domingo, 24 de janeiro de 2016

ENCARNAÇÃO



Ao comungar teu corpo e teu sangue,
Tua divina humanidade,
Peço-te:

Seja eu teu corpo e teu sangue,
Tua divina humanidade
ao mundo.

Encarna-te em mim!
Dispõe de minha humanidade
para ser-te ao mundo.

Que o mundo tenha teu olhar,
teu sorriso, teu toque,
tua voz.

Que seja minha humanidade a tua, 
a tornar sensíveis ao mundo
teu olhar, teu sorriso, teu toque e tua voz.

Uma doce ambição me visita:
Não quero ser tua morada.
Quero ser teu corpo e teu sangue.

Seja eu a eucaristia do mundo!
Que todos possam comungar tua humanidade
através da minha,

mas como se a minha não mais existisse.

Seja então minha humanidade
o simples pão e vinho,
o mero sinal.

Apodera-te de mim, Amado,
e mostra ao mundo que tu estás perto
e que nunca partiste.

Amém!



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 23 de janeiro de 2016

CRIADOS PARA A LIBERDADE

"Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. O escravo não fica sempre na casa; o filho, sim, para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres" (João 8:31-36).


O tema que venho desenvolvendo nestas últimas três postagens me é caríssimo: a liberdade. Eu sei o que é "obedecer" por medo de Deus e, principalmente, por medo dos homens. Cresci num ambiente extremamente legalista, onde até usar bermuda e jogar bola era pecado. Temia muito ser disciplinado, porque ali a disciplina é aplicada por motivos banais e funciona somente como punição vexatória. Portanto, sei bem o que significa "obedecer" por medo.
Há alguns anos me foi concedido ser livre e, desde então, mais e mais livre. Não pretendo impedir que Deus me liberte cada vez mais, profundamente, o mais profundamente possível, até o dia em que irei me encontrar com ele, absolutamente livre, no dia do Juízo.
O homem foi criado livre por Deus e continua sendo vocacionado à liberdade. Homem algum aceita a servidão pacificamente, a não ser que a desconheça. Quando Deus criou Adão e Eva, dotou-os de plena liberdade, de retidão original, de maneira que obedeciam a Deus com o coração alegre, espontaneamente, sem se preocupar com nada, sem regra alguma, sem lei exterior alguma, exceto aquela que os fez cair: comer do fruto do conhecimento do bem e do mal. Desde o momento em que desejaram para si o que é exclusivo de Deus, comendo desse fruto, o pecado entrou no mundo, juntamente com o diabo, pervertendo todas as coisas, a começar pelo próprio homem.
Depois do pecado, o homem foi profundamente corrompido por esse pecado, distanciando-se de Deus e fechando-se em sua morte imortal. Foi subjugado pelo pecado e por Satanás de tal maneira que não consegue fazer absolutamente nada sem pecar. Mesmo em suas melhores obras é rebelde e insolente. Não conhece mais a si mesmo e ignora sua escravidão, morrendo alienado de Deus e de si mesmo, sobretudo porque o conhecimento de Deus é imprescindível para o conhecimento de nós mesmos. 
Eu tenho uma calopsita aqui em casa. Ela acha que é livre. Seu mundo se restringe a uma sacada e sala de estar. Ela desloca de um canto ao outro livremente e parece não sofrer privação alguma, embora haja um imenso mundo lá fora, do qual não terá notícia nunca. Assim se tornou o homem: escravo do pecado sem saber que é escravo. Quando o homem foi entregue ao poder de Satanás, a primeira coisa que este provocou foi a alienação da mente humana, fazendo-a desconhecer seu jugo. Assim, ninguém se rebela contra a situação atual, por desconhecê-la, e vive sua pseudoliberdade de maneira arrogante.
Então Jesus ensina: Quem comete pecado é escravo do pecado. Os fariseus se sentiam libérrimos espiritualmente. Embora estivessem padecendo o jugo romano, consideravam esse jugo somente corporal, jamais espiritual, porque se sentiam preferidos de Deus e obedeciam sua Lei de maneira excelente, segundo julgavam. Também não queriam um Messias que os libertasse espiritualmente, já que isso não era necessário, mas só exteriormente. Este é o pensamento humano em seu melhor estilo: sou livre por natureza. Somente jugos externos, impostos pela sociedade ou pela religião, sujeitam-me. Então se voltam contra a religião, condenando-a de escravizar as consciências, como muitos hoje em dia fazem com a chamada "moral católica". Não entendem que a escravidão vem de dentro, não de fora. A escravidão vem do pecado e do reino satânico.
A calopsita pode viver feliz sem saber de sua prisão. No entanto, o homem sempre se inquieta com sua situação, porque embora desconheça o pecado e a escravidão que ele provoca, sente-se incompleto, vazio e limitado por sua indigência, sendo obrigado a admitir que nem toda opressão e jugo é exterior. Isso porque o homem foi criado livre e traz consigo a memória da liberdade. Carregamos conosco um ideal de liberdade que nos causa tristeza irremediável. Não somos livres, queremos ser e sabemos que a liberdade plena não é possível, não só por causa da sociedade e religião, mas por causa de nós mesmos. 
