domingo, 13 de setembro de 2020

TEMOR E TREMOR - REFLEXÃO SOBRE A OBRA

 

Um homem comum. Assim Søren Kierkegaard descreve o herói da fé, no início de sua obra Temor e Tremor.

Não é um monge, uma pessoa com atitude religiosa óbvia, um indivíduo excêntrico, mas um homem comum, que realiza as atividades cotidianas. Só que em virtude do absurdo.

Ninguém é capaz de reconhecê-lo a partir de seus atos exteriores. Tudo ele faz em virtude do absurdo, o que é uma atitude interior e silenciosa.


ABRAÃO, O PAI DA FÉ




Por que Abraão merece ser honrado com o nome de pai da fé?

Recebe a ordem de Deus de sacrificar seu único filho, Isaque. Nada comunica à esposa, ao filho e ao escravo.

Percorre um caminho longo até o monte Moriá, onde deverá ser realizada a imolação.

Durante o percurso, não há em seu coração um sentimento de resignação. Ele tem plena convicção que Deus haverá de mudar de ideia. Deus haverá de voltar atrás em seu desígnio.

Mas é possível que Deus, a Suma Perfeição, tendo dito algo, porventura venha a mudar de opinião? É evidente que não. Há, portanto, em Abraão, o sofrimento pungente de desejar o absurdo. Quanto maior Deus lhe é, maior o absurdo se lhe apresenta: Deus mudar de ideia.

Sua luta consigo mesmo é silenciosa. Seu filho e o escravo não percebem a guerra que há em seu interior.

A angústia de Abraão não é motivada por algo infinito ou eterno. Não está resignado a reencontrar seu filho na eternidade. Sua angústia se volta a uma possibilidade finita ou temporal.

Ele não despreza a infinitude. Ele não despreza a eternidade. Tem plena convicção do eterno e busca-o com todo o seu ser. Porém angustia-se perante uma possibilidade finita. Seu olhar sobe ao celestial e retorna ao terreno. Um verdadeiro paradoxo se estabelece ali.

Assim é, para Kierkegaard, a fé. Depois de reconhecer a seriedade do que lhe é requerido. Depois de afastar as cortinas da eternidade, com o intuito de contemplá-la. Depois de amá-la verdadeiramente. Depois de toda essa experiência, ousa desejar o terreno.

A fé está relacionada à nossa experiência com o mundo, não com o celestial. No Céu não haverá fé. Sua serventia é para o nosso sofrido cotidiano em um mundo precário.

A fé é, portanto, um paradoxo. Ela se dirige ao infinito para obter o finito. Ela obtém o finito por via do absurdo. Sempre por via do absurdo! Pois quem prova as delícias celestes não deveria retroceder ao mundano. A consequência lógica seria o desprezo pelo mundo e uma vida contemplativa. Entretanto, o crente dá as costas ao eterno, volta-se ao terreno e engaja-se.

Evidentemente há conflito intenso. O crente não dá as costas ao eterno por desprezo. Na verdade, ele retorna amorosamente ao terreno por amor ao eterno, o que é paradoxal. Quanto mais ama o eterno, mais ardentemente ama o mundano e a ele se dedica. O eterno torna-se, de repente, serviçal da realidade mundana.

Ninguém é capaz de compreendê-lo. A ninguém pode pedir ajuda. Sua caminhada é sempre solitária. Não tem confidente algum.

O pagão ama o terreno por desconhecer o eterno. O religioso despreza o mundano por amar o eterno. São comportamentos consequentes ou plausíveis. Somente o verdadeiro crente, o herói da fé, ama o mundo como consequência de seu amor ao eterno. Esse comportamento é absurdo e paradoxal. Daí o conflito e a necessidade de silêncio.

Se Abraão contasse à sua esposa o que pretendia fazer, com o intuito de ser impedido por ela. Se ele buscasse uma evasiva ética para não cumprir o que lhe era exigido. Se ele se sacrificasse ao invés de sacrificar seu filho. Se assumisse qualquer dessas atitudes, seria justificado perante o mundo. Entretanto, perderia o que de fato importa: a eternidade. Estaria para sempre condenado perante Deus. Perante o SEU Deus!

Se, porém, cala-se e avança, em virtude do absurdo, então é um louco e até um imoral aos olhos do mundo. Nunca será compreendido por ninguém.

Abraão deseja ganhar o Céu sem perder a terra. Ama o Céu, jamais renunciaria a ele. Ama o terreno e quer seu filho de volta. E haverá de consegui-lo, com certeza, porém em virtude do absurdo.

 

“Grande é alcançar o eterno, mas maior ainda é guardar o temporal depois de a ele ter renunciado. (...) Com efeito, o movimento da fé deve constantemente efetuar-se em virtude do absurdo, mas – e aqui a questão é essencial – de maneira a não perder o mundo finito, antes, pelo contrário, a permitir ganhá-lo constantemente. (...) É necessária uma coragem puramente humana para renunciar a toda a temporalidade a fim de ganhar a eternidade; mas pelo menos conquisto-a e não posso, uma vez na eternidade, renunciar a ela sem contradição. Porém, torna-se indispensável a humilde coragem do paradoxo para alcançar, então, toda a temporalidade, em virtude do absurdo, e esta coragem só a dá a fé” (Temor e Tremor).

