segunda-feira, 31 de outubro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? PARTE 2


São Tiago trata de uma espécie de fé que não é capaz de justificar. Essa fé não vem acompanhada de obras. Para S. Tiago, a fé que justifica é necessariamente a fé que resulta em obras. Ao falar em justificação por obras, ele apresenta a fé que está vestida de obras, que Lutero chamaria de "fé composta" ou "fé encarnada". Lutero trabalha com os conceitos de fé simples e fé composta. A primeira é a fé bruta, isenta de obras, em seu sentido absoluto ou substancial. Somente essa fé justifica. A segunda é a fé vestida de obras, é a maneira como a fé pode ser vista e admirada. 
Ninguém pode enxergar a fé absoluta, mas enxergamos e apreciamos as obras que advêm dela, que são sua roupagem, sua apresentação. Quando enxergamos uma obra de misericórdia, entendemos que a misericórdia não justifica, mas a fé vestida de misericórdia, que se apresenta como misericórdia, composta de misericórdia, esta sim justifica. A mesma obra realizada por um incrédulo jamais justificaria, antes seria um pecado mortal, um atrevimento, uma abominação perante Deus, pois esse incrédulo quer ser seu próprio salvador. Atente-se ao que S. Tiago diz: "foi pelas obras que a fé se consumou" (S. Tiago 2:22).
São Tiago denuncia a fé histórica, a fé dos escribas e fariseus, a fé que é forjada pelo estudo, a "fé do diabo". Assim afirma ele: "Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios creem e tremem" (S. Tiago 2:19). A fé histórica é fruto de disciplina e aprendizado, pode ser ensinada aos outros, mas é ineficaz, não redunda em mudança de vida, em verdadeira conversão, pois reside somente no intelecto e não toca o espírito. A fé histórica gera soberba. 
Há muita fé histórica na Igreja de hoje, basta que nos lembremos das pessoas que comem umas às outras nas redes sociais, sem qualquer misericórdia no trato com o outro. A fé histórica valoriza mais o conhecimento que Deus e a vida humana, não tem qualquer responsabilidade pelo outro e não transforma o coração humano, que continua tão pagão e empedernido quanto antes. A fé histórica é um grave abuso e resultará em inferno, a menos que a pessoa se converta de fato. 
A pessoa que mais entende de Escritura e que seria o maior professor de Teologia é o próprio diabo. Ele conhece como ninguém a doutrina cristã, a justificação somente pela fé, e recita de cor e salteado todo o texto das Escrituras, a Confissão de Augsburgo, o Catecismo da Igreja Católica e todas as confissões protestantes, nem por isso é capaz de louvar a Deus, render-lhe culto sincero, arrepender-se dos pecados e amar de fato. A fé histórica é uma árvore infértil, embora muito bonita e louvada. Ah, essa fé jamais justificaria, antes condena ao inferno e leva outros ao inferno também. Nada que o homem produz é capaz de salvá-lo, muito menos essa pseudofé. 
Enquanto S. Tiago exalta a fé composta, vestida de boas obras, visível a todos e extremamente bela, São Paulo detém-se na fé absoluta ou simples, devido às controvérsias entre ele e os cristãos judaizantes. Contra o pensamento judeu, infiltrado na Igreja, que as obras devem complementar à fé, ele se posiciona radicalmente a favor da fé absoluta, aquela que é invisível, só inteligível, porque ainda não se manifestou em obra alguma. Para S. Paulo, a fé justifica e salva antes mesmo de se revelar em obras, antes de qualquer obra, ou seja: em seu estado bruto, da maneira como é vista por Deus e ainda alheia aos homens. São Paulo não quer a joia, mas o diamante bruto. Cristo ama sua noiva pelo que ela é, não pelos trajes que ela usa. 
São Paulo, porém, não despreza as obras da Lei ou o cumprimento da Lei. Na verdade, ele deseja ardentemente cumprir a Lei, mas está certo que o cumprimento da Lei só é possível através da fé e por causa da fé. O descrente não cumpre uma lei sequer, ainda que seja a pessoa mais generosa e caridosa do mundo, ainda que seja premiado com o Nobel da Paz. Dessa maneira S. Paulo se expressa: "Anulamos, pois, a Lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a Lei" (Romanos 3:31). 
Ambos, São Tiago e S. Paulo, direcionam seu olhar para a verdadeira fé, este milagre divino que transforma a realidade humana, que circuncida o coração, que converte o coração a Deus e ao próximo, que transforma o não querer em querer, que faz nascer de novo, que determina novidade de vida. É a fé que ama e testemunha. 
Essa fé justifica e salva, coisa que a fé histórica é incapaz de fazer, porque é um simulacro hediondo da verdadeira fé, operado por nossa natureza rebelde, que deseja a todo o custo ser igual a Deus. Sobre isso se posicionam S. Tiago e S. Paulo praticamente com as mesmas palavras: "Tornai-vos, pois, praticantes da Palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos" (S. Tiago 1:22) e "diante de Deus não são justos os que ouvem a Lei, mas os que cumprem a Lei" (Romanos 2:13), palavras de S. Paulo. Cuide, porém, de nunca achar que suas boas obras merecem algo de Deus se desprovidas de fé. Igualmente, aprenda a louvar a Deus por cada boa obra que você realiza, pois a fé não é dom da razão, mas dom de Deus (Efésios 2:8).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

