domingo, 26 de fevereiro de 2017

PAPEL DA LEI NA IGREJA E NA SOCIEDADE - PARTE 3







Tendo já tratado do antinomismo na Igreja e na sociedade, bem como do fundamentalismo, que é o outro extremo, quero agora refletir sobre os limites que devem ser impostos à Lei dentro da Igreja. Portanto, o assunto ficará mais restrito.
Quando S. Paulo afirma que não estamos debaixo da Lei (Romanos 6:14), que estamos mortos para ela (Romanos 7:6) ou que não estamos sob ela (Gálatas 5:18), não está aderindo ao antinomismo. Ele está declarando que a Lei não tem o poder de condenar quem crê em Jesus.
"Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" (Romanos 8:1). É um versículo das Escrituras muito apreciado por nós, cristãos, por seu conteúdo profundamente consolador. Nós o usamos para protestar contra tudo aquilo que nos amedronta e ameaça, mas aqui S. Paulo está a tratar especificamente da Lei. Ela não tem mais o poder de nos condenar a partir do momento em que cremos.
O antinomismo despreza a Lei. Nós não a desprezamos, pois isso seria um atentado contra a nossa humanidade, uma espécie de autofagia. Ela é muito útil para nos revelar o pecado, nossa necessidade contínua de redenção, e também para governar nossos sentidos, vontade e apetites. Sem Lei, o ser humano não é mais humano e sim uma besta. Dada a violência natural do gênero humano, seria impossível sua subsistência não fosse a Lei a confrontá-lo intimamente, a oprimi-lo e a gratificá-lo em sua consciência, a reger seu comportamento. É da Lei natural que procedem o apreço pela virtude, a condenação do vício, a educação das crianças e jovens, as honras e as punições. É função da Lei nos dizer: Faça isso e será bem-sucedido e honrado, feliz! Não faça isso, caso contrário será castigado.
Como qualquer sociedade humana, a Igreja convive com a realidade do pecado. Ela precisa de um agente que lhe mostre que é pecadora, para que não caia em presunção. Também precisa de um agente que lhe mostre o caminho da virtude e santidade. E esse agente é a Lei. Entretanto, a Lei encontra seu cumprimento no amor, fora do qual a Igreja se torna fundamentalista e imoral, considerando que não é possível a moralidade onde não há amor.
Que poder a Lei exerce sobre os homens? Como ela consegue governá-lo? A resposta é: de dois modos. Primeiro, ela recompensa quem a cumpre. Segundo, ela pune quem a transgride. Por natureza, o homem busca o que é bom e foge do que é mal. Essa inclinação humana é determinada pela Lei, pois o bem é a virtude e o mal, a desvirtude. O homem deixa de buscar o que é bom quando despreza a Lei e, com ela, sua própria humanidade, assumindo um comportamento animal, pois é do homem a busca do que é bom e a recusa do que é mal. Enfim, é pelo poder do mérito e da punição que a Lei nos governa.
O mérito e a punição da Lei primeiramente ocorrem numa esfera civil. Bustos, nomes de rua, prêmio Nobel e as mais diversas honrarias aos que são bons; advertência, multa, suspensões, cárceres e pena de morte aos que são maus. Em seguida, mérito e punição eternos, que o homem sabe que existem e, por isso mesmo, apega-se às religiões e dá um sentido religioso ao bem e ao mal. 
É desse mérito e punição eternos que S. Paulo está a tratar. A Lei não tem o poder de auferir mérito eterno, nem de condenar. E exatamente porque não tem o poder de auferir mérito, é que ela não tem o poder de condenar. Pudesse a Lei dar méritos, ela teria o poder de condenar e estaríamos literalmente numa fria. Por isso mesmo, São Paulo combate seu poder de conceder méritos, pois isso implicaria em poder de condenar.
Quem salva é única e exclusivamente Cristo, sem a Lei. Se a Lei pode dar mérito eterno, devemos buscá-lo na pessoa de Cristo, nunca em nós. Igualmente, se a Lei pode condenar para sempre, devemos buscar essa condenação na pessoa de Cristo, que, sendo Deus, foi condenado em nosso lugar como o pior dos pecadores. De maneira que, para o cristão, a Lei está despojada de seu poder de justificar e condenar.
A Lei governa o cristão através de sua razão e na esfera civil ou temporal, mas não na esfera eterna, onde ele se encontra unido a Cristo. Toda vez que a Lei deseja nos recompensar temporalmente com honras e homenagens as mais diversas, com alegria devemos aceitar. Mas quando ela nos quer justificar e salvar, encher-nos de mérito perante Deus, devemos remetê-la a Cristo. Igualmente, quando a Lei quer nos condenar temporalmente, com vergonha devemos nos sujeitar a ela, pagando-lhe o que devemos: multa, indenização, cárcere, etc. Mas quando ela se aproxima querendo nos condenar ao inferno, devemos com ousadia dizer que ela está morta para nós. Ou que vá para Cristo e o condene! 
Não devemos aceitar que a Lei nos assuste com o inferno, uma vez estejamos em Cristo, unidos a ele pela fé. Se cremos em Cristo, que isso nos baste! Não devemos aceitar que os adeptos da Lei nos ameacem com o inferno porque nós, de boa consciência, temos esculturas de Jesus e dos santos em nossos templos e lares, porque não observamos o domingo ou porque não pagamos o dízimo. Se a observância da Lei nos justifica e salva, como muitos pretendem, de nada nos serve Cristo. Entretanto, se a observância da Lei não nos justifica, que poder de condenar ela tem? Ela só pode condenar quem ela justifica. Os incrédulos, que procuram ser justificados e salvos pela Lei, serão um dia condenados por ela, mas isso não se aplica a quem busca a verdadeira justiça, que está em Cristo. Aprendamos com S. Paulo a dizer: "NENHUMA CONDENAÇÃO HÁ PARA OS QUE ESTÃO EM CRISTO JESUS" (Romanos 8:1).
Também na esfera civil, se você está pagando à Lei o que ela determina, mas crê e, por causa dessa fé, está com o coração contrito, não se esqueça que sua dívida é só temporal. Se a Lei quiser ir além deste mundo, mande-a para Cristo. Que ela se entenda com ele! 
Quantos cristãos vieram a se converter nos presídios e continuam sendo ameaçados pela Lei. Eles não devem aceitar que a Lei os condene eternamente, mas só aqui, na esfera civil, temporalmente. O mesmo podemos dizer de verdadeiros cristãos que, por fraqueza, cometeram graves crimes e imoralidades, como furto, assassinato e adultério. Eles devem muito à Lei e é necessário - uma vez tenham acordado de sua sandice - que clamem a Deus por misericórdia e quitem pacientemente essa dívida, mas nunca devem se esquecer que essa dívida é temporal. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem: Foto de uma paróquia da Igreja Evangélica Luterana Independente (SELK), cedida por um querido amigo, Leonardo Simões.

