a justiça até o terceiro mês de vida. Até o terceiro mês de vida, idade gestacional decidida arbitrariamente, o concepto diz respeito somente à mãe e às suas necessidades imediatas. Isso é lamentável! O aborto é uma verdadeira barbárie que a sociedade brasileira está caminhando por aceitar. Muitos seres humanos não serão executados em nome da religião do Estado ou em nome de um partido, como aconteceu e acontece na Alemanha nazista, na Coreia do Norte, em Cuba, na extinta União Soviética e na Síria. Eles serão executados em nome do bem-estar da genitora, de sua carreira profissional, de seus estudos, de seu pretenso direito de não ser mãe, como se o aborto pudesse extinguir a maternidade. 
Que um embrião é vida, temos opinião consensual quanto a isso. Pergunte a um árabe, a um judeu, a um oriental, a um indígena, enfim, a qualquer pessoa da face da terra, se o embrião é um ente vivo e a resposta será sempre afirmativa. Algum teórico, do tipo polemizador, poderá dizer que não ou que depende, mas se formos mais fundo na pergunta: o embrião que está no ventre de sua esposa é seu filho? ele será obrigado a dizer que sim. Acho um absurdo ter que argumentar que um embrião é vida, mas numa sociedade que questiona o próprio sexo, que é biologicamente definido, é necessário frequentemente provar que o ovo é redondo e não quadrado. 
Enfim, faz parte do bom senso atribuir vida a um embrião. Aqueles que questionam esse fato, indo contra o que é consensual, contra o que é racional, terão que apresentar provas. O ônus da prova sempre recai sobre aquela pessoa que questiona o que está estabelecido. Bem, ninguém nunca provou nem provará que um embrião não pode ser considerado uma vida humana. Teremos sempre opiniões e empirismos, tais como os "três meses" do ministro Barroso, mas nunca teremos provas. Então chegamos à questão seguinte: matar é crime ou pode não ser? Sim, a partir do momento em que se retira a vida de um ente, é lógico que o matamos. Então cabe perguntar se matar é sempre errado ou não. 
Portanto, a questão do aborto vai além da execução de conceptos e atinge um vulto muito maior, pois relativiza a criminalidade do assassinato. Em algumas circunstâncias, assassinar deixa de ser um crime. Logo, o assassinato não é um crime absoluto ou objetivo, mas um crime relativo ou subjetivo. 
Para piorar, a justificativa para descriminalizar o assassinato é muito vulnerável, irrelevante e perigosa: o bem-estar. Irrelevante a um primeiro momento, pois em nada beneficia a sociedade como um todo, diferentemente do que aconteceria numa guerra, em que é necessário matar para defender a pátria. Não interessa à sociedade se Maria não queria engravidar de João, se isso irá prejudicá-la em suas ambições. Também o fim dessa gravidez não importa, porque nenhum bem social trará. Perigosa na sequência, pois sempre haverá alguém que irá impedir nosso bem-estar: o cônjuge gravemente enfermo e terminal, pais dementes, avós decrépitos, imigrantes a "roubar" nossos empregos, religiões e culturas diferentes a imiscuir-se em nossa sociedade, descaracterizando nossa cultura, o bandido a cercear nossa liberdade, e assim vai. Sempre haverá um outro a prejudicar nosso bem-estar, nosso potencial de crescer e ser bem-sucedido em tudo. Então, com o aborto, aparece a opção de matar quem estorva nosso progresso pessoal, sem que esse tipo de assassinato seja considerado um assassinato ou um crime. Então perceba, por favor, que a mesma fundamentação do nazismo é a fundamentação do aborto. O arcabouço ideológico do nazismo é o arcabouço do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido e da xenofobia. 
O problema não para por aqui. A relativização do assassinato é uma relativização de algo muito mais amplo, que é a ética. Portanto, a legalização do aborto fomenta um problema muito maior e que levará nossa civilização à ruína, que é a relativização da ética, algo nunca antes visto em toda a história da humanidade. Se matar pode não ser crime, roubar, mentir, defraudar, prostituir podem também não ser. Então não reclame do atual cenário político brasileiro, pois ele reflete o que vem acontecendo em todo o mundo ocidental: a relativização da ética. Não reclame do "capitalismo selvagem", pois ele brota da mesma fonte de onde o aborto está brotando: a relativização da ética. 
Muitos acham que ir contra o aborto é "coisa de igreja". Não é "coisa de igreja", mas algo racional. Acho triste que somente a Igreja, em toda a cultura ocidental, esteja firme no anseio pela verdade e contra o relativismo, pois o fundamento disso é muito mais racional que bíblico. A filosofia grega sempre valorizou a verdade como princípio absoluto e esmerou-se por alcançá-la. Aquele discurso que reúne elementos aparentemente lógicos e verdadeiros, mas que não visa à verdade, era chamado de sofisma. O sofista não está preocupado com a verdade, mas com seu próprio benefício. Ele instrumentaliza a verdade para alcançar o quer.
Todo discurso relativista é necessariamente sofístico, pois o relativismo não comporta o princípio da verdade. Não havendo verdade, todo o objetivo do discurso visa a um benefício próprio. O discurso relativista sempre beneficia algumas pessoas, nunca a sociedade como um todo. É por isso que o relativismo é uma implosão cultural.
Quisera eu que ainda houvesse alguns aristóteles pelo mundo, a defender a verdade com o uso da razão, sem o viés religioso. Mas infelizmente não há, nem haverá, pois a verdade foi pulverizada e ninguém anda em busca dela. Cada qual quer se dar bem, ter seu problema imediato resolvido e que se dane a sociedade como um todo. Afinal, nenhum benefício é visto como mais importante que o meu.