Toda a pregação de Jesus é liberdade. Ele veio para nos libertar, primeiramente da culpa e da consequência do pecado, depois de sua realidade na vida humana. Jesus se tornou obediente por mim, padeceu a consequência de meu pecado, morreu a minha morte, depois matou a própria morte, amarrou Satanás e exaltou-me à destra de Deus. Hoje ele me liberta da realidade empírica de meu pecado, vencendo-o em mim, de maneira que a libertação do pecado não seja um evento futuro, mas cotidiano, contínuo, iniciado no Batismo e com término agendado para o Último Dia. Jesus quer que eu veja, que eu sinta minha liberdade!
Essa liberdade vem dele, não de nós. Não é por minha sabedoria que irei me libertar, mas através da Verdade, que é Jesus, Deus amoroso que se tornou homem para libertar o homem e exaltá-lo acima de todas as coisas. Por isso é dito: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará"
A fé é a única maneira de conhecer a Verdade. Não espere isso de sua razão, porque ela só sabe das coisas sensíveis, foi corrompida pelo diabo e não quer a Verdade, senão a sua verdade, porque ela é "conhecedora do bem e do mal", ela é deus! A razão humana recusa ajuda. Então a fé é a única maneira de o homem apreender a Verdade e ser liberto por ela. Se você não crê, peça a Deus essa fé ou a busque, porque há Promessa para isso: "Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração" (Jeremias 29:13).
A fé é o feliz retorno ao livre-arbítrio do Éden. A fé na Verdade é libertadora, porque sabe que a dívida do pecado foi cancelada e porque atua em nossa vontade, fazendo com que ela encontre alegria na obediência, não na rebeldia. O prazer do homem descrente está na rebeldia contra Deus, até mesmo quando faz o bem, porque até aí quer ser Deus e busca sua própria glória. A fé, no entanto, transforma nossa vontade, de maneira que esta se volte para Deus e nele encontre alegria, paz e destino. A fé transforma todas as coisas em meios para se chegar a Deus. A fé santifica tudo, porque enxerga Deus através de todos os muros existentes. 
Para a fé não pode haver regra exterior. Mesmo as regras exteriores são muros que nos separam de Deus. A fé atua pelo amor, somente por ele, exclusivamente por ele, passando por cima de qualquer regra, mas nunca errando. Assim se expressa S. Paulo: "Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor" (Gálatas 5:6). 
Com base nisso, poderia até parafrasear o que Jesus disse: Conhecereis o Amor, e o Amor vos libertará.
Por outro lado, a insistência em regras é, para o cristão, um retrocesso muito triste à servidão. Quando deixo a liberdade que a fé em Cristo me proporciona e volto-me a regras: não brincar no domingo, não ouvir música na quaresma, jejuns obrigatórios, comprimento e obrigatoriedade da saia, não usar bermuda, orar somente de joelhos, não cortar o cabelo, não deixar a barba crescer, não comer sangue, não comer carne, não tomar café, não consumir bebida alcoólica, não assistir à televisão, ficar de repouso no sábado, dar o dízimo de cada centavo que entra na conta bancária, etc. Quando me volto a essas regras, estou me afastando de minha fé, que consiste no amor à Verdade, tudo fazendo ou deixando de fazer espontaneamente, arrebatada e impelida por esse amor, e volto-me para fora, para minha realidade empírica de pecado e cativeiro. Em outras palavras, volto à escravidão dos sentidos, que me quer afastar da Verdade e sujeitar-me ao que meus olhos podem ver: regras e a santidade produzida por elas. São Paulo chama essa realidade exterior de "rudimentos do mundo" (Colossenses 2:8).
Tenho por mim que não há sofrimento maior a um cristão que estar sujeito a regras, tentando se satisfazer com elas. Ele sabe que o homem está cativo pelo pecado, sabe que a Verdade, ou seja, Cristo, é a liberdade real, mas não consegue se relacionar com a Verdade. Sabe que é pobre, que um tesouro existe, mas perdeu o mapa para chegar até ele. Antes estivesse fora da Igreja e das regras, quando estava completamente alienado acerca de seu estado e, por isso, ainda conseguia sorrir um pouco.
São Paulo nos adverte: "Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão" (Gálatas 5:1). 
Todavia, o cristão que já aprendeu que a liberdade da fé é incompatível com regras não deve achar que está completamente livre. Também não quero vender este peixe a quem não é cristão. Eu mesmo me sinto ainda muito preso e há muitas amarras que terão que ser soltas, embora não por mim, mas por Deus. É que a libertação do cristão ocorre no tempo e fora dele: eternamente, através de Cristo, e no tempo, através de mim. Há uma liberdade eterna, que já está pronta, e uma libertação temporal, que é um projeto. Como cristão que crê na Verdade e é liberto por ela, confesso que estou sendo liberto e, se digo que sou livre, não o digo de maneira arrogante, como os fariseus e o mundo o fazem, mas com base na liberdade eterna, na qual creio.
Sejamos vigilantes e não permitamos que as amarras permaneçam, muito menos busquemos novas amarras, novas formas de enredar a consciência e ficar mais presos ainda. Jesus nos vocaciona à liberdade absoluta.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

LEI DA LIBERDADE

"Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão" (Gálatas 5:1).