PAPEL DA LEI NA IGREJA E SOCIEDADE - PARTE 2

"O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da Lei é o amor" (Romanos 13:10).



Como analisamos, sem Lei o ser humano não pode viver. O antinomismo é a maior ameaça que existe à Igreja. Mas devemos ir além: o antinomismo coloca em risco toda a civilização. O homem é um ser moral, disso é impossível fugir.
Entretanto, a Lei deve ter um sentido correto e, no caso da Igreja, deve-se colocar limites à sua atuação.
A Lei só tem seu cumprimento no amor. É impossível a verdadeira moralidade sem o amor. Qualquer ato exteriormente honesto e bom só é de fato honesto e bom quando há uma intenção amorosa em quem o pratica, caso contrário é hipocrisia, que é uma desvirtude. 
A hipocrisia em nada difere da verdadeira moralidade no que diz respeito à sua apresentação. É no interior da obra, ou melhor, em sua gênese que encontramos a distinção, que só pode ser o amor. Por isso, a verdadeira moralidade é o amor. Exemplo disso, a castidade: você consideraria casta a pessoa que é obrigada a viver assim? Ou seria casta aquela pessoa que, por amor, decide viver assim, estando livre para viver de outra maneira? 
Então, se por um lado a sociedade e a Igreja são assoladas pelo antinomismo, que é o desprezo da Lei, por outro está o extremo de uma moralidade caricata, de um apego à Lei sem o princípio do amor. Estamos falando do fundamentalismo em suas mais diversas apresentações, religiosas ou não.
Quando se introduz a questão do fundamentalismo, todos pensam em religião, mas o fundamentalismo tem várias facetas, que abrangem toda a vida em sociedade. O nacionalismo HOMICIDA que temos testemunhado nos Estados Unidos e na Europa é um tipo de fundamentalismo. Portanto, o fundamentalismo é um problema moral presente não só no âmbito religioso, mas em qualquer lugar onde deveria haver amor e não há, somente a letra fria da Lei.
Quantas vezes Jesus se opôs aos fariseus porque eles colocavam o "fundamento" da Lei acima do amor e da dignidade humana! Isso é talvez a pior das imoralidades.



Toda vez que a Lei é adotada, porém de maneira cadavérica, inanimada, ou seja, sem sua verdadeira alma, que é o amor, temos o fundamentalismo. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



domingo, 5 de fevereiro de 2017

PAPEL DA LEI NA IGREJA E SOCIEDADE - PARTE 1

"Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da Lei e sim da graça" (Romanos 6:14).

"Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à Lei, por meio do corpo de Cristo, para pertencerdes a outro, a saber, àquele que ressuscitou dentre os mortos, para que frutifiquemos para Deus. Agora, porém, libertados da Lei, estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não na caducidade da letra" (Romanos 7:6).

"Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a Lei" (Gálatas 5:18). 



