quinta-feira, 30 de abril de 2015

EIS QUE ESTOU CONVOSCO ATÉ À CONSUMAÇÃO DO SÉCULO - PARTE 2



"Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século " (Evangelho segundo S. Mateus 28:18-20).
Pequenos equívocos podem nos furtar tremendos consolos. Quem leu a publicação anterior, com o mesmo título, deve ter questionado: Que o título tem a ver com o assunto?
É que eu quis abordar primeiramente a presença constante dos mistérios em nossa vida, para depois prosseguir em minha reflexão. De fato, muita coisa é simplesmente inexplicável. Mas que doçura há nos mistérios! Quanta doçura encontramos nas palavras acima, em que Jesus promete estar conosco até à consumação do século!
Ele partiu para o Pai. Enviou-nos o Espírito Santo, como consolador e auxiliador, sem o qual jamais chegaríamos ao conhecimento do Pai. Jesus está junto ao Pai, intercedendo continuamente por nós. Mas algo ele faz além: está verdadeiramente conosco, EM PESSOA!
Sentiu a diferença? Quando você ora, tem ao seu lado, bem próximo de você, dentro de você, o próprio Jesus EM PESSOA!
Em meio a tanta miséria, esse consolo é tudo para nós! Cristãos sendo severamente perseguidos, expulsos de seus países, pagando com a vida a fé que têm. Quantos assassínios, massacres, deslocamentos o mundo tem presenciado neste século! Não devemos dispensar nenhum consolo que a fé pode nos dar, por menor que seja. Que dizer então deste tão imenso consolo?
No século V da era cristã, houve um clérigo muito importante, bispo de Constantinopla, chamado Nestório, que começou a ensinar uma doutrina estranha. Na verdade, nada de estranho à nossa razão, onde o perigo sempre habita. Em todos os aspectos, cheíssimo de razão! mas nem por isso, correto em suas conclusões. Porque uma coisa é estar com a razão, outra muito diferente é estar certo, principalmente em se tratando de coisas espirituais.
Nestório acreditava que Jesus era verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Pouco antes, a heresia dos arianos havia sido rebatida pelo Concílio de Niceia. Vale lembrar que Ário negava a divindade de Jesus, atribuindo-lhe somente o título de Deus, na qualidade de seu representante no mundo. Algo muito racional, pois Jesus é homem, mostrou diversas vezes sua fragilidade humana, declarou estar sujeito ao Pai, foi morto e é inegável, com base nas Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, a existência de um só Deus. Portanto, Ário fez pleno uso de sua razão. Felizmente, nossos pais defenderam com bravura a doutrina de que Jesus Cristo não é somente homem, mas Deus, consubstancial ao Pai. A Bíblia está cheia de textos que deixam isso muito claro.
Mas como Jesus poderia ser Deus e homem? É escandaloso demais! Afinal aquilo que atribuímos a Deus, negamos ao homem. Deus é eterno, imutável, infinito, onisciente, onipresente, incriado. O homem, por outro lado, está sujeito ao tempo, é mutável, finito, tem conhecimento muito limitado, está restrito pelo espaço e é uma criatura. Como conciliar ambas as verdades? Fato inegável pelas Escrituras, mas de impossível compreensão.
"Ele (Jesus) é a IMAGEM do Deus invisível"; "pois nele (ou através dele) foram criadas todas a coisas, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis"; "porquanto, nele, habita, CORPORALMENTE, toda a plenitude da Divindade"; "pois ele, subsistindo em FORMA DE DEUS, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens e reconhecido em figura humana" (S. Paulo).
Embora haja quem diga, e são muitos! que a doutrina da divindade de Jesus Cristo foi inventada pelo Concílio de Niceia, sinto muito em dizer que, se houve invenção, ela veio do próprio apóstolo S. Paulo, com coparticipação unânime de todos os outros apóstolos, especialmente de S. João. Jesus Cristo de fato é Deus e, se isso é uma mentira, quem mentiu foi S. Paulo, com a anuência dos demais apóstolos.
Então Nestório ficou matutando: "Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Concordo com isso! Também é uma só pessoa, não há como negar". Deveria ter parado por aí, mas infelizmente avançou: "Entretanto, jamais se poderá dizer que Maria é mãe de Deus, porque ela é mãe somente da humanidade de Jesus, já que a divindade, sendo eterna e incriada, não tem mãe".
Parece algo simples, sem consequência, mas essa negativa de Nestório valeu um concílio, na cidade de Éfeso. A questão é que Nestório foi vítima da razão ao dividir Jesus em duas pessoas: uma divina e outra humana. Segundo ele, não se poderia atribuir à humanidade de Jesus qualquer coisa que fosse exclusivamente de Deus. Com isso, estava partindo Jesus ao meio. Afinal, se uma natureza não se comunica com a outra, não há mais unidade.
Veja que esse equívoco de Nestório é muito atual. Até hoje muitos se escandalizam quando nós, luteranos, dizemos que Maria é mãe de Deus. Temendo a mariolatria, entram em contradição, exatamente a mesma de Nestório.
Quando afirmamos que Maria é mãe de Deus, nós nos baseamos na Bíblia. Santa Isabel profetizou: "Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre. E de onde me provém que me venha visitar A MÃE DO MEU SENHOR?" (Lucas 1:43). S. Paulo afirmou: "Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho (ou seja: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, consubstancial ao Pai), nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei" (Gálatas 4:4-5).
É óbvio que não queremos divinizar Maria ao atribuir-lhe a graça de ser mãe de Deus. Na verdade, desde o início, a intenção de quem assim confessava era demonstrar sua fé na divindade e humanidade de Cristo em uma só pessoa indivisa.
Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ele é o Verbo (Lógos) ou a Sabedoria de Deus, é essencialmente Deus, está com Deus, mas é homem como nós. Não podemos aqui imaginar duas naturezas justapostas, como dois livros, um ao lado do outro. Muitos imaginam a relação das duas naturezas de Jesus Cristo exatamente como dois livros de um box. Na verdade, as duas naturezas estão infiltradas uma na outra, fundidas na pessoa de Cristo, de maneira muito mais íntima e profunda que a união pessoal de corpo e alma.
Como afirmei em outra publicação, o Verbo de Deus, sendo Deus verdadeiro, Deus em essência, com todos os atributos divinos, a fim de nos redimir, assumiu a nossa humanidade de maneira permanente. Somente assim esse Verbo poderia representar-nos perante o Pai, sujeitar-se à Lei, padecer e morrer. Tudo aquilo que lhe era impossível, na qualidade de Verbo de Deus e Deus, tornou-se possível a partir do momento em que assumiu a nossa humanidade, de maneira mais íntima que a união entre pele e carne, entre corpo e alma.