domingo, 30 de outubro de 2016

FÉ OU OBRAS, PAULO OU TIAGO? - PARTE 1

"Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça e: Foi chamado amigo de Deus. Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente" (S. Tiago 2:21-24).

"Que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne? Porque, se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. E é assim que Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribuiu justiça, independentemente de obras. Vem, pois, esta bem-aventurança exclusivamente sobre os circuncisos ou também sobre os incircuncisos? Visto que dizemos: a fé foi imputada a Abraão para justiça. Como, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regime da circuncisão, e sim quando incircunciso. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de todos os que creem, embora não circuncidados, a fim de que lhes fosse imputada a justiça" (Romanos 4:1-3, 6, 9-11).


Supondo que a carta de S. Tiago tenha de fato origem apostólica, o que não é certo, isso é notório, é de se esperar que houvesse um debate entre S. Tiago e S. Paulo, por suas opiniões divergentes.
São Tiago parece afirmar que o homem não é justificado somente pela fé, mas que deve colaborar com boas obras. Desenvolvendo a ideia, concluiríamos que a justificação seria fruto não só da fé, mas da bondade humana, que seria aceita por Deus como bondade absoluta à qual lhe cabe recompensar. Duas justiças atuariam juntas: a Justiça de Cristo, que é imputada ao homem por Deus, e a justiça humana. Em outras palavras, levando o raciocínio às últimas consequências, haveria uma equivalência entre Justiça divina e justiça humana ou a Justiça divina teria que ser complementada pela justiça humana.
Por outro lado, está S. Paulo que atribui tudo à fé. Somente ela justifica e toda a justiça válida perante Deus vem dele mesmo, é Deus quem imputa ao homem a perfeita Justiça de Cristo, tornando-o tão justo quanto Cristo. Nenhuma obra anterior a esse ato de Deus, nenhuma obra posterior a esse ato de Deus, tem o poder de justificar, mas somente a fé, que apreende a Justiça de Cristo. É necessário ao homem participar de Cristo para ser justo perante Deus. Essa participação só é possível  ao que crê. Não há duas justiças que justificam, mas uma só: a de Cristo, que é perfeita. Também cita Abraão como exemplo, mas de maneira diferente do que fez S. Tiago, porque diz que Abraão foi declarado justo por Deus antes mesmo de ele ser circuncidado, antes da Lei, antes das obras da Lei, quando ele somente creu. Aqui S. Paulo nega enfaticamente o poder da Lei de justificar e salvar. Em outra parte, ele diz: "E é evidente que, pela Lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé" (Gálatas 3:11).
Não devemos esperar por um debate entre esses dois, porque cremos que Deus Espírito Santo dirige a história da Sagrada Escritura e foi ele quem colocou em seu cânon as epístolas paulinas e essa epístola atribuída a S. Tiago. Dentro deste espírito, não devemos afirmar que um dos dois está errado, que um dos dois é herege, que a carta de S. Tiago não deveria estar nas Escrituras, muito menos que as epístolas paulinas fossem extirpadas. O lógico é concluir que S. Tiago deve ser entendido à luz do que afirmou S. Paulo, e vice-versa. São Tiago e S. Paulo devem estar dizendo a mesma coisa. Caso contrário, um dos dois é herege, o que é inadmissível. Portanto, a contradição entre S. Tiago e S. Paulo é apenas aparente, fruto de uma leitura rápida, desatenta e tendenciosa. Quer dizer, a contradição se encontra no leitor e não nos autores.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

UM CAMPO VULGAR



O Cristianismo será um caos enquanto o diabo for diabo.
A única ordem que existe nele é matéria de fé, 
não está ao alcance dos olhos.
A fé é assim: ela oculta dos escarnecedores tudo o que é sagrado.
Somente aos pequeninos ela revela algo.