Um de meus filmes favoritos é A Vila, escrito e dirigido por Night Shyamalan. É um filme que vale a pena ser assistido. Recomendo muito!  
O filme trata da questão de se impor o medo com o intuito de preservar a inocência. Ninguém duvida que leis, regras e medo protejam. Mas até que ponto se deve proteger alguém em detrimento de sua liberdade? É sobre isso que o filme nos leva a refletir.
São Paulo trata aqui da liberdade cristã. Deus não nos chamou para a servidão, para o medo, para a sujeição a regras, mas para a liberdade de filhos.
O legalismo estabelece uma zona de conforto e proteção. É muito mais seguro estatuir regras que permitir a liberdade, principalmente porque a maioria das pessoas - penso eu - não possui maturidade suficiente para ser livre. 
Deus estabeleceu a Lei e a promulgou com o intuito de governar um povo que não era livre. A Lei dada a Moisés serviu a uma nação inteira, não somente a crentes. Ela foi dada a Moisés para que este legislasse crentes e descrentes, pessoas maduras e imaturas, gente honesta e bandidos, espírito e carne. Tudo isso havia na nação de Israel. Uma só Lei foi promulgada a todos.
Hoje a situação é outra: temos o direito secular, que consiste de muitas leis a que se deve obedecer, caso contrário haverá penalidades. Essas leis seculares são baseadas na Lei natural, que nos é inata, ou seja, vêm do senso comum de justiça. Há também leis espirituais, por meio das quais Deus governa sua Igreja.
As leis seculares servem para os cristãos e para os incrédulos. Ninguém aqui fala em maturidade, consciência, honestidade, voluntariedade ou amor. São leis escritas para pessoas honestas e para bandidos, que deverão ser cumpridas sem questionamento, com prazer ou desprazer.
As leis espirituais servem exclusivamente à Igreja, porque são cumpridas somente pela fé, que não existe fora da Igreja. Há somente duas leis espirituais: Amar a Deus e amar ao próximo. Esses dois mandamentos compreendem toda a Lei natural, dentro e fora do direito secular. 
Amar a Deus é crer de verdade. Amar ao próximo é cumprir todo o restante da Lei natural, conduzido pela fé.
Veja-se então que a situação muda, porque a fé cumpre a Lei de Deus de maneira espontânea, cheia de alegria e boa vontade, porque o ama. Ninguém pode ordenar nada à fé! Ordenamos muitas coisas à nossa carne, ao nosso velho homem, ao que existe de Adão em nós. Mas não é necessário dar ordem alguma à fé, porque ela faz tudo livremente, conduzida pelo amor a Deus. Por isso S. Tiago chama a Lei natural de "Lei da liberdade" (Tiago 1:25), não por desconsiderar suas imposições, mas porque a fé não a vê como Lei ou imposição, antes como coisa excelente e inevitável, tão natural quanto amar. Também S. João conclui que "os mandamentos não são penosos" (1 João 5:3). Ora, a Lei natural só não é penosa a quem é livre diante dela, opta por ela e deleita-se nela, o que é possível somente ao que crê. 
A fé é livre e liberta quem a possui. Ela está livre diante de todas as coisas: cultura, comida, vestuário, sexualidade, profissão, etc. Inicia a libertação em nosso interior, onde se encontram a razão natural, os apetites e sentimentos, avançando para o exterior, de maneira a atingir nossas obras e o entorno, santificando todas as coisas. Ninguém diz à fé: Faça isso ou aquilo! Você está proibida de fazer isso ou aquilo! Ela não precisa de regras ou conselhos, mas segue amando a Deus através de tudo e a tudo santificando através desse amor. Por isso, São Paulo declara que "todas as coisas são puras para os puros" (Tito 1:15), porque a fé torna tudo puro, a começar pelo seu portador e avançando para tudo aquilo que está ao seu redor ou ao seu dispor. É ela que santifica as tradições, as comidas, o matrimônio, os ofícios e os diferentes estados de vida que existem, porque tudo faz por amor a Deus, de maneira que não erra nunca! 
É essa obediência que provém da fé que Deus requer. Ele não quer mais nos governar exteriormente através de leis exteriores, como é o caso do Direito Canônico. Ele quer a obediência amorosa e grata que provém espontaneamente da fé, que age pelo amor e a tudo santifica, não havendo necessidade de ser instruída por ninguém, nem mesmo por Moisés.
Quando S. Paulo afirma que não estamos mais sob a Lei (Romanos 6:14), é para ressaltar a liberdade da fé no cumprimento da Lei. Ela cumpre a Lei mesmo sem se atentar a ela, naturalmente, alegremente, conduzida pelo amor a Deus.
É esta a verdadeira obediência, a que provém do amor, que é o fruto mais excelente da fé verdadeira. Quando amamos alguém, nós o obedecemos com alegria. Quando não amamos e somos obrigados a obedecer, limitamo-nos muito em nossa ação, fazendo ou não fazendo somente o que a letra determina e, mesmo assim, só procedemos corretamente quando estamos sob a vista de quem tem poder de nos punir. Isso definitivamente não é obediência, mas medo de punição. É por esse motivo que Deus não aceita obras que não sejam fruto da fé, porque não se pode dizer delas que sejam verdadeira obediência.
Se a fé nos regesse de maneira ilimitada, nenhuma lei exterior seria necessária. Poderíamos inclusive trancar num baú a Lei de Moisés. 
Mas não somos inteiramente regidos pela fé. Nós temos carne, Adão, velho homem ou concupiscência em nós, que luta contra a fé constantemente, sempre em rebeldia contra Deus. Ora a fé prevalece e cumprimos a Lei. Ora a carne prevalece e praticamos pecado mortal. Mesmo quando cumprimos a Lei, ainda há carne envolvida, dividindo nossa vontade, imiscuindo-se nela com sua vaidade e amor próprio, tornando esse cumprimento imperfeito. Daí vêm os pecados de fraqueza ou veniais, que Cristo prontamente perdoa, razão pela qual pouco nos importam.
Por causa de nossa carne, devemos permanecer em vigilância constante e não devemos desprezar Moisés. Deus corrige nossa carne através da Lei de Moisés, mais precisamente através da Lei natural que encontramos em Moisés. 
Nossa fé não precisa ser advertida pelo mandamento: "Não matarás", mas nossa carne sim! Igualmente não é necessário que se diga à fé: "Não cometerás adultério", mas nossa carne precisa ouvir isso e ser confrontada por essa lei vez ou outra. E assim vai. 
Onde estava a fé de Davi quando cometeu adultério com Bate-Seba e assassinou seu marido? Com certeza estava lutando contra a carne, como lhe é próprio, porém estava perdendo a batalha. A carne encontra muitos subterfúgios racionais que justifiquem seu modo de agir e é por demais escorregadia. Nem sempre a fé pode com ela. Então foi necessário que o profeta Natã lhe viesse com a Lei de Deus, para confrontar sua carne, envergonhá-la e trazê-la ao arrependimento (2 Samuel 12). Portanto, a pregação da Lei não pode cessar enquanto houver carne e Adão no mundo. 
Somente a fé nos torna livres diante de tudo. A fé nunca peca! Por outro lado, tudo que é praticado sem fé, por mais lindo que seja e ainda que pareça verdadeira obediência, é pecado e perdição. 
Quem crê cumpre a Lei natural. Quem não crê, não a cumpre de forma alguma. 
Então hoje percebemos a labuta de cristãos, em seu desejo de cumprir a Lei de Moisés e outras tantas inventadas, porque ainda não conhecem a dimensão da obediência livre que provém da fé. Deus não quer obediência exterior forçada, sem coração, porque isso não é obediência; é medo! Ele quer a legítima obediência, que começa no espírito, onde habita a fé. Em outras palavras, Deus quer o amor com o qual a fé se torna conhecida. Desse amor é que procede a verdadeira obediência.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 9 de janeiro de 2016