Como se diz: ajoelhou, tem de rezar. Se confessamos que Jesus Cristo é Deus e homem em uma só pessoa indivisa, conforme nos atestam os evangelistas e apóstolos, temos de ir até às últimas consequências com isso. Não podemos parar pela metade. Não podemos deixar que a razão tome conta.
Nós, luteranos, fomos muito mal compreendidos, quando nos acusaram de pregar a mistura da essência divina com a essência humana, que é uma heresia antiga da Igreja, atribuída a Êutiques. Na verdade, o que nós ensinamos é o que a Bíblia e os pais da Igreja ensinam: Não há mistura das duas naturezas. A divindade continua sendo divindade. A humanidade continua sendo humanidade. Jesus Cristo não é um híbrido de humanidade e divindade. Entretanto, suas duas naturezas, embora diametralmente opostas, estão fundidas em sua pessoa de tal maneira que, nele, pode-se afirmar sem erro que Deus é homem e homem é Deus.
Após a encarnação do Verbo, não encontramos um texto sequer da Bíblia que nos mostre a divindade de Jesus atuando à parte de sua humanidade, nem o oposto. Em todos as passagens do Evangelho, Jesus é Deus e homem. Quando repreendeu a tempestade, andou sobre as águas, multiplicou pães e peixes, perdoou pecados e ressuscitou mortos. Quando disse: "Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra". Quando se transfigurou perante os discípulos Pedro, Tiago e João. Enfim, em todos os acontecimentos em que percebemos claramente a sua divindade em ação, ela agiu por meio de sua humanidade. Igualmente, quando sentiu fome, pesar; quando chorou, transpirou sangue; também ao padecer sob Pôncio Pilatos, em sua crucificação, morte e sepultamento, ali não estava a sua humanidade a padecer sozinha as suas carências. Deus estava com ela, padecendo junto. Aqui padecer é LITERAL!
É fácil atribuir divindade à humanidade de Jesus. Difícil é fazer o intercâmbio oposto, embora não haja nenhuma restrição a respeito na Bíblia. Muito pelo contrário, negar esse intercâmbio bilateral é dividir a pessoa de Jesus em duas partes.
É dito sobre Jesus Cristo: "Dessarte, matastes o Autor da vida" (Atos 3:15); "sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória" (1 Coríntios 2:8); "visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia" (Hebreus 6:6).
S. Pedro e S. Paulo deixam claro que não foi a natureza humana de Jesus Cristo que foi crucificada e morta, mas Jesus Cristo inteiro, homem e Deus, destacando inclusive sua divindade, para evitar erros a respeito: Autor da vida, Senhor da glória e Filho de Deus.
É muito simples chegar e dizer: Maria não é mãe de Deus, mas da natureza humana de Jesus. Entretanto, isso depois nos leva naturalmente à seguinte conclusão: Deus não pode morrer. Portanto, quem morreu na cruz não foi Deus, mas somente a natureza humana de Cristo.
Que consequências tais reflexões teriam para a nossa fé? Veja que Nestório parece não ter pensado tanto nas consequências, ao permitir que sua razão tentasse harmonizar verdades tão sublimes. Muitas vezes nós também não nos damos conta das consequências do que estamos ensinando.
Quando negamos a unidade da divindade com a humanidade, na pessoa indivisa de Jesus Cristo, e insistimos em dizer que algumas obras foram executadas pela natureza humana, enquanto que outras foram executadas pela natureza divina, como dois personagens de uma peça, chegamos ao primeiro prejuízo à fé: Não foi Deus quem morreu por nós; foi um homem. A obra em si não foi meritória, visto ter sido praticada por um homem. Deus Pai é que soberanamente atribuiu mérito a essa obra.
Isso é tão perigoso! Quer dizer que qualquer um de nossos mártires: S. Paulo, S. Pedro, S. Sebastião, Santa Felicidade e Santa Perpétua poderia ter expiado o pecado da humanidade, bastasse Deus Pai, em sua soberania, ter atribuído a essa obra humana o mérito necessário. Fico pensando: se assim fosse, por que Deus não permitiu a Abraão consumar o sacrifício de Isaque? Ele poderia muito bem ter atribuído mérito redentor a esse derramamento de sangue, poupando seu dileto Filho de tanto trabalho.
Está vendo para onde nos conduz a razão? Não é à toa que Dr. Martinho Lutero a trata de bruxa, porque ela nos enreda com seus argumentos e nos conduz a conclusões inconvenientes, perigosas até.
Jesus Cristo inteiro, Deus e homem, padeceu e morreu na cruz pelos pecados da humanidade. O mérito está na sua obra por ser ele Deus. Não foi o Pai que atribuiu mérito a essa obra. Ela é sumamente meritória, porque praticada pelo próprio Deus. Como é impossível a Deus morrer, ele se encarnou e, desde então, não se tem notícia de que o Verbo de Deus, o eterno Lógos, tenha agido fora da humanidade assumida.
Afirmou Dr. Martinho Lutero o seguinte, a respeito: "Pois nós, cristãos, temos que estar cientes do seguinte: quando Deus não está na balança, fazendo peso, caímos no abismo com nosso prato. O que quero dizer é isto: onde não se afirma que Deus morreu por nós, mas somente um homem, estamos perdidos. Quando, porém, a morte de Deus e "Deus morreu" pesam no prato da balança, este baixa e nós subimos, como um prato leve e vazio. No entanto, ele pode também subir novamente e saltar do prato. Ele, porém, não poderia estar sentado no prato a não ser que se tornasse homem igual a nós, para que se possa dizer: Deus morreu, o sofrimento de Deus, o sangue de Deus, a morte de Deus. Pois em sua natureza, Deus não pode morrer; agora, porém, que Deus e homem estão unidos em uma pessoa, é com razão que se diz: morte de Deus quando morre o homem que se tornou uma só coisa ou uma só pessoa com Deus" (Dos concílios e da Igreja).
Trataremos, na próxima postagem, dos prejuízos outros que temos quando queremos harmonizar a doutrina da humanidade de Jesus com sua divindade, de maneira que fique mais palatável à razão. Não perca!
Por ora, concluo que nós, luteranos, afirmamos que Santa Maria é mãe de Deus, assim como Santa Isabel e S. João Batista foram primos de Deus, assim como Pôncio Pilatos foi juiz de Deus, assim como os centuriões romanos foram os assassinos de Deus. Se algum escândalo houver no suposto mérito atribuído a Santa Maria, que seja descontado no demérito que confessamos em relação a Pôncio Pilatos e aos romanos.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