Autoria: Carlos Alberto Leão.


domingo, 27 de novembro de 2016

BUSCA DE DEUS, BUSCA DE NÓS MESMOS

"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (2 Coríntios 5:19).


No presépio aqui de casa, todos os personagens direcionam seu olhar ao menino Jesus. Contemplam Deus através da humanidade de Jesus. Eu também descanso o meu olhar sobre o menino Deus, pois ali está o que há de mais sagrado, primordial e mesmo ontológico na humanidade.
No Deus humanado encontramos a verdadeira humanidade. Ser homem não é ser um bípede racional, um mamífero, um primata, um animal. Algo nos separa das demais criaturas, responsabiliza-nos perante elas e perante nós mesmos. Algo separa a realidade humana da realidade animal. Somos seres morais, buscamos instintivamente o que é bom e justo, a beleza, a virtude e a sabedoria. Nós buscamos a perfeição. Essa necessidade de se alcançar a perfeição é uma necessidade de Deus. Não queremos viver no nível dos animais, mas ascender ao nível de Deus, buscando em Deus a nossa humanidade. De maneira que, quanto mais subimos em direção a Deus, mais humanos nos tornamos. Então a busca de Deus assume um caráter ontológico, pois buscamos em Deus quem nós somos.
O presépio coloca a união entre Deus e homem no meio da história, mas essa união é primordial. Ela foi obscurecida pelo pecado, mas o homem busca essa união o tempo inteiro, ainda que não seja crente ou ainda que seja ateu, pois a busca da perfeição é algo que caracteriza a humanidade, que nos torna de fato humanos. E essa busca da perfeição é a busca de Deus. Por isso, é impossível ao homem não ser religioso.
O ser humano muitas vezes determina teoricamente que o melhor é ser animal, deixar de lado qualquer padrão de moralidade, de justiça, abandonar a ideia de Deus, mas é traído pela prática, pois não pode ser animal. É um movimento irresistível e necessário este que o homem faz para fora da condição animal, em direção à esfera de Deus. Se todas as religiões deixassem de existir, o homem religioso haveria de permanecer, pois ser homem é ser religioso, é buscar a Deus, é almejar a unidade com Deus. Se o homem conseguisse deixar de buscar a Deus, poderia então ser um simples animal, mas não pode.
Diante do exposto, fica difícil não prestar atenção no menino Deus, posto sobre a manjedoura, pois ali estou eu, unido a Deus e também posto sobre a manjedoura. Na humanidade de Deus está a verdadeira humanidade, purificada do pecado e plena de sentido. 

Autoria: Carlos Alberto Leão. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O LUGAR DA MÍSTICA NA IGREJA LUTERANA - PARTE 2

No primeiro post dessa série, vimos as características que diferenciam a espiritualidade luterana da católica romana e as condições que permitem o desenvolvimento de uma mística distintivamente luterana (o tripé leitura bíblica-oração-participação nos sacramentos). Nos próximos posts, veremos como essa mística se realizou historicamente, em suas diferentes modalidades.
Num dos trechos de Lutero citados no post anterior, podemos perceber que o reformador concebia a união com Deus como uma comunhão amorosa realizada por meio da fé. Isso permite discernir uma primeira modalidade da mística luterana, a saber, uma vertente devocional, que se distingue da mística especulativa de um Mestre Eckhart, por exemplo, direcionada ao conhecimento do fundamento divino da alma. Certamente, ambas visam à união com Deus, mas possuem atitudes existenciais diferentes para alcançá-la: no primeiro caso, Deus é concebido como o Outro ao qual a alma deve se unir a Cristo amorosamente através da fé; no segundo caso, Deus é concebido como a raiz da personalidade, e, por causa disso, deve ser buscado não fora, mas dentro de si mesmo.
Outra diferença está nas práticas espirituais que cada um desses tipos de mística exige. A mística intelectual, por sua própria natureza, está mais próxima de um tipo “monástico” de espiritualidade: concentração intensa, meditação, esvaziamento da mente são atitudes típicas do contemplativo, mas quase impossíveis de serem praticadas pelo leigo em meio à agitação do dia-a-dia. Em contraste, a espiritualidade devocional pode se apoiar em práticas mais simples, como a meditação sobre textos bíblicos e a oração, e, portanto, mais adequadas para aqueles que não desejam se retirar do mundo. No entanto, como as duas têm o mesmo objetivo, acabam se encontrando no final. Assim, a mística devocional, tal como a mística especulativa, é também uma forma de conhecimento, um aspecto que foi reconhecido pelo próprio Lutero:

“E esse conhecimento vem da fé, de acordo com a Escritura, ‘Se vocês não crerem, tampouco vão compreender’. Esta é aquela entrada na nuvem, Ex. 20:21, na qual são engolidas todas as coisas que os sentidos, razão, mente ou conhecimento do homem podem compreender. Pois a fé une a alma à invisível, inefável, inimaginável, eterna Palavra de Deus, e ao mesmo tempo, a separa de todas as coisas visíveis.” [1]

Como se pode perceber, a fé para Lutero não é simplesmente um ato da vontade individual, mas, acima de tudo, é uma forma superior de conhecimento, que une a alma a Cristo. Conhecimento e amor, portanto, não estão separados na fé: para usar um adágio dos monges cistercienses, com o qual Lutero certamente concordaria, “amor ipse est intellectus” (“o amor por si só já é conhecimento”). Trata-se de um saber que não é obtido nem pelos sentidos nem pela razão, mas pela negação de ambos, representada pela “entrada na nuvem”, um símbolo típico da literatura mística apofática. No entanto, Lutero faz um uso muito particular dessa metáfora, pois a ênfase do reformador recai não sobre a incognoscibilidade da essência de Deus, como na maior parte da tradição apofática ocidental, mas sobre a incognoscibilidade da relação com Ele: Deus é conhecido na imediaticidade da relação, e qualquer tentativa de compreender sua essência, mesmo através de negações, surge posteriormente à relação pessoal com Ele, estabelecida através da fé. Portanto, sendo um relacionamento com uma Pessoa, e não com uma essência, a fé pressupõe um envolvimento existencial completo, que mobiliza não apenas a razão e os sentimentos, mas também dimensões mais profundas da personalidade. Não por acaso, Lutero vê a fé como a atividade própria do “espírito” (pneuma), a parte mais elevada e mais interior do ser humano:

“A natureza do homem consiste de três partes – espírito, alma e corpo.[...] A primeira parte, o espírito, é a mais alta, mais profunda e mais nobre parte do homem. Por ele, o homem é capaz de captar coisas incompreensíveis, invisíveis e eternas. Ele é, em resumo, o lugar de habitação da fé e da Palavra de Deus.” [2]

Portanto, em Lutero, a fé é a atividade própria do espírito, a essência íntima da pessoa humana, que transcende a razão e os sentidos e permite uma união ontológica com Deus, características que também estão presentes na tradição mística especulativa [3]. Mas, ao contrário desta última, a mística devocional tem como ponto de partida o distanciamento essencial entre a alma pecadora e a santidade divina, uma separação que é abolida no “noivado místico” realizado por meio da fé:

“A raça dessa noiva era hostil ao Pai celestial, mas o próprio Cristo reconciliou-a ao Pai por sua mais amarga paixão. A noiva foi calcada em seu sangue, lançada sobre a face da terra (Ezequiel 16:22). Mas ele mesmo a lavou na água do batismo e a purificou no banho mais santo (Efésios 5:26). [...] A noiva estava com fome, mas ele deu-lhe flor de farinha, mel e azeite para comer; com Seu próprio corpo e sangue Ele a alimentou para a vida eterna. A noiva é, em todos os sentidos, infiel e muitas vezes quebra o vínculo conjugal, fornicando com o mundo e o diabo, mas o Noivo a recebe repetidamente em graça com seu imenso amor, renovando-a na verdadeira conversão a ele.” [4]

Vinculada ao Noivo através da fé, a alma compartilha com ele todos os seus bens, incluindo a santidade, e os recebe sem qualquer mérito próprio. Como se pode perceber do trecho citado, essa “passividade” da alma está relacionada à compreensão luterana dos sacramentos como os meios visíveis divinamente instituídos para produzir e fortalecer a fé no crente. Principalmente no caso da eucaristia, a doutrina da “presença real”, segundo a qual o Cristo inteiro (corpo e espírito) está presente no sacramento, pressupõe uma união íntima com o Verbo divino durante a comunhão, o que pode também ser um suporte para uma experiência espiritual mais profunda. Se a Santa Ceia concede ao crente a união objetiva com Cristo, a forma de compreender essa união varia. Johann Gerhard, por exemplo, vê esse sacramento como um verdadeiro banquete celeste, no qual o mesmo corpo que foi glorificado na comunhão da Trindade e que é adorado pelos anjos torna-se presente aqui e agora:

"A alma fiel é alimentada na festa divina e celestial. A carne santa de Deus, que os anjos adoram na unidade das pessoas, que os arcanjos veneram, diante da qual os governantes tremem e se maravilham, essa mesma carne é o nosso alimento espiritual. Alegrem-se os céus e regozije-se a terra (Salmo 96:11), e ainda mais a alma fiel a quem um tão grande e importante dom foi estendido.” [5]