CRISTIANISMO CULTURIZADO


Dias atrás, minha esposa perguntou à senhora que trabalha para nós, que é cristã, qual era a programação de Natal em sua comunidade. Essa senhora se irritou com a pergunta e afirmou que, em sua igreja, não se comemora o Natal, por ser festa pagã.
De fato, muito problema se criou dentro da cristandade devido à influência pagã, que eu prefiro chamar de influência gentílica. Ninguém nega que Natal, ovos de Páscoa e imagens sejam de influência gentílica. Mas não só isso! A própria doutrina cristã foi influenciada por filósofos gentios, sobretudo Aristóteles e Platão.
É impossível a uma sociedade humana, que vem do mundo e está imersa nele, não sofrer influências culturais do mundo ao qual pertence. Por isso, o cristianismo é diferente na Europa, nas Américas, Ásia e África. Mas não devemos diabolizar essas influências. Elas mostram que a Igreja é divina E humana. Elas demonstram como se dá a introdução de Deus entre os seres humanos, santificando seus costumes, tradições e modo de vida. 
Muitos que congregam em igrejas que buscam rigorosamente extirpar delas qualquer influência gentílica caem no problema enfrentado pelos apóstolos: a influência judaica. A Igreja primitiva teve muita dificuldade em administrar a influência judaica fortíssima sobre o pensamento cristão, tendo que lidar com ela da mesma forma como tivemos que lidar com a influência gentílica em outras eras: até que ponto essa influência é neutra (ou adiáfora) e até que ponto ela é prejudicial à fé?
Eu percebo hoje muita influência judaica no cristianismo que se propõe a ser inteiramente bíblico, por assim dizer "isento" de tradições humanas. Pessoas que desejam isso entendem que só há cristianismo quando a sua igreja se torna idêntica à Igreja primitiva. A questão é que a Igreja primitiva não estava tranquila em sua condição, mas convivia com a influência judaica e era obrigada a administrá-la prudentemente, sobretudo a influência da Lei de Moisés. O resultado de se "voltar às origens" é acabar com o Natal, com as imagens, com os altares e velas, com o incenso, com o coelho e ovos de Páscoa, simultaneamente fazendo concessões a tradições judaicas, principalmente à Lei judaica: não comer sangue, observar o sábado, pagar o dízimo,  não comer alimentos consagrados a ídolos, apresentar os bebês no templo, etc. É o que temos visto! Então se troca a influência gentílica pela influência judaica, como se costumes judaicos fossem melhores e mais cristãos que os costumes gentílicos.
Entre os gentios, a Igreja teve de administrar seus costumes de maneira prudente, acatando aquilo que é neutro ou santificando o que sempre pertenceu a Deus, mas que foi usurpado pelo diabo, ao mesmo tempo em que combatia a idolatria, o individualismo, a imoralidade sexual e a influência da filosofia grega sobre a teologia, por serem danosos à fé. Entre os judeus, a Igreja primitiva teve igualmente que fazer concessões a tradições judaicas que por si só não prejudicavam a fé, mas foi obrigada a lutar fortemente contra a obrigatoriedade desses costumes, sua imposição aos gentios e contra a noção de justificação pelas obras. 
Não sei se as igrejas atuais que querem se tornar idênticas à Igreja primitiva estão tomando o mesmo cuidado dos apóstolos, em analisar judiciosamente a influência da Lei judaica sobre o cristianismo. Suspeito que não. 
É sobre o papel da Lei judaica na Igreja que quero tratar hoje. 
Nós, luteranos, ensinamos que a Lei foi dada por Deus a todos os homens, indistintamente. A Lei nos é inata. Cremos que o ser humano é um ser moral exatamente devido à Lei interior que rege seu pensamento e, por conseguinte, seu comportamento. Chamamos essa Lei de "Lei natural". Sobre ela comenta S. Paulo: "Quando, pois, os gentios, que não têm Lei, procedem, por natureza, de conformidade com a Lei, não tendo Lei, servem eles de Lei para si mesmos. Estes mostram a norma da Lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se" (Romanos 2:14-15). 
A Lei dada a Moisés contém a Lei natural de maneira perfeita e inequívoca, mas também contém leis que foram dadas somente ao povo judeu. Devemos nos lembrar que a Lei foi pactuada entre Deus e os judeus: "Disse também Deus a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu, e Arão, e Nadabe, e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e adorai de longe. Só Moisés se chegará ao SENHOR; os outros não se chegarão, nem o povo subirá com ele. Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do SENHOR e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o SENHOR faremos. Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR (...). E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos. Então, tomou Moisés aquele sangue, e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o SENHOR fez convosco a respeito de todas estas palavras" (Êxodo 24:1-4, 7-8). 
Então a Lei dada a Moisés contém a Lei natural ditada por Deus, de maneira que esta não é mais subjetiva, mas objetiva e padrão universal de moralidade, como também contém leis civis e cúlticas, que foram estabelecidas somente ao povo judeu. 
Todos nós, cristãos, estamos de acordo que somente a Lei natural que consta na Lei de Moisés deve ser obedecida. Já temos conosco a Lei natural desde nossa concepção, mas não a enxergamos de maneira integral e unânime, devido ao pecado que também nos é inato. Então encontramos na Lei de Moisés a voz de Deus proclamando a Lei natural a nós, de maneira que esta Lei não está mais sujeita ao filtro grosso de nossa subjetividade pecaminosa, mas também leis civis e cúlticas ordenadas somente ao povo judeu e que não dizem respeito a nós. Quem de nós quer circuncidar os filhos ao oitavo dia, isolar-se do convívio social em caso de doença dermatológica, cumprir rituais de purificação, sacrificar animais e casar-se com a cunhada viúva? Ninguém! Sabemos que essas leis não nos dizem respeito, por serem leis civis ou cúlticas dadas a Israel. Queremos somente a Lei natural.
Mas onde está a Lei natural em Moisés? Aqui nos bagunçamos e muito! Mas muito mesmo! 
A maioria dos cristãos acha que o Decálogo é a Lei natural à qual devemos nos sujeitar. Lutero concordava em termos com isso. Santificar o sábado definitivamente não é Lei natural! Todos os dias devem ser santificados a Deus igualmente. É imoral quem reserva um dia na semana para santificá-lo a Deus. Todo homem tem o dever de amar a Deus, honrá-lo, dedicar-lhe culto, ser grato a ele, estudar sua Palavra, nela meditar e orar todos os dias, porque Deus é Deus todos os dias, não somente aos sábados. É ingratidão de nossa parte não lhe santificar cada dia da semana, como se ele fosse Deus somente aos sábados. Existem também aqueles que transferiram o sábado para o domingo, mas continuam com a mesma mentalidade. Isso é influência judaica perniciosa.