Quando S. Paulo diz à Igreja que ela não está mais sob a Lei ou que morreu para a Lei ou está liberta da Lei, porventura ele desobriga a Igreja a viver segundo a Lei? Essa acusação S. Paulo sofreu por parte dos judeus. Ele foi acusado de antinomismo, quer dizer: quem é salvo por Cristo não precisa obedecer à Lei e, portanto, está autorizado a viver de maneira imoral.
Lutero também foi acusado de antinomismo quando resgatou a justificação somente pela fé. Até entre seus amigos houve quem o interpretasse mal, alegando que a Lei não combina com a fé e que deve se restringir à esfera civil, para reger os ímpios. É o caso de João Agrícola, que ensinou a Lei não ser incumbência da Igreja, mas do Estado. Para ele, a Igreja deve pregar somente o Evangelho e deixar a Lei para os magistrados. A esse ensino Lutero combateu arduamente, clamando: "Disso se conclui que por meio dessa esperteza o diabo não quer abolir a Lei, mas a Cristo, o cumpridor da Lei".
Esse tema nunca deixou de ser oportuno, pois afinal é a base do cristianismo e continua a causa do surgimento de inúmeras seitas. De um lado alguns querem sujeitar a Igreja à Lei, como ocorre entre os evangélicos em geral, com destaque para os adventistas, e por outro há quem deseja abandonar a Lei por completo, como ocorre entre os liberais, dentre os quais quero enfatizar os grupos que defendem a homossexualidade e a prática do aborto entre cristãos. 

"Que diremos, pois? É a Lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da Lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a Lei não dissera: Não cobiçarás" (S. Paulo, Romanos 7:7). 

São Paulo ensina que a Lei é útil para nos revelar o pecado, de maneira a nos retirar do estado de presunção, fazendo-nos ver o quão pecadores nós somos. A Lei abate nossa soberba, obrigando-nos a desistir de nós mesmos e a procurar Cristo. É a Lei que me faz constatar diariamente que sou idólatra, que não respeito as autoridades, que sou assassino, adúltero, ladrão, tão ladrão quanto um bandido, embora seja visto pelo mundo como homem honesto. Ela me faz ver que sou um maldizente, um invejoso e que ardo em cobiça. Isso a Lei cumpre em mim diariamente e me obriga a buscar refúgio em Cristo, que é a minha Justiça.
Quando o cristão anda satisfeito consigo mesmo, é necessário que a Lei revele seu estado. Só assim ele irá se arrepender e buscar a remissão de pecados. 
O desprezo atual da Igreja pelos cultos, especialmente pelos sacramentos, é um desprezo pela remissão dos pecados. E por que desprezamos a remissão dos pecados? Por causa do antinomismo. Quando a Lei é desprezada, não há como a Igreja enxergar o que resta de pecado em si mesma e, sem pecado, ela passa a desprezar a remissão dos pecados. Toda a polêmica de Lutero em torno dos sacramentos é inimaginável nos dias de hoje, porque pouco valor a Igreja tem dado a eles, infelizmente. Mas volto a dizer: o desprezo dos sacramentos é desprezo do perdão dos pecados e uma das faces do antinomismo.
O desprezo da Lei gera um povo satisfeito consigo mesmo. Um povo satisfeito, por sua vez, não precisa da graça de Deus. Então para que culto e sacramentos? Isso constatamos na sociedade e na Igreja.
Portanto, a doutrina de S. Paulo, que foi defendida por Lutero, continua atual nos dias de hoje.


São Paulo também chama a Lei de boa, santa e justa (Romanos 7:12), porque ela nos ensina como amar. Nossa natureza profundamente egoísta precisa ser instruída pela Lei sobre o valor do outro e acerca de nossa responsabilidade para com ele. Os judeus e a Igreja temos a Lei que foi revelada a Moisés, mas é fato que a Lei não é uma possessão nossa. A Lei faz parte da razão humana e uma total depuração da Lei só seria possível no contexto da irracionalidade e bestialidade. O homem teria que abdicar da humanidade para ficar livre por completo da Lei. 
Não é isso o que vem acontecendo no mundo de hoje? O positivismo jurídico ensina que não há uma moralidade que seja intrínseca da natureza humana. Ele quer desvincular a justiça da metafísica, por considerar a metafísica uma invenção dos religiosos. Argumenta que a moralidade é relativa e uma construção histórica, política e social. Então, o que a lei civil determina passa a ser moral, não havendo um padrão racional para isso. Aqui está a face mais perversa do antinomismo, pois vai contra a razão natural, e abre caminho à bestialidade e à selvageria. Desse tipo de antinomismo brotaram o nazismo e outras formas de nacionalismo barbárico. 


Esse mesmo positivismo tomou conta da Igreja, que agora está em dúvida se o "não matarás" se aplica ao aborto ou se o "não adulterarás" tem algo a dizer contra a união homossexual. Para os cristãos de hoje, o pecado não é algo estabelecido por Deus, através de sua Lei, mas algo estabelecido pela sociedade, através de suas leis. Outro exemplo é a fornicação, que o mundo transformou em amor e passou a adotar como algo moral, e a Igreja foi atrás. Isso também é antinomismo. 


Então a Lei é útil para revelar o pecado e para ensinar o verdadeiro amor, que é a alma da moralidade. Isso é papel da Lei, dentro e fora da Igreja. Desprezar esse papel da Lei é antinomismo. 


Autoria: Carlos Alberto Leão
Imagens extraídas da internet.