sábado, 25 de abril de 2015

EIS QUE ESTOU CONVOSCO ATÉ À CONSUMAÇÃO DO SÉCULO - PARTE 1


São os mistérios que me tornam cristão, não as evidências, nem a lógica. Para conhecer o verdadeiro Deus é necessário tão somente ser tocado pela fé, que é a única maneira de apreender seus mistérios.
A vida cristã começa na interioridade, onde Deus nos toca com a fé. A partir daí, seguimo-lo, mesmo sem entender, dispensando explicações. 
É da experiência pessoal com Deus que nasce o cristão. É do toque de Deus! não de livros, nem de debates ou academia. Ninguém aprende a ser cristão. Ninguém convence o outro a se tornar cristão. Somente o toque de Deus e nada mais.
Não quero, com isso, desprezar a teologia. É importantíssimo que lancemos mão da razão e da linguagem para podermos defender a verdade frente às heresias que pululam no mundo o tempo inteiro. Mas a teologia deve reconhecer seus limites. Não é uma ciência como as outras, que busca explicar tudo com base no que já se sabe. Não, seu papel é muito mais restrito. É função da teologia rebater o que é errado e defender o que é certo. Para isso, é óbvio que necessita da razão, porém não com o  intuito de explicar o que se deve crer, mas de definir, classificar, rechaçar e aceitar.
Teologia não é o conhecimento ou ciência de Deus. Deus é insondável e incognoscível a qualquer mente. "Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus" (1 Coríntios 2:9-10). O conhecimento de Deus pleno só é possível a Deus. Ninguém o conhece plenamente, senão ele próprio. Nesses versículos temos inclusive uma das provas da divindade do Espírito Santo. Portanto, Deus Pai se revela através de suas obras, através de seu Filho, que é Deus, e através de seu Espírito Santo, que também é Deus. Essa revelação nos mostra um pouco do que ele é, para que o amemos e para que sejamos salvos, não para que o compreendamos.
É muito perigoso quando alguém se debruça sobre o que Deus nos revelou acerca de si mesmo, como se estivesse diante de uma planta, animal ou algo inanimado, para estudá-lo. Deus não deve ser alvo de especulações. É por isso que temo muito quando deixamos de interpretar a Bíblia de maneira literal e bem contextualizada e começamos a transformar textos amargos em textos doces, através de nossa razão. Tudo o que há de amargo na Bíblia, é para a nossa razão que é amargo, não para a fé. O que é palatável à razão, não o é para a fé. Portanto, sejamos muito cautelosos. Que a fé prevaleça! Em última análise, Deus será sempre saboroso ao nosso espírito e amargo à nossa carne.
"Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinando pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais" (1 Coríntios 2:13). Aqui S. Paulo nos exorta a nunca conferir coisas espirituais com a ciência humana, mas com coisas espirituais. Que é isso senão crer? Não analiso os mistérios com base no que sei, mas analiso o que sei com base nos mistérios. É assim que o crente dá lições ao descrente, mesmo quando é iletrado. Até hoje debatemos o que é vida. Que cristão, porém, tem dúvidas do que é vida? Ele pode não explicar, mas sabe muito bem. É assim que uma cristã se recusa a praticar o aborto, porque sabe que estará provocando uma morte, mesmo sem saber quando a vida começa ou termina. Ela vê a vida como coisa que ela conhece e não conhece, ao mesmo tempo, porque analisa o que sabe dentro do contexto do mistério. Assim poderia dizer: "Eu não sei exatamente o que é vida, mas sei que o que está dentro de meu ventre é vida".
Os mistérios não têm explicação, mas somente explicamos algo quando nos rendemos a eles. Quantos mistérios têm que ser aceitos, para se chegar a uma única teoria? Se alguém não fizer concessão aos mistérios, não chegará a verdade alguma.
Portanto, a aceitação dos mistérios amplia nossa compreensão da realidade, porque tudo o que é compreensível está permeado pelo incompreensível. 
São Paulo diz: "O homem espiritual julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por ninguém" (1 Coríntios 2:15). De fato, mais sabe sobre o universo um homem caipira que olha para o céu e vê nele seu criador que muitos físicos renomados, que olham para o mesmo céu e só enxergam a evidente cortina da matéria.
Voltando ao começo, quero deixar claro que amo teologia e considero dever de todo cristão culto dedicar tempo a ela. Mas entenda que explicações precisam da aceitação de mistérios. Uma boa teologia se baseia na aceitação passiva de verdades reveladas, sem a pretensão de harmonizá-las.
Devo confessar que trilhei um caminho de 11 anos para chegar a essa conclusão.

"Pelo viver, mais ainda, pelo morrer e ser condenado faz-se um teólogo, não pelo compreender, ler ou especular" (Dr. Martinho Lutero).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



Sicut locutus est ad patres nostros, Abraham et semini eius in saecula - Como falou a nossos pais, Abraão e sua descendência para sempre