Isaías profetizou: "E será que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante mim, diz o SENHOR" (Isaías 63:23). 
É claro que precisamos de um dia da semana para nos reunirmos em torno do altar, ouvir a Pregação e receber os sacramentos, mas por tradição a Igreja escolheu o domingo. Poderia ter optado pela quarta-feira ou pela quinta-feira, sem maiores problemas. De forma alguma é pecado se determinada comunidade transferir o dia de culto do domingo para terça-feira, de acordo com sua disponibilidade de tempo. 
Também no Decálogo encontramos uma Lei que não é nada natural: não fazer imagens ou representações de Deus. O mesmo Deus que proibiu as imagens ordenou que fossem feitas: os querubins do tabernáculo e a serpente de bronze. Ora, não há contradição em Deus. Imagens são somente arte e mais nada! Deus não proibiu a arte em sua Lei natural. Muito pelo contrário, amamos a arte porque ela nos aproxima de Deus, o grande artista. Somos imagem e semelhança de Deus também em nossa capacidade de criar. Portanto, imagem é arte e apenas isso!
O que Deus estava prevendo e, por isso mesmo advertiu o povo judeu, era o sincretismo religioso. O povo judeu iria se encontrar com o povo cananeu e haveria de misturar a verdadeira religião com o paganismo daquele povo, adorando seu Deus invisível sob a forma e nome dos deuses pagãos. Foi assim que Javé se tornou Baal. O povo se voltava a Javé através de imagens de Baal e ousaram chamar Javé de Baal. Esse foi o pecado gravíssimo cometido por Israel. Por causa desse pecado é que Deus proibiu qualquer tipo de representação sua. Mas essa ordem tem um receptor e um contexto. É importante que tenhamos isso em mente toda vez que abrimos a Bíblia.
Portanto, o Decálogo não é a Lei natural. Teremos que recorrer a um outro princípio para discernir a Lei natural que consta na Lei de Moisés. Que princípio será este?
Jesus nos deu o princípio: "AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, DE TODO O TEU CORAÇÃO, DE TODA A TUA ALMA E DE TODO O TEU ENTENDIMENTO. ESTE É O GRANDE E PRIMEIRO MANDAMENTO. O SEGUNDO, SEMELHANTE A ESTE, É: AMARÁS O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO. DESTES DOIS MANDAMENTOS DEPENDEM TODA A LEI E OS PROFETAS"(S. Mateus 22:37-40). O amor é este princípio!
Jesus estava prevendo o que viria logo após Pentecostes, quando a Igreja nasceu: a influência judaica sobre o pensamento cristão. São Paulo teve que continuar insistindo nessa norma, em sua luta contra a judaização do cristianismo: "A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a Lei" (Romanos 13:8); "porque toda a Lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Gálatas 5:14).
Deus não nos deixou na mão, nós que somos gentios e até hoje ficamos confusos quando lemos Moisés e com boa vontade nos propomos a obedecê-lo. Ele nos deu o princípio da Lei natural, que deve nos reger dentro e fora da Lei de Moisés: o amor a Deus e ao próximo. 
Por exemplo, quando entrego o dízimo estou amando a Deus e ao próximo? Bem, é necessário que se questione: o dízimo é melhor oferta a Deus que um valor menor ou maior, dado conforme minha situação financeira? É claro que não! A viúva doou tudo o que tinha, enquanto Zaqueu doou metade de seus bens e os coríntios doaram "segundo as suas posses" (2 Coríntios 8:10-14). Não amo menos a Deus e ao meu próximo quando entrego o que posso, dentro de meu orçamento. Muito pelo contrário, poderei estar faltoso com meu próximo (esposa, filhos e pais) se, em nome do dízimo, permitir que falte dinheiro em casa. Então o princípio do amor me leva a amar a Deus e ao próximo, contribuindo, dentro de minhas possibilidades financeiras, sem ganância e avareza, para que a minha comunidade permaneça com as portas abertas, que meu pastor e minha família tenham seu sustento e que meu vizinho pobre também o tenha. 
Quando deixo de comer sangue e recuso galinha ao molho pardo ou chouriço, estou amando a Deus e ao meu próximo? É óbvio que não! Estou amando a mim mesmo, exibindo-me como mais santo que os outros. Que não coma quem não gosta! Devemos estar livres diante dos alimentos. Todo alimento pertence a Deus e nós o amamos quando aceitamos alegremente o que ele nos dá para comer, ainda que tenha sido preparado por uma baiana ou por um indiano, depois consagrado a algum ídolo. 
Se oro a Deus diante de uma imagem, estou deixando de amar a Deus e ao próximo? Não! A imagem não é meu Deus, mas uma representação ou símbolo dele. Os símbolos encurtam distâncias, por isso nós os utilizamos e precisamos deles. Também a viúva se dirige ao retrato de seu finado marido cheia de saudade e, graças à foto, que é um símbolo dele, ela sente tê-lo mais perto de si. O mesmo com relação às mães que perderam seus filhos e guardam consigo algum símbolo dessa relação, ao qual recorrem nos momentos de saudade. Quem se aproxima de uma imagem com este coração está não só amando a Deus, mas também cheio de saudade, suspirando por ele, com o coração doído e pobre. Também está amando ao próximo à medida em que ora e entrega a Deus os problemas dele.
E assim por diante, toda vez que Moisés é lido, é necessário que nos atenhamos ao princípio da Lei natural, que é o amor. Princípio este não inventado pela Igreja, mas ensinado pelo próprio Deus.
Nós, que somos cristãos, temos que aprender a libertar nossa consciência através do amor. Devemos orar por isso e praticar pequenos exercícios, de maneira a libertá-la paulatinamente, sem nunca achar que estamos prontos e livres por completo. Foi para a liberdade de filhos que Deus nos chamou e devemos ser livres diante de todas as coisas, inclusive diante da Lei de Moisés, através do amor. Devemos estar livres também diante da cultura, vivendo-a e santificando-a no amor, afastando aquilo que nos afasta de Deus e uns dos outros, retendo aquilo que nos une e, se necessário for, ressignificando as coisas. Ser cristão não é ser esquisito e anticultural. Mas sobre essa liberdade irei tratar na próxima postagem.
Concluo com o ensinamento de Jesus: "Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos" (S. Mateus 9:13).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.





terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O BATISMO SALVA

"Fostes marcados com o selo do Espírito Santo prometido, que é a garantia de nossa herança, para redenção do povo que Deus adquiriu, em louvor de sua glória" (Efésios 1:13b-14).


Um bebezinho de poucos dias foi trazido à pia batismal pelos pais, juntamente com alguns padrinhos. O pastor benzeu a criança com o sinal da cruz na fronte e no peito, questionou aos pais e padrinhos sua fé apostólica e, em seguida, derramou sobre a cabeça dela um pouquinho de água, dizendo: "Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Quer coisa mais simples que isso? 
A criança continuou a mesma de sempre. Aparentemente nada mudou em sua vida. No entanto, a criança deixou a pia batismal cristã, filha de Deus, verdadeira crente, justificada por SUA FÉ em Cristo, salva em sentido absoluto e desde então está morrendo literalmente para o pecado. Ela foi justificada pela fé dela mesma - não de seus pais - mediante o Batismo que recebeu.
A razão natural, quando ouve algo do tipo, esperneia e grita histericamente, porque não faz sentido algum que um rito tão banal possa operar tão grandiosas coisas. Aliás, como uma criança pode crer, se não entende nada? É uma sandice afirmar tal coisa! Isso é pura superstição, mágica e paganismo! Assim grita a razão.
As coisas de Deus são assim. Elas simplesmente são o que são, segundo a natureza da fé. Deus se precaveu de cobrir cada milagre que realiza com um véu bem grosso, de maneira que nossa fé se exercite, em detrimento da razão adâmica. Sempre esse véu será posto sobre cada milagre que ele realiza cotidianamente. 
O Batismo é um verdadeiro Pentecostes, porém sem som de vento impetuoso, sem línguas de fogo, sem louvores em línguas estranhas, sem Pregação, consistindo apenas de Evangelho compreendido na água. Aliás, pouca água, pouquíssima água! Por isso mesmo a razão não aceita o Batismo como milagre, mas como coisa ordinária ou cotidiana, simbólica, sem nenhuma eficácia. Também procura ornamentá-lo, para que impressione pelo menos um pouco: imersão, exorcismos, velas, sal, etc. Como nos é difícil aceitar a simplicidade que convém à fé!
O Batismo foi instituído por Cristo para salvar, assim como a pública Pregação do Evangelho e a Eucaristia. Tudo isso é Evangelho. Um mesmo Evangelho está na Pregação, no Batismo e na Eucaristia.
Aceitar que o Evangelho esteja nas páginas da Bíblia e na boca do pregador é fácil. Acredito que ninguém duvida da presença do Evangelho na Bíblia e nos púlpitos. Entretanto, por não saberem exatamente o que é Evangelho, muitos não conseguem distingui-lo no Batismo, na absolvição de pecados e na Eucaristia, como se não houvesse promessa de salvação eterna ao que crê - o que outra coisa não é senão Evangelho puro - em todas essas coisas. De fato, não há menos Evangelho no Batismo que no púlpito. O mesmo Evangelho que toca os corações a partir da boca do pregador, toca também o coração a partir da boca e mãos de quem batiza.
Não sabemos por quê, mas Deus quis comunicar a fé através do Evangelho e não de outra forma. Sem Evangelho, sem fé! Não se deve crer num agir secreto do Espírito Santo no coração humano, sem Evangelho. Deus sempre envia o Espírito Santo e a fé através do Evangelho e nunca de outro modo. Nunca! Não há um exemplo sequer de fé que tenha surgido à parte do Evangelho em todas as Escrituras e em toda a história. Isso está muito bem estabelecido nas Escrituras e fugir disso é entusiasmo. 
São Paulo declara: "E, assim, a fé vem PELA Pregação, e a Pregação, pela Palavra de Cristo (ou seja: pelo Evangelho)" (Romanos 10:17); "aprouve a Deus salvar os que creem PELA loucura da Pregação ("pregação da cruz" ou Evangelho)" (1 Coríntios 1:21b);  "aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz PELAS obras da lei ou PELA Pregação da fé (Evangelho)?" (Gálatas 3:5). São Pedro também ensina: "Pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, MEDIANTE a Palavra de Deus, a qual vive e é permanente" (1 Pedro 1:23).
Se o Batismo fosse somente água compreendida em palavras humanas e realizado em nome do padre ou pastor, certamente não teria efeito algum. Mas se o Batismo consiste em água compreendida no Evangelho e sendo realizado em nome de Deus, então a coisa há de ser diferente. Aqui o Evangelho é poderoso para encher a pessoa do Espírito Santo e de fé, destarte salvando-a. O mesmo Evangelho que converte corações arrependidos quando pregado ou lido, suscitando fé, também converte corações batizados. Negar isso é negar o poder intrínseco do Evangelho. O Evangelho salva porque é o próprio Deus, já que não podemos dissociar as promessas salvíficas de Deus de sua essência.