                          Johann Gerhard



Historicamente, o Luteranismo deu maior ênfase à importância dos sacramentos como os veículos mais importantes para a obtenção da fé (e, com ela, da união mística com Cristo), principalmente devido à polêmica com os chamados “entusiastas” (schwärmerei), que defendiam uma atuação direta de Deus para conceder a fé aos cristãos, sem a necessidade de qualquer mediação. No entanto, isso não significa uma desvalorização da oração e da leitura privada da Bíblia como vias para atingir a experiência de união com Deus. De fato, para a tradição luterana, essas práticas são a manifestação visível da fé recebida na pregação e nos sacramentos, o que significa dizer que elas podem ser também um suporte para vivenciar de uma forma mais profunda a união com Deus, já anteriormente estabelecida pela fé.
No que diz respeito à oração, como já foi mencionado no primeiro post, o Luteranismo preservou a prática das orações jaculatórias e é possível encontrar inclusive alusões a formas interiores de prece, análogas à “oração de Jesus”, do Cristianismo Ortodoxo e às descrições que João Cassiano dá dos estágios mais elevados de prece. Assim, ao tratar da oração em seu livro Wahres Christentum (“Verdadeiro Cristianismo”), Johann Arndt distingue três tipos de prece (oral, interna e sobrenatural), sendo que esta última leva a uma forma de união mística com Deus:

“Por essa prece interna [isto é, a prece incessante e interior] somos levados gradualmente àquilo que é a [prece] sobrenatural; que, de acordo com Tauler, ‘consiste em uma verdadeira união com Deus pela fé; quando nosso espírito criado se dissolve, por assim dizer, e se afunda no Espírito incriado de Deus. [...]’. Por esta razão, esta prece sobrenatural é incrivelmente mais excelente do que a [prece] que é principalmente externa; pois nela a alma é, pela fé verdadeira, tão plenificada com o amor divino, que não pode pensar em outra coisa senão em Deus. [...] Uma alma que uma vez chegou a este estado feliz dá pouco ou nenhum emprego à língua: ela é silenciosa diante do Senhor. [...] Por isso, ela é ainda mais e mais cheia de um conhecimento experimental de Deus, e com tal amor e alegria como nenhuma língua é capaz de proferir. Tudo o que a alma então percebe está além de toda possibilidade de ser expresso em palavras. " [6]






                            Johann Arndt

Portanto, existe na tradição luterana não só um fundamento teológico para o que chamamos de “mística devocional”, como também a possibilidade de vivenciar de fato experiências que podemos muito bem qualificar como “místicas”, a partir da participação nos sacramentos e da prática da prece interior. No próximo e ultimo post dessa série, analisaremos outra vertente da mística luterana.

Autoria: Rodrigo Moreira de Almeida.

NOTAS:

[1] Comentário ao Salmo 2, versículo 10. In: Comentário aos salmos, 1519.

[2] Comentário ao Magnificat, 1521.

[3] A esse respeito, vale citar o comentário de Rudolf Otto, que compara a fé luterana ao “fundo da alma” da mística alemã, o centro “no qual se realiza a união [com Deus]” (O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143). Mais uma vez, é possível ver o parentesco entre Lutero e Mestre Eckhart, via Tauler, discípulo de Eckhart que era lido avidamente pelo jovem Lutero.   

[4] Johann Gerhard, Meditationes sacrae, XIII.

[5] Meditationes sacrae, XIX. Essa compreensão do sacramento é expressa também no Prefácio à celebração da Santa Ceia, utilizado frequentemente na liturgia luterana: “Portanto, com os anjos e arcanjos e com toda a companhia celeste, louvamos e magnificamos o teu glorioso nome.”

[6] Wahres Christentum, livro 2, XX, 4. É interessante comparar a descrição que Arndt dá da “prece sobrenatural” com a descrição que João Cassiano dá dos estágios mais elevados da prece: “[Esta prece] vem de uma intenção mental ardente, através de um enlevo inefável do coração, por meio de um inexplicável arrebatamento do espírito. Livre de todas as sensações e de preocupações visíveis, a mente derrama-se sobre Deus com gemidos e suspiros inexplicáveis (Rm 8,26)” (Conferências, 10, 11).

Para quem gostou, deixaremos o link da parte deste estudo: 
http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html



terça-feira, 1 de novembro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? PARTE 3

"Por isso, Majestade, aceita o meu conselho: expia os teus pecados com as boas obras e as tuas maldades com misericórdia para com os miseráveis! Então talvez se prolongue a tua felicidade" (Daniel 4:24).

A questão das recompensas vem sendo levantada há muito pelos defensores do livre-arbítrio como argumento a favor da justificação pelas obras. Por que Deus promete recompensar os justos, senão pela grandiosidade de suas obras? É o que levantam.