"Aqui estão deitados por terra todo o mérito e todo o orgulho e exaltadas a pura graça e misericórdia de Deus. Deus não aceitou Israel por causa de seus méritos, mas por causa de sua promessa. Ele o prometeu por pura graça e também o cumpriu por pura graça (...). A mãe de Deus louva e enaltece essa mesma promessa acima de todas as coisas. Ela atribui essa obra da humanização de Deus unicamente às graciosas e não merecidas promessas divinas feitas a Abraão. A promessa de Deus a Abraão encontra-se principalmente em Gênesis 12:3 e 22:18. Mas também é citada em muitas outras passagens. Ela diz: "Jurei por mim mesmo: em tua descendência serão benditas todas as gerações ou todos os povos da terra". São Paulo e todos os profetas têm estas palavras em alta conta, como é justo. Pois nessas palavras foi preservado e salvo Abraão, juntamente com todos os seus descendentes. Também todos nós seremos salvos nelas. Cristo está nelas e é prometido como Salvador de todo o mundo. Este é o "seio de Abraão"(Lucas 16:22), no qual estão guardados todos os que foram salvos antes do nascimento de Cristo. Ninguém foi salvo sem essas palavras, mesmo que tivesse feito todas as boas obras (...). 
Em primeiro lugar, conclui-se a partir dessas palavras que, fora de Cristo, todo o mundo encontra-se em pecado, condenação e maldição, juntamente com toda a sua obra e saber. Deus diz que todos os povos, não alguns, devem ser abençoados na descendência de Abraão. Então não haverá bênção em todos os povos sem essa descendência de Abraão (...). Os profetas extraíram muitas coisas dessas palavras e concluíram que todos os seres humanos são maus, orgulhosos, mentirosos, falsos, cegos, em resumo: estão sem Deus (...). O ser humano está tão corrompido pela queda de Adão, que a maldição faz parte de sua natureza. Sim, ela constitui sua natureza e essência.
Em segundo lugar, deduz-se que essa descendência de Abraão não podia nascer de homem e mulher. Esse nascimento é maldito e produz exclusivamente um fruto amaldiçoado, como acabamos de dizer(...).Por outro lado, Deus, que não pode mentir, promete e jura que será a descendência natural de Abraão, isto é, um filho natural, nascido de sua carne e seu sangue. Entre essa descendência tem que ser um ser humano natural verdadeiro, da carne e do sangue de Abraão. Aí uma coisa opõe-se à outra: ser carne e sangue naturais de Abraão e, mesmo assim, não ser nascido naturalmente de homem e mulher (...).
O próprio Deus o fez, pois ele pode cumprir o que promete, embora ninguém o entenda antes que aconteça. Sua palavra e obra não exigem argumentos da razão, mas uma fé franca e sincera. Ele conciliou estas duas coisas: por meio do Espírito Santo, sem a concorrência de um ser humano, fez nascer para Abraão a descendência, um filho natural de uma de suas filhas, da imaculada virgem Maria. Aí não existe nascimento natural, nem concepção sob a maldição que pudesse ter tocado essa descendência (...). É a abençoada descendência de Abraão, na qual todo o mundo se liberta de sua maldição. Pois quem crê nessa descendência a invoca, confessa e permanece nela (...).
Aqui enxergamos a razão do Evangelho, porque toda a doutrina e proclamação nele levam à fé em Cristo e à intimidade de Abraão. Onde não existe essa fé, não há outro recurso, nem remédio para entender essa bendita descendência. Na verdade, toda a Bíblia depende desse juramento, visto que toda a Bíblia trata somente de Cristo. Além do mais, constatamos que todos os pais do Antigo Testamento, juntamente com todos os santos profetas, tiveram a mesma fé e o mesmo Evangelho que nós temos, como diz São Paulo em 1 Coríntios 10:1. Todos permaneceram com fé firme neste juramento de Deus e na intimidade de Abraão e assim foram salvos. Apenas com a diferença de que eles creram na futura semente prometida, enquanto nós cremos na semente aparecida e entregue (...).
No entanto, o fato de que mais tarde foi dada a lei aos judeus não corresponde a essa promessa. Isso aconteceu para que, segundo a lei, os judeus reconhecessem tanto melhor sua natureza maldita e desejassem com tanto maior entusiasmo e cobiça essa prometida descendência da bênção. Com tudo isso, tiveram uma vantagem sobre os pagãos de todo o mundo. Alteraram a vantagem e a transformaram em desvantagem. Dispuseram-se a cumprir a lei por suas próprias forças ao invés de reconhecer através dela sua carência e maldição. Desse modo, fecharam a porta para si próprios, de forma que a descendência teve que passar longe, no que ainda insistem (...). Essa foi a luta de todos os profetas com os judeus. Pois os profetas compreenderam perfeitamente o sentido da lei: nela se deveria reconhecer nossa natureza amaldiçoada e aprender a invocar Cristo (...).
Quando Maria diz: "a favor de sua descendência em eternidade" (Lucas 1:55), deve-se entender por "em eternidade" que esta graça durará toda a descendência de Abraão (os judeus), desde aquele tempo até o dia final (...). Essa promessa de Deus não mente: aquilo que foi prometido a Abraão não dura um ano, nem mil anos, mas séculos, ou seja, de uma geração a outra, sem cessar (...).
Com isso basta, por enquanto. Pedimos a Deus uma compreensão adequada deste Magnificat, para que ele não apenas brilhe e fale, mas esteja aceso e viva em corpo e alma". (Dr. Martinho Lutero). Os grifos são meus.
Vídeo extraído do Youtube.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Suscepit Israel puerum suum recordatus misericordiae suae - Ele acolheu Israel, seu servo, depois de ter-se lembrado de sua misericórdia



"Após ter falado das obras que Deus realizou nela e em todos os seres humanos, Maria volta ao primeiro ponto, encerrando o Magnificat com a maior obra de Deus: a humanização do Filho de Deus. Ela confessa espontaneamente que é uma criada e serviçal de todo o mundo. Admite que a obra realizada nela não beneficia somente a ela, mas a todo o povo de Israel. No entanto, divide Israel em duas partes e refere-se apenas àquela parcela que serve a Deus. Ninguém serve a Deus senão aquele que deixa Ele ser Deus e permite que suas obras atuem nele (...).
Em favor desse Israel que serve a Deus vem a humanização de Cristo. Esse é seu próprio povo amado, por amor ao qual Deus se tornou humano, para salvá-lo do poder do diabo, do pecado, da morte, do inferno e para levá-lo à justiça, à vida eterna e à bem-aventurança. Este é o "acolher" de que fala Maria (...). Estes são os tesouros da inexplicável misericórdia divina, que não recebemos por merecimento, mas exclusivamente por graça. Por isso Maria diz: "Lembrou-se de sua misericórdia" e não: Lembrou-se de nosso mérito ou dignidade. Éramos necessitados, mas totalmente indignos. Nisso consistem seu louvor e sua honra (...). Ele queria tornar conhecida esta misericórdia. Mas por que Maria diz "ele se lembrou de sua misericórdia" e não "ele contemplou"? Porque Deus a tinha prometido (...). Ora, ele demorou muito em concedê-la. Parecia que a tinha esquecido (como, aliás, acontece com todas as suas obras, como se nos tivesse esquecido). Porém, quando apareceu, ficou claro que não a havia esquecido. Havia pensado constantemente em cumpri-la.
É verdade que a palavra "Israel" refere-se apenas aos judeus - e não aos gentios. Mas como eles não o quiseram, Deus escolheu alguns dentre eles para fazer jus ao nome "Israel", constituindo assim um Israel espiritual. Isso fica claro em Gênesis 32:25, quando o santo patriarca Jacó lutou com o anjo e este paralisou sua anca. Com isso quis dizer que, de agora em diante, seus filhos não mais deveriam vangloriar-se de seu nascimento físico, como fazem os filhos dos judeus. Naquele momento, Jacó recebeu o nome de Israel, como patriarca que não seria apenas Jacó, pai dos filhos corporais, mas também Israel, pai dos filhos espirituais. Isso corresponde ao sentido da palavra "Israel", pois significa "senhor de Deus". É um nome muitíssimo nobre e santo e contém em si o grande milagre de que, pela graça divina, um homem chegou a ter domínio sobre Deus, de modo que Deus faz o que o ser humano quer. Conforme podemos verificar, por meio de Cristo a cristandade se uniu de tal forma com Deus como uma noiva com seu noivo. A noiva tem direito e domínio sobre o corpo do noivo e sobre tudo o que ele possui. Tudo isso aconteceu por meio da fé. Então o ser humano faz o que Deus quer. E, por outro lado, Deus faz o que o ser humano quer. Assim Israel é uma pessoa que tem a aparência de um deus e que tem poder sobre Deus. Em Deus, com Deus e através de Deus, ele é capaz de fazer todas as coisas (...)". (Dr. Martinho Lutero). Os grifos são meus.
Vídeo retirado do Youtube.