Paremos de achar que Evangelho consiste em palavras humanas. Evangelho é a Palavra Eterna de Deus feito carne. Se alguém prega o Evangelho, está sendo a boca pela qual a Palavra Eterna de Deus adentra o tempo e realiza a sua obra no tempo. Acredito que o maior problema teológico do cristianismo atual é não saber o que é Evangelho, o que leva à redução de sua essência. 
Posto que o Batismo é Evangelho puro, seu efeito não há de ser outro senão gerar fé e salvar. Isso não é conclusão da Igreja de Roma nem das igrejas orientais ou da Igreja da Confissão de Augsburgo. Isso é bíblico! Negar a eficácia do Batismo é negar a eficácia do Evangelho.
O Batismo, sendo Evangelho puro, gera a fé ou é acolhido pela fé, fortalecendo-a. Em ambas as situações, ele não é mero rito, mas Evangelho em ação, meio da graça, meio pelo qual Deus transmite sua graça, que é a remissão dos pecados e a vida eterna.
Por mim, a defesa do caráter salvífico do Batismo terminaria aqui. Ele é Evangelho e realiza tudo o que o Evangelho realiza. Mas existem as pessoas que querem versículos bíblicos, o que não é inconveniente algum para quem defende o que é correto. Em nenhuma passagem bíblica sobre o Batismo - e são muitas! - encontramos o Batismo como mero rito, sem poder de justificar e salvar. 
São Pedro nos ensina que o Batismo remove a culpa do pecado: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados" (Atos 2:38). Ananias declarou a Saulo: "E agora, por que te demoras? Levanta-te, recebe o Batismo e lava os teus pecados" (Atos 22:16). Também professamos, no credo Niceno: "Confesso um só Batismo para remissão dos pecados"
Bem, se alguém é perdoado de seus pecados e não é mais culpado perante Deus, com certeza já está salvo. Eu me daria por satisfeito. No entanto, caso persista a dúvida, podemos ir além, afirmando que o Batismo verdadeiramente justifica, isto é: torna o homem justo perante Deus, não através de qualquer justiça, mas através da justiça de Cristo.
São Paulo, ao falar sobre justificação somente pela fé e não por obras, declara: "Porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes" (Gálatas 3:27). Ser revestido por Cristo é ter todos os pecados cobertos por seu manto de santidade. Deus não nos vê como pecadores, mas como Cristo, porque ele, ao nos declarar justos, revestiu-nos da justiça de Cristo. Em outras palavras, Deus imputou ou creditou em nós uma obediência ou justiça alheia, que é a de Cristo, como se essa justiça fosse nossa e é nossa! A isso chamamos de justificação. Sou justo perante Deus não porque obedeci, mas porque me apropriei da obediência de Cristo. O que é de Cristo foi tornado meu no dia em que cri no Evangelho. O Batismo é capaz de justificar e quem declara isso é o apóstolo S. Paulo.
O Batismo também nos insere em Cristo. Só posso participar da herança de Cristo se me for concedido estar nele ou ser inserido nele. A minha humanidade tem que encontrar a humanidade de Cristo e fundir-se nela. Só assim serei Cristo e participarei de sua bem-aventurança. É um mistério profundo do qual tomamos parte quando cremos, não com qualquer fé, mas com a fé que é suscitada pelo Evangelho. O Batismo, sendo Evangelho genuíno, realiza esse milagre. 
São Paulo ensina: "Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo Batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida" (Romanos 6:4). Então, a partir do Batismo começamos a morrer literalmente para este mundo e a viver para o mundo vindouro. A destruição de Adão tem início, enquanto Cristo vai sendo construído em nós. Quando é que isso terminará? Na ressurreição dos mortos. Até lá o Batismo continuará fomentando nosso cristianismo. 
Como pode não salvar aquilo que remite pecados, justifica e insere em Cristo? São Pedro, após fazer uma analogia entre as águas do dilúvio e o Batismo, afirma acerca deste: "agora também vos salva" (1 Pedro 3:21). 
Enfim, as Escrituras falam muito acerca do Batismo, nunca dissociado da salvação como causa e efeito. Não há um versículo em que a palavra "Batismo" não esteja conectada à salvação humana como causa. 
Obviamente, Batismo não é a única causa da salvação. O Evangelho é a única causa da salvação, sendo o Batismo tão evangélico quanto a Pregação, a Eucaristia e a absolvição de pecados.