Devemos primeiro analisar quem é premiado. Um ímpio não será premiado por Deus, ainda que suas obras sejam tão gloriosas quanto as estrela do céu. Deus não promete nenhum bem eterno a quem cumpre sua Lei. Assim como a Lei diz respeito às coisas da terra, as recompensas atribuídas ao seu cumprimento também estão conectadas à terra. 
Deus promete todas as coisas, Céu e terra, a bem-aventurança eterna e o mais infinito gozo ao seu único Filho, o Homem Jesus Cristo. É ele o herdeiro de todas as coisas (Hebreus 1:2). Por meio dele, unidos a ele ou fundidos nele, é que podemos participar de sua herança. A herança pertence ao Homem Jesus e a quem for achado nele. 
Sabemos bem que a união com o Homem Jesus Cristo só é possível pela fé. Nenhuma obra nossa tem o poder de nos vincular a ele. A Lei é de todo ineficaz nesse sentido.
É no contexto da união com Cristo que devemos entender o valor de nossas obras e a recompensa que Deus promete. Jesus disse: "Em verdade, em verdade vos digo que AQUELE QUE CRÊ fará também as obras que eu faço e outras maiores fará" (S. João 14:12). Houve um tempo que pensei estar sendo Jesus muito modesto ao dizer tais palavras. Bem, modéstia e imodéstia não cabem a Deus, mas somente às criaturas. Não é uma questão de modéstia ou imodéstia, mas é fato: as obras dos que creem são tão grandiosas quanto as de Cristo e são maiores ainda, pois é Cristo quem continua a operá-las. É uma enorme idolatria atribuir a nós qualquer boa obra. É Cristo que, unido a nós, continua a operar suas obras magníficas. É assim que a fé mantém Cristo no mundo. Ele continua cumprindo a Lei por meio de sua Igreja, ele continua amando por meio de sua Igreja. "Aquele que crê" distingue bem a natureza da obra, que não é obra da Lei, mas dádiva ou Evangelho. É por meio de nossa união com Cristo que recebemos as boas obras. 
O que a Igreja faz de verdadeiramente bom no mundo é consequência de sua união a Cristo e é por meio dessa união que ela será recompensada um dia. O prêmio pertence ao Bendito Filho de Deus e a quem permanece nele, por meio da fé.

Lutero: "Na Teologia, 'fazer' necessariamente requer a própria fé como pré-requisito. 'Fazer', na Teologia, deve ser entendido a respeito do fazer com fé, de maneira que fazer com fé é uma outra esfera, por assim dizer, um novo domínio, diferente do fazer moral (...). Por isso, quando a Escritura diz: 'Redime os teus pecados com esmolas'. 'Faze isto e viverás', etc; é preciso entender, em primeiro lugar, que significa a palavra 'fazer', pois a Escritura, nessas passagens, como tenho dito, está falando de uma fé concreta, não abstrata; composta, não despojada ou simples. O sentido, portanto, dessa passagem: 'Faze isto e viverás' é: 'Viverás por causa desse 'fazer' na fé ou: 'Esse 'fazer' te dará a vida somente por causa da fé'. (...) Não se deve pensar, portanto, como costumam pensar os sofistas e os hipócritas, que as obras justificam absoluta e simplesmente como tais e que méritos e recompensas são prometidos a essas obras morais, mas, sim, apenas, às obras realizadas na fé" (Comentário da Epístola aos Gálatas). 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? PARTE 2