terça-feira, 21 de abril de 2015

RELIGIÃO ESCANDALOSA




Ao meditar sobre as palavras de Jesus na cruz, parece que me esqueci de uma de suas falas, certamente a mais importante: "Está consumado" (João 19:30).
Na verdade, não me esqueci dela. Ela foi omitida de propósito, por ser sublime e sagrada demais.
De fato, não podemos dizer com Jesus: "Está consumado". E direi por quê.
Primeiro é necessário que entendamos quem estava na cruz. Jesus perguntou aos seus discípulos o que o povo dizia quem ele era, ao que responderam: alguns acham que tu és João Batista; outros, Elias; outros, um profeta. Então Jesus perguntou de novo: E vós, quem dizeis que eu sou? (S. Mateus 16:13-15).
Essa pergunta é dirigida também a nós. É importante que saibamos quem de fato Jesus foi e é, para que entendamos o valor de sua crucificação e a sublimidade do que disse: "Está consumado".
Muitos acham que Jesus foi um pensador. Outros, um profeta. Muitos pensam que foi um falso profeta ou charlatão. Outros tantos ainda questionam sua existência. 
Nós, cristãos, temos que confessar com S. Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (S. Mateus 16:16).
Jesus não foi um filósofo, um político ou mártir. Ele não morreu devido ao seu pensamento revolucionário. Jesus é Cristo (Khristós) ou Messias (Mashiach), mas também Filho de DeusPara os judeus, ninguém poderia ser chamado Filho de Deus. Não da maneira como Jesus referia a si mesmo.
"Temos (judeus) uma lei, e, de conformidade com a lei, ele (Jesus) deve morrer, porque a si mesmo se fez Filho de Deus" (João 19:7).
Com certeza, a ideia da divindade de Jesus nem remotamente passou pela mente dos discípulos. Sabiam que Jesus era o Messias, mas eles tinham por correta a visão de Messias que lhes foi ensinada desde a infância, ou seja, a de um líder político, que haveria de governar Israel e libertá-lo do jugo estrangeiro. Para qualquer judeu, foi e é sumamente sacrílego atribuir a um ser humano divindade, mesmo ao Messias. 
Por isso, não podemos dizer que S. Pedro confessou a divindade de Jesus com base no que sabia. Ele profetizou. Tanto é que Jesus disse: "Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus" (Mateus 16:17).
Percebemos então por que o Messias foi pedra de tropeço em todos os aspectos. Onde aguardavam um líder político, surgiu um líder espiritual. Esperando um grande homem, veio-nos um homem simples, humilde, pequeno. A expectativa era de paz para Israel, mas a paz que veio não era exterior. Quando pensavam que seria um homem como todos os outros, como Moisés e Davi, Deus nos surpreendeu com sua própria visitação, assumindo a natureza humana como sua.
Analisemos o primeiro capítulo do Evangelho segundo S. João. Ele começa assim: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (João 1:1). Aqui S. João deixa claro que o Verbo (Lógos) é eterno, ou seja, já existia no princípio. Diz que esse Verbo estava com Deus. Portanto, coisas distintas. Completa que esse Verbo não era semelhante a Deus, mas que era Deus. Logo, um Deus junto a outro Deus. 
Não podemos pensar em dois Deuses, porque as Escrituras deixam claro que só há um Deus. "Escuta, Israel! Jeová é nosso Deus! Jeová é um só" (Deuteronômio 6:4). "Eu sou Jeová, e não há outro; além de mim não há Deus" (Isaías 45:5). Logo, o Verbo e Deus, não obstante sejam distintos, são um só Deus. 
A personalidade do Verbo é evidente em todo o texto de S. João, especialmente no versículo 14: "E o Verbo se fez carne e habitou entre nós". Portanto, não há como fugir da realidade de um só Deus em duas pessoas, com base nesse registro apostólico. 
Em outros textos, o Espírito Santo é revelado como sendo também Deus, o que nos conduz à doutrina celestial da Santíssima Trindade. Com certeza, celestial, porque carne e sangue não poderiam nos fazer chegar ao conhecimento dela.
Mas voltemos à realidade de quem estava na cruz. São Paulo disse sobre Jesus, o Verbo encarnado: "Ele é a IMAGEM do Deus invisível" (Colossenses 1:15); "nele habita, CORPORALMENTE, TODA a plenitude da divindade" (Colossenses 2:9).
Devemos, então, ter em mente que quem estava na cruz pregado era o nosso Deus. Aliás, o único Deus que existe (Jeová).
Se soa muitíssimo escandalosa a encarnação de Deus, porque o é de fato! que falar acerca da morte de Deus (Jeová)?
Na cruz não estava um profeta a morrer. Ali estava o próprio Deus morrendo para expiação dos pecados do mundo inteiro. Aliás, só haveria expiação se o próprio Deus morresse. Nenhuma criatura poderia ocupar aquele lugar.
"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões" (2 Coríntios 5:19).
Na cruz estava o nosso Deus padecendo por nossos pecados. Por amor, Deus se fez um de nós e, devido à humanidade assumida, pôde morrer em nosso lugar. 
Essa maravilhosa obra, que S. Paulo trata de "mistério da piedade" (1 Timóteo 3:16), porque é impossível, inconcebível e até sacrílega à razão humana, foi concluída com as palavras: "Está consumado".
É Deus realizando a sua obra, independentemente do que pensamos, esperamos ou acreditamos. É Deus nos surpreendendo em sua capacidade de amar.
Por isso mesmo, o pior pecado que existe é a incredulidade. Porque se Deus se dispôs a nos salvar dessa maneira, humilhando-se tanto, certamente o inferno é muito pouco para quem rejeita tão graciosa obra. Aliás, muitos não a rejeitam somente, mas fazem piada, riem e blasfemam dela.
A segunda coisa é que entendamos o preço de nossa salvação. 
Deus é onipotente. Ele poderia ter nos salvado de outra maneira, se assim fosse possível. Mas não era possível salvar-nos de outro modo.
"Meu Pai, se possível, passa de mim este cálice", orou Jesus três vezes. A maneira como Deus respondeu essa prece nós conhecemos muito bem: Jesus bebeu do cálice até a última gota.
Devo confessar que me sinto desconfortável toda vez que afirmo que Deus não pode fazer algo. Afinal, ele é onipotente e pode tudo! Mas ele é onipotente com relação ao que lhe é externo, não ao que lhe é interno ou essencial. Ele não pode entrar em contradição consigo mesmo. Deus é justo e não pode permitir que qualquer pecado fique impune (Êxodo 34:6-7). Se seu amor quer salvar, é necessário que ele então pague o preço dessa salvação, para não ter de cobrá-lo de nós.
São muito belos os nossos crucifixos. E com razão! não os fazemos com o intuito de assustar, mas de consolar.
Entretanto, o crucifixo vivo que os discípulos viram foi aterrador, fazendo com que eles se sentissem enganados, porque jamais o Messias poderia ser tão ultrajado. A decepção profunda os motivou a fugir e a esconder-se.
Na verdade, quem sofreu aquele ultraje não foi o Messias segundo o entendimento humano, mas o próprio Deus encarnado. Ele assumiu nossa carne para sentir as chicotadas. Ele assumiu a nossa carne para que espinhos penetrassem sua fronte. Ele assumiu nossa carne para que ela se enchesse de hematomas e luxações. Ele assumiu nossa carne com o intuito de ser desamparado e morrer sozinho.
Aquilo que não lhe era possível fazer como Deus, ele o fez como homem, na pessoa de Jesus.
A salvação é gratuita. Por isso, muitas vezes a banalizamos, fazemos pouco caso dela e vivemos como se ela não existisse. Colocamo-la facilmente em risco, como se não valesse nada. Mas não pense que ela foi gratuita para Deus. Para ele custou caríssimo! Por ela ele teve de mergulhar no mais profundo inferno de aflições.
Não! "Está consumado" é um consolo que temos. Não podemos tomar para nós palavras tão sublimes, porque elas puseram fim a uma obra que nenhum de nós poderia realizar, nem mesmo morrendo mil vezes. Não conhecemos, nem nunca conheceremos essa obra, porque é o maior mistério que a mente humana jamais entenderá. Puro escândalo a qualquer pessoa no mundo que não tenha a verdadeira fé.
Com tudo isso, concluo que não há religião mais escandalosa que o cristianismo, que apregoa que Deus se fez homem, que Deus nos serviu com sua morte e que sua verdadeira carne e seu verdadeiro sangue são mastigados e engolidos pelos fieis. Não tiro a razão de quem ri da fé. Aliás, quem o faz têm toda a RAZÃO do mundo e está no  pleno uso dela. 
Ser cristão não é uma questão de escolha. Nós fomos atingidos pela loucura da fé e agora estamos irremediavelmente loucos (1 Coríntios 1:21-23).
Que fazer se a sabedoria humana e toda a ciência não resolveu até hoje o dilema do pecado? Fiquemos com a loucura do cristianismo, que nos livra desse dilema e nos devolve à verdadeira paz, que o mundo não conhece, nem poderá conhecer à parte da revelação.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem retirada da internet.

Esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes - Saciou os famintos de bens e os ricos deixou vazios



"A quinta e sexta obras: Como foi dito antes, "os que estão por baixo" não são as pessoas de aspecto insignificante e desprezado. São aquelas que aceitam com prazer essa condição, sobretudo quando são forçadas a ela por amor à Palavra de Deus ou à justiça. De modo semelhante, também os "famintos" não podem ser aqueles que têm pouca ou nenhuma comida. São aqueles que sofrem provações espontaneamente, em especial quando são forçados a isso por outras pessoas com violência, por amor à Palavra de Deus ou à verdade. Quem é mais baixo, nulo e indigente do que o diabo e os condenados, além daqueles que são torturados por causa de seus crimes,  dos que morrem de fome, dos assassinos e todos os que vivem em humilhação e necessidade contra sua vontade? Mesmo assim, isso não os beneficia, antes multiplica e aumenta sua miséria. Não é desses que a mãe de Deus fala, mas daqueles que são um com Deus e Deus com eles, os que creem e confiam nele.
Por outro lado, que obstáculo representa para os santos pais Abraão, Isaque e Jacó a sua riqueza? Que estorvo é para Davi seu trono, para Daniel seu poder sobre a Babilônia? Que problema significa para todos a ocupação de altos cargos ou a posse de grandes riquezas, se seu coração não está preso a elas, nem procura nelas seus próprios interesses? (...)Deus não julga conforme as aparências e formas externas, se são ricos, pobres, se estão em posições altas ou baixas, mas segundo o espírito, como se comportam nessas condições. Essas formas e diferenças nas pessoas e posições têm que continuar na terra enquanto durar esta vida. Mas o coração não deve agarrar-se a essas coisas, nem fugir delas. Não deve apegar-se ao elevado e rico, nem evitar o baixo e pobre (...).
A exemplo das obras mencionadas antes, também estas acontecem em segredo, de modo que ninguém as percebe até o fim. Uma pessoa rica não se dá conta do seu imenso vazio e miséria, a não ser que morra de outra forma. Então nota que toda sua fortuna não foi absolutamente nada (...). Por outro lado, os famintos não sabem o quanto estão saciados até que se aproxima o fim. Então se deparam com a palavra de Cristo em Lucas 6:21: "Bem-aventurados os famintos e sedentos, pois serão fartos". E com a consoladora promessa da mãe de Deus: "Encheu de bens os famintos" (...).
A descrença enfadonha sempre atrapalha, de modo que Deus não pode realizar essas obras em nós. E nós não a podemos experimentar e reconhecer. Queremos estar satisfeitos e ter o suficiente de tudo antes que venham a fome e a carência. Queremos arrumar alimentos para a fome e a carência futuras, de maneira que não temos mais necessidade de Deus e suas obras. Que fé é essa que confia em Deus enquanto você sente e sabe que há reservas para o caso de dificuldade? (...). Com isso nos tornamos indignos de ouvir e compreender essa consoladora promessa de Deus de que ele exalta os humildes, rebaixa os grandes, sacia os famintos, deixa vazios os ricos (...).
Em todos os casos, é preciso pôr sua palavra à prova e arriscar algo com base nela. Pois Maria não diz: "Encheu de bens os saturados, exaltou os grandes", mas: "encheu de bens os famintos", "exaltou os humildes". Você tem que ter experimentado a carência em meio à fome e ter sentido o que é fome e necessidade, de maneira que não haja mantimento e ajuda, nem sua própria, nem junto a outros. Somente junto a Deus, para que a obra, impossível para todos os demais, seja exclusiva de Deus. De igual modo, você não deve somente pensar e falar de humilhação. Tem que entrar nela, estar metido nela, não pode contar com a ajuda de ninguém, para que Deus possa agir sozinho (...).
Olha que grande consolo: não uma pessoa humana, mas o próprio Deus enche de (bens) o faminto e o sacia (...). (Dr. Martinho Lutero). Os grifos são meus.
Vídeo extraído do Youtube.