O Reino de Deus é um tesouro sepultado no campo.
Todos veem um campo qualquer.
Somente alguns poucos conseguem ver o tesouro que há nele.
O campo é a Igreja.

O diabo depreda e devasta o campo,
mas não consegue atingir o tesouro.

Somente os que creem querem esse campo desprezível
e são escarnecidos por isso.

Como assim: você quer pagar tudo isso por esse campo comum?
Com esse valor você pode comprar dez campos melhores que esse.

Sim, eu quero a desprezível e escandalosa Igreja,
por causa do tesouro que encontrei nela:
A JUSTIÇA DA FÉ.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

BATISMO: SINAL OU MEIO DA GRAÇA? - LUTERO RESPONDE:

Desconheço uma catequese sobre o Batismo melhor que esta. Biblicamente, o Batismo é meio da graça, meio pelo qual Deus transmite a salvação, assim como a Pregação, a absolvição, a Eucaristia e o próprio Cristo, que é homem, o verdadeiro Sacramento, o Sacramento por excelência. Dr. Lutero debate aqui contra aqueles que consideram o Batismo mero sinal de uma graça invisível de Deus. Deus não opera a salvação de maneira imediata, ou seja: sem meios, à parte de sua Palavra. Assim como Deus deu o homem Jesus como meio da graça, ele dá o texto do Evangelho, a Pregação do Evangelho, o Batismo e a Eucaristia como meios de transmissão de sua graça. O sinal não tem valor em si mesmo, mas por ser o portador da Palavra de Deus, assim como a humanidade de Cristo é portadora da Palavra de Deus, encontrando nela todo o seu valor. Portanto, Dr. Lutero enlaça a doutrina dos sacramentos à cristologia de maneira muito impressionante e comovente.
Vai além! Ele dá valor sacramental a tudo o que o cristão faz em obediência à Palavra de Deus e em confiança à sua Promessa. Assim como o Batismo é uma coisa externa, a água, acrescida da Palavra de Deus, que confere poder a essa água, a esposa, o marido, os filhos, os pais, o próximo, as autoridades civis e eclesiásticas são coisas externas às quais Deus acresce a sua Palavra. Nossa fé é fortalecida pela Palavra de Deus quando a recebemos por meio desses muitos sinais que Deus nos apresenta. Até a pessoa mais vil do mundo pode ser um sinal para mim e um verdadeiro sacramento quando distingo nela a Palavra de Deus. 