São Tiago trata de uma espécie de fé que não é capaz de justificar. Essa fé não vem acompanhada de obras. Para S. Tiago, a fé que justifica é necessariamente a fé que resulta em obras. Ao falar em justificação por obras, ele apresenta a fé que está vestida de obras, que Lutero chamaria de "fé composta" ou "fé encarnada". Lutero trabalha com os conceitos de fé simples e fé composta. A primeira é a fé bruta, isenta de obras, em seu sentido absoluto ou substancial. Somente essa fé justifica. A segunda é a fé vestida de obras, é a maneira como a fé pode ser vista e admirada. 
Ninguém pode enxergar a fé absoluta, mas enxergamos e apreciamos as obras que advêm dela, que são sua roupagem, sua apresentação. Quando enxergamos uma obra de misericórdia, entendemos que a misericórdia não justifica, mas a fé vestida de misericórdia, que se apresenta como misericórdia, composta de misericórdia, esta sim justifica. A mesma obra realizada por um incrédulo jamais justificaria, antes seria um pecado mortal, um atrevimento, uma abominação perante Deus, pois esse incrédulo quer ser seu próprio salvador. Atente-se ao que S. Tiago diz: "foi pelas obras que a fé se consumou" (S. Tiago 2:22).
São Tiago denuncia a fé histórica, a fé dos escribas e fariseus, a fé que é forjada pelo estudo, a "fé do diabo". Assim afirma ele: "Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem" (S. Tiago 2:19). A fé histórica é fruto de disciplina e aprendizado, pode ser ensinada aos outros, mas é ineficaz, não redunda em mudança de vida, em verdadeira conversão, pois reside somente no intelecto e não toca o espírito. A fé histórica gera soberba. 
Há muita fé histórica na Igreja de hoje, basta que nos lembremos das pessoas que comem umas às outras nas redes sociais, sem qualquer misericórdia no trato com o outro. A fé histórica valoriza mais o conhecimento que Deus e a vida humana, não tem qualquer responsabilidade pelo outro e não transforma o coração humano, que continua tão pagão e empedernido quanto antes. A fé histórica é um grave abuso e resultará em inferno, a menos que a pessoa se converta de fato. 
A pessoa que mais entende de Escritura e que seria o maior professor de Teologia é o próprio diabo. Ele conhece como ninguém a doutrina cristã, a justificação somente pela fé, e recita de cor e salteado todo o texto das Escrituras, a Confissão de Augsburgo, o Catecismo da Igreja Católica e todas as confissões protestantes, nem por isso é capaz de louvar a Deus, render-lhe culto sincero, arrepender-se dos pecados e amar de fato. A fé histórica é uma árvore infértil, embora muito bonita e louvada. Ah, essa fé jamais justificaria, antes condena ao inferno e leva outros ao inferno também. Nada que o homem produz é capaz de salvá-lo, muito menos essa pseudofé. 
Enquanto S. Tiago exalta a fé composta, vestida de boas obras, visível a todos e extremamente bela, São Paulo detém-se na fé absoluta ou simples, devido às controvérsias entre ele e os cristãos judaizantes. Contra o pensamento judeu, infiltrado na Igreja, que as obras devem complementar à fé, ele se posiciona radicalmente a favor da fé absoluta, aquela que é invisível, só inteligível, porque ainda não se manifestou em obra alguma. Para S. Paulo, a fé justifica e salva antes mesmo de se revelar em obras, antes de qualquer obra, ou seja: em seu estado bruto, da maneira como é vista por Deus e ainda alheia aos homens. São Paulo não quer a joia, mas o diamante bruto. Cristo ama sua noiva pelo que ela é, não pelos trajes que ela usa. 
São Paulo, porém, não despreza as obras da Lei ou o cumprimento da Lei. Na verdade, ele deseja ardentemente cumprir a Lei, mas está certo que o cumprimento da Lei só é possível através da fé e por causa da fé. O descrente não cumpre uma lei sequer, ainda que seja a pessoa mais generosa e caridosa do mundo, ainda que seja premiado com o Nobel da Paz. Dessa maneira S. Paulo se expressa: "Anulamos, pois, a Lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a Lei" (Romanos 3:31). 
Ambos, São Tiago e S. Paulo, direcionam seu olhar para a verdadeira fé, este milagre divino que transforma a realidade humana, que circuncida o coração, que converte o coração a Deus e ao próximo, que transforma o não querer em querer, que faz nascer de novo, que determina novidade de vida. É a fé que ama e testemunha. 
Essa fé justifica e salva, coisa que a fé histórica é incapaz de fazer, porque é um simulacro hediondo da verdadeira fé, operado por nossa natureza rebelde, que deseja a todo o custo ser igual a Deus. Sobre isso se posicionam S. Tiago e S. Paulo praticamente com as mesmas palavras: "Tornai-vos, pois, praticantes da Palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (S. Tiago 1:22) e "diante de Deus não são justos os que ouvem a Lei, mas os que cumprem a Lei" (Romanos 2:13), palavras de S. Paulo. Cuide, porém, de nunca achar que suas boas obras merecem algo de Deus se desprovidas de fé. Igualmente, aprenda a louvar a Deus por cada boa obra que você realiza, pois a fé não é dom da razão, mas dom de Deus (Efésios 2:8).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 30 de outubro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? - PARTE 1

"Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça e: Foi chamado amigo de Deus. Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente" (S. Tiago 2:21-24).

"Que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. E é assim que Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribuiu justiça, independentemente de obras. Vem, pois, esta bem-aventurança exclusivamente sobre os circuncisos ou também sobre os incircuncisos? Visto que dizemos: a fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e sim quando incircunciso. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que creem, embora não circuncidados, a fim de que lhes fosse imputada a justiça" (Romanos 4:1-3, 6, 9-11).