Para finalizar, vejamos as objeções que nos trazem a razão. Ela objeta o seguinte: se a justificação é somente pela fé e o Batismo é obra, então a justificação não é somente pela fé. Resposta: o Batismo é de fato obra, mas de Deus através dos cristãos. Por isso é realizado em nome de Deus e não em nome dos homens. Deus executa o Batismo através dos cristãos.
Outra objeção: como bebês não têm condições de crer, o Batismo opera a salvação por si só (ex opere operato), sem necessidade de fé. Resposta: o Batismo deve ser apreendido pela fé ou então ele próprio gera a fé que irá apreendê-lo, pois é Evangelho e é capaz disso. Somente a fé possui a salvação!
Ah, mas um bebê não entende nada e é impossível que creia em alguma coisa! Bem, se fé for atividade intelectual, é fato. Mas S. Paulo nos ensina que não se crê com a razão, mas com o coração, ou seja, com o espírito (Romanos 10:9). É nosso espírito que crê no Evangelho. Sabe-se lá qual seja a essência do espírito, mas certamente o espírito de um bebê não é diferente do espírito de um adulto, nem de um idoso demente, podendo crer perfeitamente, com ou sem atividade intelectual associada. Por fim, o próprio intelecto é um estorvo frequente ao exercício da fé. Creio muito mais na fé da criança que na fé do adulto.
As Escrituras também testemunham que crianças creem. São João Batista creu quando era feto (S. Lucas 1:44). Jesus também declarou: "Qualquer, porém, que fizer tropeçar a um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar" (S. Mateus 18:6). Portanto, crianças creem no Batismo que recebem ou recebem a fé com que irão crer no Batismo. 
A razão, não satisfeita, quer lançar sua última objeção: as Escrituras ensinam com clareza que a fé é pré-requisito para o Batismo, conforme se lê em S. Marcos 16:16: "Quem crer e for batizado será salvo". Como batizar uma criança que ainda não crê?
A criança é batizada para crer, porque o Evangelho tem o poder de suscitar a fé no espírito e Batismo é Evangelho. Caso a criança ou adulto creia, essa fé é necessária para receber o Batismo, sem dúvida! Mas o que é fé? Aqui se deve tomar cuidado para não confundir fé com confissão de fé. Até mesmo o diabo pode confessar a fé para ser batizado, se perceber que isso lhe pode ser vantajoso. Então não devemos condicionar o Evangelho à confissão de fé, pois ela não é fé, é atividade intelectual e obra humana. 
Certamente seria um abuso batizar um incrédulo confesso. No entanto, não é correto condicionar o Batismo a uma confissão ou questionar a validade dessa confissão. Deve-se batizar por obediência a Deus e largar mão de ficar investigando a veracidade da fé alheia. No máximo iremos conseguir uma confissão e seremos obrigados a acreditar nela.
Quanto às crianças, que podem crer, mas não têm condições de confessar sua fé, é necessário que sejam batizadas, porque carecem do Evangelho, da fé e da salvação eterna tanto quanto os adultos. Todos sabemos que Cristo não ordenou o Batismo especificamente às crianças, como fez com a circuncisão do Antigo Testamento, mas a Igreja sempre as batizou, exatamente por crer na perdição humana desde sua concepção e no poder regenerador do Evangelho. Portanto, o Batismo infantil é uma tradição da Igreja com apoio escriturístico fortíssimo, razão pela qual nós o adotamos.
Concluindo, o Batismo é simples porque Deus quer que todos os seus milagres ocorram segundo a natureza da fé. A Igreja não deve apoiar-se no que vê ou pensa, mas unicamente na fé. Como fé e razão não se relacionam tão pacificamente como gostaríamos, uma das duas é obrigada a recuar em cada impasse. Então que recue a razão e que a fé reine. É assim que a Igreja não erra e torna-se "coluna e baluarte da verdade" (1 Timóteo 3:15). É assim que a Igreja se torna de fato apostólica. 



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


sábado, 2 de janeiro de 2016

O DEVER ME CHAMA


O dever me chama.
Como é cansativo dever!
Cansa-me a ideia de sempre dever, pois nunca há quitação.
Se ao menos dever tivesse um outro nome!
Mas ele é exatamente um dever,
uma dívida interminável
que só termina
na morte.

Certos dias
Estou bem disposto.
Levanto-me herói, disposto a transformar o mundo.
Mas pouco depois vem o enfado
de não ser herói algum,
mas um assalariado
endividado.

É que tudo passa!
Nada fica para contar uma história,
a história de que dei a minha vida pelo meu trabalho.
Então com muita vergonha descubro
que sou deveras devedor
de mim mesmo.



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.