"Não a partir das obras [v.5]. Banho regenerador. Tendes, aqui, o enaltecimento do Batismo, que é feito de um modo que dificilmente encontro no Novo Testamento. Ocultos sob o simulacro do amor, os inimigos da graça de Deus chegaram antes de nós e perverteram todas essas passagens. Por essa razão, esta passagem é um resumo das demais e uma conclusão. Entretanto, somos salvos pela misericórdia, diz ele. Mas por que caminho a misericórdia chega até nós? 'Pelo banho regenerador'. Eles argumentam: 'Banho regenerador pode referir-se à Palavra, ao Evangelho, ao Espírito Santo - a saber, ao fato de sermos batizados no Espírito. Ademais, se [o Espírito] é conferido, a afirmação de que o Batismo é lavar da regeneração significa que ele é o sinal daqueles que são regenerados'. Em outras palavras: atribui-se o banho dos regenerados àqueles que são regenerados por meio do Espírito Santo. E, se então, perguntamos através de que autoridade eles estabelecem essa interpretação, não tem ninguém em casa [para atender-nos]. Daí dizerem que nenhuma obra externa justifica ou traz algum benefício. E, contudo, o Batismo com água é uma 'coisa' desse tipo. Logo, sempre quando se faz menção do Batismo, [dizendo] que ele justifica, eles o glosam, como, [por exemplo], em Pedro [1 Pe 3:21]. Leem, ali, que o 'Batismo é o selo impresso pelo qual se declara que sois batizados pelo Espírito'. Também eu posso fazer uso dessa arte, até melhor, mas prefiro buscar obter deles uma prova quanto ao que dizem. Eu bem poderia dizer o seguinte: 'O sangue de Cristo não traz nenhum benefício, visto que é uma coisa externa. Cristo foi concebido pelo [Espírito Santo], como oramos; portanto, de nada serve seu sangue'. Tal é sua insensatez! Também nós dizemos que uma coisa externa nada é se ela estiver sozinha. Nesse caso, ela é totalmente inútil. E, no entanto, no momento em que estiver ligada à vontade de Deus, ela passa a servir e a trazer benefício por causa da vontade que lhe foi acrescentada (...). Diante desse argumento, não respondem com uma palavra sequer, continuando, apenas, a insistir no bordão da 'coisa externa'(...). Se, porém, Deus fixa sua Palavra a uma árvore, esta deixa de ser uma coisa meramente externa. Dá-se, antes, o contrário: surge aí, por meio da Palavra, a presença da vontade e da misericórdia de Deus, como ocorre no Batismo, que não é apenas água pura, pois [nele] está presente o nome ou todo o poder divino, o qual foi ajuntado ao Batismo pela Palavra, sendo o próprio Deus aquele que batiza. Atentai bem nisso, pois eles não ouvem, mas fixam-se rigidamente em sua ideia de que uma coisa externa nada vale. Acautelai-vos da loucura deles, pois uma coisa externa, quando tomada e ocupada pela Palavra de Deus, é salutar. Se a humanidade de Cristo fosse privada da Palavra, ela seria uma coisa vã. Agora, porém, somos salvos pelo seu sangue e corpo, uma vez que a esses foi juntada a Palavra. Assim, no Batismo, está presente a Palavra de Deus, pela qual é santificada a água, e, na água, nós.
Caso demonstreis que uma coisa externa não traz benefício por si mesma, mas pelo acréscimo da Palavra e da vontade divinas, tereis, também, destruído tanto o argumento deles como aquela sua glosa indevida. Trata-se do mesmo espírito de que Müntzer estava imbuído. Achava que era preciso isolar-se num canto qualquer, e que não se devia ler a Escritura nem ouvir a Palavra externa, mas olhar para o céu e, dali, receber o Espírito Santo. Só então haveria de olhar para o livro e, só então seria possível [ouvir], etc. Eles querem receber o Espírito Santo de modo puro e simples, sem nenhuma mediação, de sorte que Deus fale com eles à parte da Palavra e do Batismo. Aí temos os müntzerianos de hoje, visto que querem possuir o Espírito Santo por meio daquela solidão que esperam chegar ao seu coração. Não esperam, contudo, nada de fora (...). Pobres e míseros homens! Eles são forçados a confessar que nunca ouviram nada acerca de Cristo e dos sacramentos a não ser pela Palavra; e que jamais poderiam entender essas ideias senão por meio da Palavra. Mas aquilo que eles têm mediante seu próprio espírito, isso nós vemos: eles negam a humanidade de Cristo. Nós, porém, não chegamos a Deus a não ser por meio de Cristo. Deus o enviou ao mundo para que fosse Salvador, Is [62:11]. Se pudéssemos chegar ao Céu sem uma coisa exterior, Deus não teria tido a necessidade de enviá-lo. Mas Deus colocou-o na carne, na manjedoura. Depois, quando tirou o pecado e a morte, ele também o ofereceu através da sua Palavra no Batismo e no Sacramento, de modo que, por esses atos, tivéssemos certeza de que seu próprio Espírito chega até nós por esta Palavra, etc. Não busques o Espírito através dos exercícios da solidão ou por meio de preces. Antes, lê a Escritura. Quando uma pessoa sentir que as coisas que lê lhe são agradáveis, dê graças, pois esses são os primeiros frutos do Espírito. Essas coisas não te podem agradar a menos que o Espírito Santo tenha agido em ti. Quem ouve com prazer, ouve como uma nova [pessoa]. Isso é dom do Espírito Santo, e então é hora de orar: 'Senhor Jesus, tu me deste o conhecimento a teu respeito e a satisfação de conhecer-te. Aumenta [meus conhecimentos], preserva-os e fortalece-os'". (Dr. Lutero, Anotações de Lutero sobre a Epístola de Paulo a Tito, Obras Selecionadas volume 10, Editora Concórdia. Tradutor: Luís H. Dreher).

Autoria da introdução: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.