Supondo que a carta de S. Tiago tenha de fato origem apostólica, o que não é certo, isso é notório, é de se esperar que houvesse um debate entre S. Tiago e S. Paulo, por suas opiniões divergentes.
São Tiago parece afirmar que o homem não é justificado somente pela fé, mas que deve colaborar com boas obras. Desenvolvendo a ideia, concluiríamos que a justificação seria fruto não só da fé, mas da bondade humana, que seria aceita por Deus como bondade absoluta à qual lhe cabe recompensar. Duas justiças atuariam juntas: a Justiça de Cristo, que é imputada ao homem por Deus, e a justiça humana. Em outras palavras, levando o raciocínio às últimas consequências, haveria uma equivalência entre Justiça divina e justiça humana ou a Justiça divina teria que ser complementada pela justiça humana.
Por outro lado, está S. Paulo que atribui tudo à fé. Somente ela justifica e toda a justiça válida perante Deus vem dele mesmo, é Deus quem imputa ao homem a perfeita Justiça de Cristo, tornando-o tão justo quanto Cristo. Nenhuma obra anterior a esse ato de Deus, nenhuma obra posterior a esse ato de Deus, tem o poder de justificar, mas somente a fé, que apreende a Justiça de Cristo. É necessário ao homem participar de Cristo para ser justo perante Deus. Essa participação só é possível  ao que crê. Não há duas justiças que justificam, mas uma só: a de Cristo, que é perfeita. Também cita Abraão como exemplo, mas de maneira diferente do que fez S. Tiago, porque diz que Abraão foi declarado justo por Deus antes mesmo de ele ser circuncidado, antes da Lei, antes das obras da Lei, quando ele somente creu. Aqui S. Paulo nega enfaticamente o poder da Lei de justificar e salvar. Em outra parte, ele diz: "E é evidente que, pela Lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé" (Gálatas 3:11).
Não devemos esperar por um debate entre esses dois, porque cremos que Deus Espírito Santo dirige a história da Sagrada Escritura e foi ele quem colocou em seu cânon as epístolas paulinas e essa epístola atribuída a S. Tiago. Dentro deste espírito, não devemos afirmar que um dos dois está errado, que um dos dois é herege, que a carta de S. Tiago não deveria estar nas Escrituras, muito menos que as epístolas paulinas fossem extirpadas. O lógico é concluir que S. Tiago deve ser entendido à luz do que afirmou S. Paulo, e vice-versa. São Tiago e S. Paulo devem estar dizendo a mesma coisa. Caso contrário, um dos dois é herege, o que é inadmissível. Portanto, a contradição entre S. Tiago e S. Paulo é apenas aparente, fruto de uma leitura rápida, desatenta e tendenciosa. Quer dizer, a contradição se encontra no leitor e não nos autores.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

UM CAMPO VULGAR



O Cristianismo será um caos enquanto o diabo for diabo.
A única ordem que existe nele é matéria de fé, 
não está ao alcance dos olhos.
A fé é assim: ela oculta dos escarnecedores tudo o que é sagrado.
Somente aos pequeninos ela revela algo.

O Reino de Deus é um tesouro sepultado no campo.
Todos veem um campo qualquer.
Somente alguns poucos conseguem ver o tesouro que há nele.
O campo é a Igreja.

O diabo depreda e devasta o campo,
mas não consegue atingir o tesouro.

Somente os que creem querem esse campo desprezível
e são escarnecidos por isso.

Como assim: você quer pagar tudo isso por esse campo comum?
Com esse valor você pode comprar dez campos melhores que esse.

Sim, eu quero a desprezível e escandalosa Igreja,
por causa do tesouro que encontrei nela:
A JUSTIÇA DA FÉ.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

BATISMO: SINAL OU MEIO DA GRAÇA? - LUTERO RESPONDE:

Desconheço uma catequese sobre o Batismo melhor que esta. Biblicamente, o Batismo é meio da graça, meio pelo qual Deus transmite a salvação, assim como a Pregação, a absolvição, a Eucaristia e o próprio Cristo, que é homem, o verdadeiro Sacramento, o Sacramento por excelência. Dr. Lutero debate aqui contra aqueles que consideram o Batismo mero sinal de uma graça invisível de Deus. Deus não opera a salvação de maneira imediata, ou seja: sem meios, à parte de sua Palavra. Assim como Deus deu o homem Jesus como meio da graça, ele dá o texto do Evangelho, a Pregação do Evangelho, o Batismo e a Eucaristia como meios de transmissão de sua graça. O sinal não tem valor em si mesmo, mas por ser o portador da Palavra de Deus, assim como a humanidade de Cristo é portadora da Palavra de Deus, encontrando nela todo o seu valor. Portanto, Dr. Lutero enlaça a doutrina dos sacramentos à cristologia de maneira muito impressionante e comovente.
Vai além! Ele dá valor sacramental a tudo o que o cristão faz em obediência à Palavra de Deus e em confiança à sua Promessa. Assim como o Batismo é uma coisa externa, a água, acrescida da Palavra de Deus, que confere poder a essa água, a esposa, o marido, os filhos, os pais, o próximo, as autoridades civis e eclesiásticas são coisas externas às quais Deus acresce a sua Palavra. Nossa fé é fortalecida pela Palavra de Deus quando a recebemos por meio desses muitos sinais que Deus nos apresenta. Até a pessoa mais vil do mundo pode ser um sinal para mim e um verdadeiro sacramento quando distingo nela a Palavra de Deus. 