 

A FÉ E O DILEMA ÉTICO


O cristianismo sempre esteve contaminado por uma percepção errônea de que a fé se resume a uma vida virtuosa. Crente é aquele que põe em prática os lindos mandamentos de Jesus, sendo sempre gentil, cordial, amoroso, honesto, casto, liberal e compassivo. Crente é aquele que se sujeita inteiramente à ética e encontra nela a sua identidade.

Kierkegaard, em outra obra, afirma: “Uma das definições capitais do cristianismo é que o contrário do pecado não é a virtude, mas sim a fé” (O Desespero Humano).

Bem diferente do que muitos cristãos, direta ou  indiretamente, postulam, a fé não tem relação alguma com a ética, está infinitamente acima dela e pode ser considerada, inclusive, antiética.

Depois de apresentar a fé como um paradoxo, que reivindica o terreno por amor ao eterno, por via do absurdo, Kierkegaard dispõe sobre o dilema ético implicado nela.

Abraão está indo sacrificar seu filho. O mandato é de Deus, porém não público, não oficial. Não foi através de um sacerdote ou de um áugure. O mandato foi íntimo e certamente seria interpretado como loucura.

Abraão está indo sacrificar seu filho. Não pela nação, não pelo mundo, mas por si mesmo, por uma questão particular. Aos olhos do mundo, um crime motivado pelo egoísmo.

Conhecemos bem o fim, que salva Abraão e ainda lhe credita altos louvores. Mas se Abraão houvesse consumado o sacrifício, nós nunca o louvaríamos. Seria para sempre lembrado como o assassino movido pela loucura. E se sondássemos a motivação, com certeza seria julgado como egoísta depravado, a ser colocado na mesma condição de Nero. Abraão seria o criminoso que matou o filho por fanatismo.

Abraão está indo sacrificar seu filho. Uma vez consumado o sacrifício, estará perdido para o mundo. Não deverá voltar para casa. Para sempre será um fugitivo.

Abraão, no entanto, ama seu filho, ama sua família e deseja dias venturosos junto dos seus. Por isso, ousa acreditar que o absurdo há de acontecer: Deus irá mudar de ideia.

Não renuncia a Deus e prossegue. Não renuncia ao mundo e deseja ardentemente que o absurdo se concretize.

Longe de um mero cumprimento de regras. Muito longe de atender às expectativas da ética, a fé é um paradoxo ético. Ela está por fazer de Abraão um assassino cruel!

Todas as relações entre indivíduos são mediadas pela ética. Não é possível escapar dela em nenhum de nossos atos exteriores. Mesmo nos atos íntimos ela está presente, pois intimamente nos relacionamos conosco mesmos e com Deus. Portanto, em toda relação entre indivíduos a ética se impõe como determinação intermediária.

Tudo o que é compreensível está dentro dos limites da ética. Mesmo em tempos como o nosso, em que se busca relativizar a ética, ainda assim ela persiste como determinação intermediária.

O pecado é visto, então, como a individuação. É quando alguém se posiciona como eu perante a ética e a desafia. Essa pessoa deverá ser trazida ao arrependimento, que significa a dissolução de seu eu no comum, que é a ética. Deverá renunciar ao eu para tornar-se o geral.

A fé não está dentro dos limites da ética. Através da fé, o homem encontra-se em relação absoluta com o absoluto. Ele está acima da ética. Veja o quanto Kierkegaard coloca a fé longe da perfeição ética como sua verídica forma de expressão! Em momento algum ele denota a influência luterana de forma tão veemente como aqui.

O homem torna-se indivíduo, em relação absoluta com o absoluto.

Em que aspecto ele difere, então, do pecador, que deverá ser reabilitado? Ambos são indivíduos e portam-se contra o geral.

É que o verdadeiro crente ama o geral. Ele experimentou e ama a ética. Sua relação com o absoluto não tira dele o apreço pelo comum. Muito pelo contrário, o crente deseja o comum, deseja o ético, mas sabe que isso não é mais possível fora do paradoxo.

O que dita o comportamento do crente não é a ética, mas o absoluto. Em sua consciência ele sabe o que lhe é mister fazer ou não. Ele ama o geral, porém não age em nome do geral. Age sempre em nome do absoluto.

É do absoluto que o crente recebe a verdadeira ética, seja ela compreendida ou não pelo geral.

Porém, como paradoxalmente ama o terreno, deseja e crê que o absoluto venha a expressar-se no comum.