sábado, 18 de abril de 2015

UMA SÓ DOR



"Da multidão dos que creram era um só o coração e a alma" (Atos dos Apóstolos 4:32).
Como já afirmei em outra ocasião, ser cristão não é acreditar numa filosofia ou adotar para si um certo padrão moral. Ser cristão é mergulhar em Cristo, fazer parte dele LITERALMENTE e tornar-se um cristo para este mundo perverso.
A Santa Igreja Católica é um só organismo com Cristo, com um só coração e uma só alma. Onde houver um cristão sofrendo no mundo, ninguém que pertence à Igreja poderá dizer que está em paz. Pelo menos não deveria.
A Igreja corporal, tal como a vemos, está toda fragmentada, infelizmente. A Igreja espiritual, porém, sabemos que é una com Cristo. Nela não há qualquer divisão.
Algo, porém, profetiza a unidade da Igreja, que o mundo não vê, nem nós, senão pela fé. É quando ocorrem perseguições abertas contra pessoas de qualquer religião cristã. Então nos esquecemos imediatamente de nossas diferenças e nos solidarizamos com nossos verdadeiros irmãos. Quando aqueles cristãos coptas foram executados por militantes do Estado Islâmico, houve comoção generalizada entre os crentes em Cristo, como se não houvesse divisões entre nós, como se todos nós fôssemos também coptas. Em situações como essa, surge no coração de todos nós, que vivemos em Cristo, uma indignação que extrapola a simples comiseração pela tragédia alheia. É uma indignação mais forte, de natureza espiritual, contra uma ofensa dirigida a nós mesmos, que nos força às lágrimas e às súplicas, que vai além do humanitarismo. Então deixamos de ser vários e nos tornamos um só povo.
Quero hoje meditar sobre as palavras de Cristo na cruz. Nós já estamos crucificados com ele e não há como voltar atrás. Iremos morrer com ele, envergonhados, nus, feridos e desamparados. Para cada um de nós, a crucificação será padecida de um jeito.
A cruz é o lugar dos cristãos, enquanto permanecermos neste mundo. A nossa crucificação é nosso maior testemunho. Sim, o mais poderoso e eficaz.
As seis horas de agonia de Cristo são a nossa vida terrena. As palavras proferidas por ele, enquanto estava pregado na cruz, são as nossas palavras, sempre que somos perseguidos na qualidade de cristãos. Peço a Deus que os mártires deste século encontrem nelas consolo e força. Amém!

"Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lucas 23:34).

Nós, cristãos, somos ultrajados o tempo inteiro. Somos nada diante do mundo. Seres desprezíveis, ignaros, que o mundo despreza como verdadeira escória. Que é a morte de cristãos para o mundo? Nada! Exemplo é o genocídio que está ocorrendo na Nigéria, Síria e Iraque, que parece invisível ao mundo. 
Quem haverá de dar valor a um povo pacífico, que prega a paz, que renuncia à sua própria defesa, que perdoa quem o ofende, que não proclama seus feitos, que trabalha somente na escuridão e no anonimato, que existe como se não existisse?
Quão desprezível Jesus deve ter parecido às autoridades judaicas e romanas ao pedir a Deus que as perdoasse. Uma das maiores fraquezas para o mundo é perdoar. Pior ainda é perdoar quem não se arrepende.
Perdoar quem nos pede perdão exige menos de nós, porque nos sentimos superiores diante da humilhação alheia. Mas perdoar quem nos humilha, não se arrepende e está disposto a fazer de novo a mesma coisa é sofrer humilhação dobrada. Nós sofremos a humilhação e voltamos a sofrê-la, quando deixamos de lado a ofensa e buscamos a reaproximação.
Na verdade, o mundo não sabe o que está fazendo. Se soubesse o quanto deve a nós, cristãos, certamente nos trataria como príncipes. Deus ainda não destruiu este mundo perverso por causa de sua Igreja. Nós somos os dez justos, por amor dos quais Deus prometeu não destruir Sodoma e Gomorra (Gênesis 18:32).
O mundo não sabe o que está fazendo. Quando despreza milhões de cristãos, está desprezando milhões de vezes a sua visitação pelo próprio Deus (Lucas 10:16). Silencia a única voz que lhe pode trazer esperança e salvação. O mundo deseja paz, mas a única mensagem de paz que existe ele faz questão de calar. Recusa o único remédio que pode curá-lo. Afinal, que poderia vir de bom de pessoas tão desprezíveis, tolas e fracas? 
Não devemos olhar para essa cegueira com vaidade, mas com profundo pesar. Se o mundo trata como ignorância a verdadeira sabedoria e como perdição a única salvação, então ele é digno de nossa profunda compaixão, que nos deve impelir repetidas vezes ao perdão.

"Tenho sede" (João 19:28).