"Não a partir das obras [v.5]. Banho regenerador. Tendes, aqui, o enaltecimento do Batismo, que é feito de um modo que dificilmente encontro no Novo Testamento. Ocultos sob o simulacro do amor, os inimigos da graça de Deus chegaram antes de nós e perverteram todas essas passagens. Por essa razão, esta passagem é um resumo das demais e uma conclusão. Entretanto, somos salvos pela misericórdia, diz ele. Mas por que caminho a misericórdia chega até nós? 'Pelo banho regenerador'. Eles argumentam: 'Banho regenerador pode referir-se à Palavra, ao Evangelho, ao Espírito Santo - a saber, ao fato de sermos batizados no Espírito. Ademais, se [o Espírito] é conferido, a afirmação de que o Batismo é lavar da regeneração significa que ele é o sinal daqueles que são regenerados'. Em outras palavras: atribui-se o banho dos regenerados àqueles que são regenerados por meio do Espírito Santo. E, se então, perguntamos através de que autoridade eles estabelecem essa interpretação, não tem ninguém em casa [para atender-nos]. Daí dizerem que nenhuma obra externa justifica ou traz algum benefício. E, contudo, o Batismo com água é uma 'coisa' desse tipo. Logo, sempre quando se faz menção do Batismo, [dizendo] que ele justifica, eles o glosam, como, [por exemplo], em Pedro [1 Pe 3:21]. Leem, ali, que o 'Batismo é o selo impresso pelo qual se declara que sois batizados pelo Espírito'. Também eu posso fazer uso dessa arte, até melhor, mas prefiro buscar obter deles uma prova quanto ao que dizem. Eu bem poderia dizer o seguinte: 'O sangue de Cristo não traz nenhum benefício, visto que é uma coisa externa. Cristo foi concebido pelo [Espírito Santo], como oramos; portanto, de nada serve seu sangue'. Tal é sua insensatez! Também nós dizemos que uma coisa externa nada é se ela estiver sozinha. Nesse caso, ela é totalmente inútil. E, no entanto, no momento em que estiver ligada à vontade de Deus, ela passa a servir e a trazer benefício por causa da vontade que lhe foi acrescentada (...). Diante desse argumento, não respondem com uma palavra sequer, continuando, apenas, a insistir no bordão da 'coisa externa'(...). Se, porém, Deus fixa sua Palavra a uma árvore, esta deixa de ser uma coisa meramente externa. Dá-se, antes, o contrário: surge aí, por meio da Palavra, a presença da vontade e da misericórdia de Deus, como ocorre no Batismo, que não é apenas água pura, pois [nele] está presente o nome ou todo o poder divino, o qual foi ajuntado ao Batismo pela Palavra, sendo o próprio Deus aquele que batiza. Atentai bem nisso, pois eles não ouvem, mas fixam-se rigidamente em sua ideia de que uma coisa externa nada vale. Acautelai-vos da loucura deles, pois uma coisa externa, quando tomada e ocupada pela Palavra de Deus, é salutar. Se a humanidade de Cristo fosse privada da Palavra, ela seria uma coisa vã. Agora, porém, somos salvos pelo seu sangue e corpo, uma vez que a esses foi juntada a Palavra. Assim, no Batismo, está presente a Palavra de Deus, pela qual é santificada a água, e, na água, nós.
Caso demonstreis que uma coisa externa não traz benefício por si mesma, mas pelo acréscimo da Palavra e da vontade divinas, tereis, também, destruído tanto o argumento deles como aquela sua glosa indevida. Trata-se do mesmo espírito de que Müntzer estava imbuído. Achava que era preciso isolar-se num canto qualquer, e que não se devia ler a Escritura nem ouvir a Palavra externa, mas olhar para o céu e, dali, receber o Espírito Santo. Só então haveria de olhar para o livro e, só então seria possível [ouvir], etc. Eles querem receber o Espírito Santo de modo puro e simples, sem nenhuma mediação, de sorte que Deus fale com eles à parte da Palavra e do Batismo. Aí temos os müntzerianos de hoje, visto que querem possuir o Espírito Santo por meio daquela solidão que esperam chegar ao seu coração. Não esperam, contudo, nada de fora (...). Pobres e míseros homens! Eles são forçados a confessar que nunca ouviram nada acerca de Cristo e dos sacramentos a não ser pela Palavra; e que jamais poderiam entender essas ideias senão por meio da Palavra. Mas aquilo que eles têm mediante seu próprio espírito, isso nós vemos: eles negam a humanidade de Cristo. Nós, porém, não chegamos a Deus a não ser por meio de Cristo. Deus o enviou ao mundo para que fosse Salvador, Is [62:11]. Se pudéssemos chegar ao Céu sem uma coisa exterior, Deus não teria tido a necessidade de enviá-lo. Mas Deus colocou-o na carne, na manjedoura. Depois, quando tirou o pecado e a morte, ele também o ofereceu através da sua Palavra no Batismo e no Sacramento, de modo que, por esses atos, tivéssemos certeza de que seu próprio Espírito chega até nós por esta Palavra, etc. Não busques o Espírito através dos exercícios da solidão ou por meio de preces. Antes, lê a Escritura. Quando uma pessoa sentir que as coisas que lê lhe são agradáveis, dê graças, pois esses são os primeiros frutos do Espírito. Essas coisas não te podem agradar a menos que o Espírito Santo tenha agido em ti. Quem ouve com prazer, ouve como uma nova [pessoa]. Isso é dom do Espírito Santo, e então é hora de orar: 'Senhor Jesus, tu me deste o conhecimento a teu respeito e a satisfação de conhecer-te. Aumenta [meus conhecimentos], preserva-os e fortalece-os'". (Dr. Lutero, Anotações de Lutero sobre a Epístola de Paulo a Tito, Obras Selecionadas volume 10, Editora Concórdia. Tradutor: Luís H. Dreher).

Autoria da introdução: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.