Ninguém ensina ao verdadeiro crente o que é ético ou não. Ele aprende do próprio Deus, intimamente, em sua consciência. Nada é mais paradoxal e perigoso do que isso! A quantos mal-entendidos o crente não se sujeita? Quantas vezes, por fugir do geral, não é considerado egoísta, desafeiçoado, fanático, mentiroso, omisso, seja lá o que for pior aos olhos do mundo?

É pela relação individual absoluta com o absoluto que muitos se deixam morrer, quando recusam renunciar à fé. E por que são mortos, senão porque transgridem o geral? E que geral transgridem, senão aquele no qual estão inseridos e que amam? Essas pessoas se deixam morrer pelo comum, para que este se transforme, para que este se eleve ao patamar divino. Quando se deixam morrer, não pensam em méritos perante Deus, mas no bem que fazem ao mundo. E aí está, novamente, o paradoxo da fé.


“Se supomos relativamente fácil ser Indivíduo, pode-se estar seguro que não se é cavaleiro da fé: porque os pássaros em liberdade e os gênios vagabundos não são os homens da fé. Pelo contrário, o cavaleiro da fé sabe que é magnífico pertencer ao geral. (...) Sabe quanto é belo ter nascido como Indivíduo que tem no geral a sua pátria, a sua acolhedora casa, sempre pronta a recebê-lo todas as vezes que lá queira viver. Mas sabe, ao mesmo tempo, que acima desse domínio, serpenteia um caminho solitário, estreito e escarpado; sabe quanto é terrível ter nascido isolado, fora do geral, caminhar sem encontrar um único companheiro de viagem. Sabe perfeitamente onde se encontra e como se comporta em relação aos homens. Para eles, é louco e não pode ser compreendido por ninguém. E, no entanto, louco é o menos que se pode dizer” (Temor e Tremor).


KIERKEGAARD E A TEOLOGIA LUTERANA

 

Verificamos que fé, para Kierkegaard, não é uma experiência coletiva. Não se deve buscar a fé numa coletividade, nem mesmo na Igreja. A fé é sempre uma experiência individual. Kierkegaard afirma que a fé é a mais elevada paixão de um homem!

Então devemos nos lembrar da ênfase de Lutero sobre a experiência individual da fé. O homem é convocado pelas Escrituras a estar sozinho perante Deus, através de sua consciência. Nessa relação exclusiva entre homem e Deus, que se dá no palco da consciência, qualquer intervenção do geral, inclusive da autoridade da Igreja, será inútil. 

Em sua consciência, o homem se reconhece pecador e indigno de Deus. Em sua consciência, o homem crê na misericórdia divina e a ela se prende. Em sua consciência, o homem está certo de sua salvação eterna. Muito embora a Igreja ofereça a absolvição de pecados, a Pregação e os sacramentos, é na consciência que o indivíduo comparece solitariamente perante Deus, nele confia e dele obtém a Graça.

A fé não é uma experiência ética, denotada pelo cumprimento de regras. Pelo contrário, a fé está acima da ética, pois coloca o indivíduo em relação absoluta com Deus, por meio da consciência. A ética não entra como determinação intermediária entre o crente e o mundo. O crente sabe o que deve fazer, quando fazer e como fazer. E o sabe da boca de Deus!

Sua postura perante o geral não é, porém, altiva, como seria a de um criminoso. Ele está em relação absoluta com o absoluto para o bem do comum. Isso o coloca em posição sacerdotal perante o mundo.

De acordo com a teologia luterana, o homem interior está acima da Lei e desonerado dela, pois é perfeito. O homem interior está em relação absoluta com o absoluto, sabe exatamente o que fazer, quando fazer e como fazer.

Entretanto, todo crente é um sacerdote. Sua relação absoluta com Deus não o isola do mundo, antes o responsabiliza perante o mundo. 

O sacerdócio não deve ser compreendido apenas em seu significado religioso evidente, mas como serviço ao próximo, motivado pelo amor. Para Lutero há dois tipos de  justificação: a passiva e a ativa. O homem é, primeiro, justificado perante Deus, por meio da fé, em sua consciência (justificação passiva). Depois, ele se dirige ao mundo como verdadeiro sacerdote, com o intuito de servi-lo com boas obras (justificação ativa).

Por fim, em toda a obra de Kierkegaard, a fé é um tema existencial. Torna a vida um verdadeiro dilema. A fé é toda paradoxal. Paradoxo que se torna patente não na relação do homem com Deus, mas na relação consigo mesmo e com o mundo, ou seja, no âmbito existencial.

A experiência com o eterno não faz o crente se afastar do mundo, como fizeram tantos monges. A experiência com o eterno resulta, paradoxalmente, em amor pelo temporal. A experiência da fé não torna o cristão indiferente ao mundo, porém muito mais amoroso e, por conseguinte, muito mais vinculado que antes. Nem mesmo o pagão ama tanto este mundo quanto um verdadeiro cristão. Entretanto, o cristão nada faz fora da fé, ou seja, sem ter Deus diante de si, em sua consciência.

 

Autoria: Carlos Alberto Leão

Imagem extraída da internet.