Aqui está nosso pedido de socorro. 
Privados de tudo, até do que é mais essencial. Privados dos filhos, da honra, do bom nome, seguimos sem nada, como se não tivéssemos Deus.
Aliás, é assim que o mundo enxerga os cristãos: como povo sem Deus. Porque um mundo terrivelmente materialista como o nosso não consegue enxergar a riqueza que nós temos, ainda que vivamos em favelas, presídios, guetos ou em campos de refugiados. Como não enxergam nosso bem interior, mas somente nossa carestia exterior, concluem que ninguém cuida de nós.
Esse bem inestimável que o mundo não vê, mas que todo cristão verdadeiro tem, é a fé. Essa fé é o nosso tesouro, nosso consolo e nossa paz.
Clamamos ao nosso Deus: "temos sede" ou "temos necessidades", porque sabemos que somos ouvidos. Não pedimos ao mundo que nos socorra e que nos atenda em nossas necessidades, mas a Deus. É ele quem sacia nossa sede.  Quem, porém, reparou na misericórdia de Deus que agiu através de alguém que molhou a boca de Cristo? Que miserável socorro é esse!
É esse o socorro que Deus nos dá, que o mundo não enxerga, porque é materialista demais para valorizar o consolo na hora da morte, o perdão dos pecados, o sentimento de pertença a Deus, o corpo e sangue de Cristo, a Palavra de Deus, o Espírito Santo, a paz de consciência e a esperança.

"Vendo Jesus sua mãe e, junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe"(João 19:26-27). 

Esse socorro invisível que nos vem é espiritual e individual, mas também material e coletivo.

Como Igreja, temos Deus, mas também temos uns aos outros. Ao pé da cruz não nos faltam amigos. Podemos estar passando por grandes aflições, mas não estamos sozinhos. 
A Igreja é uma família. Assim como há pequenas rixas entre irmãos, também há entre nós, mas em momentos de desespero, o amor prevalece.
Nem sempre podemos ajudar materialmente nossos irmãos que sofrem. Nós só podemos orar por eles. Mas quem disse que é pouca coisa orar?
O melhor cuidado que podemos ter uns pelos outros é orar, porque Deus nos ouve e atende. Quando oramos: "Livra-nos do mal", ele nos ouve e atende, trazendo livramento aos cristãos espalhados pelo mundo inteiro.
É importante que sirvamos uns aos outros com nossos bens. É dito que o discípulo amado, que sabemos ser S. João, recebeu a virgem Maria em sua casa como mãe e dela cuidou. São Paulo também pediu aos cristãos gregos que ajudassem seus irmãos de Jerusalém com seus bens. Mas não desvalorizemos o valor da oração, porque ela pode mais do que qualquer doação material que existe. 
Quando doamos algo que temos de sobra, estamos fornecendo um auxílio limitado. Quando oramos, estamos doando um auxílio infinito.
O mundo talvez perguntará: Que auxílio essas orações trazem a esse povo desgraçado?
Pois eu respondo: até a morte é um auxílio para o cristão. Que o mundo saiba disso. 

"Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso" (Lucas 23:43).

É assim que sempre nos consolamos. Não temos este mundo como pátria, mas passamos por ele, em peregrinação, rumo ao Céu. Este mundo é o nosso deserto.

Devemos sempre reforçar uns aos outros que estaremos um dia juntos no paraíso de Jesus.
Aqui quero falar da palavra amiga.
Deus nos socorre com bens espirituais, com orações e doações da Igreja, mas também com a presença de amigos que nos trazem conforto.
Quando nos sobrevêm desgraças, o mundo quer nos mostrar que não temos um Deus. O coração também desconfia do amor de Deus. É possível ter um Deus onipotente e estar padecendo tanto? 
É então que nos consolamos com a esperança do Céu. Tudo neste mundo é passageiro, inclusive os sofrimentos e também quem os inflige a nós. Deus, porém, permanece para sempre, junto com suas promessas. Não é mutável para deixar de nos amar. Não é mutável para revogar sua promessa.
Não esperamos nada de nós mesmos. Tudo esperamos de Deus.
Nossa salvação vem de Deus, que não muda diante de nosso fracasso e miséria pessoais.
Essas pessoas que estão morrendo por servirem a Cristo têm família, amigos e comunidade. De forma alguma lhes faltou a presença e o consolo de quem representa o amor e aceitação de Deus para elas. E onde não houve presença física, houve a lembrança, que também é um tipo de presença.

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Marcos 15:34).

Este questionamento é um gemido de terror, produzido pelo embate interior entre os sentimentos de nossa carne e a fé de nosso espírito. Essa luta será sempre o nosso flagelo, enquanto peregrinarmos por este mundo.

É muito mais fácil acreditar na precariedade que se vê do que no bem que não se vê. É uma luta interior nossa, da qual ninguém pode participar. É a ausência, a incredulidade, medo, que não se apaziguam com conselho, presença física ou bens. Somente Deus pode fazer algo a respeito.
O progresso do ímpio e o fracasso dos crentes serão sempre motivo de terríveis embates íntimos. "Eis que são estes os ímpios. E, sempre tranquilos, aumentam suas riquezas. Com efeito, inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência. Pois de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado" (Salmo 73:12-14).
É então que Deus nos vem socorrer com as lembranças de seu amor para conosco. Assim como abrimos álbuns de fotografia, quando sentimos saudade, Deus nos abre um verdadeiro álbum de fotografias, que registra momentos nossos de intimidade com ele. É então que, pelo testemunho dessas fotografias da alma, somos reconfortados. É uma história de amor, que hoje faz parte de nós. 
Para os cristãos, os momentos alegres servem a um único propósito: registrar em nossa memória o amor de Deus para conosco. Deus sabe que as aflições virão e que essa memória será nosso único consolo.
Cristo certamente se lembrou de toda a sua vida com Deus, em seus últimos minutos na cruz.
Por isso mesmo, teve forças para dizer suas últimas palavras:

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lucas 23:46).


Que vivamos assim: entregues a Deus. Nosso maior consolo é não pertencermos a nós mesmos. Pertencemos a quem nos ama mais do que nós mesmos. Esse sentimento de pertença tem levado os mártires a desafiar o mundo e o diabo. Façam conosco o que bem quiserem, porque não pertencemos a nós mesmos, de maneira que possamos nos dar ou reter. Pertencemos a Deus e somente a ele. Também não queremos deixar de lhe pertencer!

A certeza de que somos de Deus e que ele nos ama mais do que nós mesmos é que nos mantêm firmes diante de nossos algozes. Se não soubéssemos que pertencemos a alguém tão amoroso, facilmente cederíamos, porque tememos a morte, como todo ser humano. Mas não é esse o caso.
Quem deseja o nosso mal, saiba que esta nossa confissão não irá mudar: Somos de Deus e quem nos faz algum mal, presta a ele um grande favor, assim como a moenda é muito útil ao dono do trigo.

A foto que ilustra esta publicação mostra cristãs armênias crucificadas no genocídio de 1915-1917.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.