sábado, 18 de novembro de 2017

COMER, REZAR E AMAR - PARTE 1

Ao ler sobre o comércio de escravos na Líbia e ao ver as imagens, fiquei profundamente impressionado. Depois refleti sobre aquilo a semana inteira, o que me motivou a escrever.
Fato é que quando nos deparamos com crueldades dessa natureza, muitas vezes somos induzidos a pensar que se tratam de problemas localizados e distantes de nós. Mas a verdade não é essa, infelizmente. Se pensarmos bem, chegaremos à conclusão que uma mesma cultura permeia aquela sociedade e a nossa, o mundo todo, que é a cultura pagã. Aqui, debaixo de  nosso nariz, há perversidades até piores.
Neste texto, procuraremos reunir elementos que caracterizem o paganismo, não só o islâmico, mas como um todo, visto que o paganismo é uma coisa só, não importa onde esteja e a forma que assuma. Ele é sempre uma cultura ateia, individualizante e despersonificante, ainda que se apresente muito religioso e com um discurso bonito de tolerância e inclusividade.
Fato é que somente duas culturas subsistem no mundo: o cristianismo e o paganismo, a descendência de Sete e a descendência de Caim. Tudo o que contradiz o cristianismo é necessariamente pagão. Por isso, a compreensão do paganismo requer uma abordagem dialética com o cristianismo.


O Deus pagão é sempre um Deus impessoal. Essa impessoalidade de Deus está no panteísmo, em que Deus é o cosmos, incapaz de pensar, ouvir, falar, ou seja, interagir. Está no deísmo, em que um Deus criou o cosmos e o deixou seguir seu próprio caminho, indiferente aos nossos sentimentos e à nossa realidade. Está na transcendência, que é o caso dos judeus e muçulmanos, que concebem um Deus separado das criaturas, incomunicável, impassível e imóvel. Em todo caso, percebe-se que não há Deus algum a um pagão, porque seu Deus é incapaz de relacionar-se com ele. Ter um Deus impessoal é o mesmo que não ter Deus algum, e é com base nisso que o pagão irá viver.
Como resultado de seu ateísmo, o pagão desvia toda a sua espiritualidade a si mesmo. Não sendo possível relacionar-se com um Deus exterior, o pagão relaciona-se consigo mesmo. Vá a um templo budista e veja como as pessoas buscam a Deus: cada qual em seu canto, buscando a Deus em si mesmo, alheio ao outro. O mesmo se vê na mesquita, na sinagoga, mas também no vegano, em toda pessoa que busca sua redenção na cidadania e na civilidade, como percebemos na grande massa agnóstica ocidental. Como resultado, a cosmovisão é profundamente individualista: tudo começa e termina no Eu. Eu sou a grande fonte de transformação, a causa de tudo o que acontece, a origem do êxito e da desventura, tudo gira em torno de mim, por mim e para mim. E o Outro, quem ele é? Ele é apenas o intermédio, um caminho, um objeto, um corpo. O Outro existe para o pagão da mesma forma que o restante do cosmos: está ao seu dispor, assim como o ar, a água e a terra.
Da mesma forma como o pagão olha para o Outro, ele olha para seu corpo, que ele enxerga como algo fora de si, um invólucro, um bem a ser consumido. Para o pagão, o Eu é sua alma, seu mundo interior, que ele diviniza. O corpo é apenas a morada do verdadeiro Eu, que é usada como qualquer outra morada ou bem material. 
O pagão busca a felicidade de maneira solitária. Mesmo quando aparenta buscar a felicidade alheia, ele busca sua própria felicidade, pois sua cosmovisão é individualista. Tudo o que o pagão faz ou deixa de fazer é para o seu próprio bem, para sua própria promoção e está dentro do âmbito de seu interesse. Essa felicidade pode ser de natureza espiritual e cúltica, ou somente carnal, quando então toda a espiritualidade se expressa em hedonismo, por vezes sutilíssimo. Frequentemente o hedonismo é tão somente a busca da paz de consciência, visto que uma consciência atribulada pela culpa é um empecilho ao prazer.
Uma vez seja o Eu divinizado, espera-se que dele venha a norma. Entre um Deus incomunicável e desconhecido e um Deus interior, que pode ser explorado, é evidente que o pagão deverá buscar nesse Deus interior a verdade e a norma de vida. Daí vem o subjetivismo, que caracteriza o modo de pensar pagão, seja no ocidente apóstata, seja entre os judeus, muçulmanos e budistas. A verdade é sempre algo subjetivo, ou seja, que emana do Eu. 
Esse subjetivismo é muito intolerante. É próprio do pensamento pagão desconsiderar a existência do Outro, seu pensamento, sua conduta. Mesmo quando prega a paz e a inclusividade, o pagão é autoritário e excludente, porque ele é Deus e norma. O Outro não tem que pensar, mas deve permanecer à sua disposição como receptor e ouvinte. 
Ateísta e individualista, idólatra de si mesmo, o pagão irá se comportar de maneira adequada à sua cosmovisão. Não podendo se relacionar com um Deus exterior, relaciona-se com um Deus interior, ou seja, consigo mesmo. O Outro é despersonalizado e torna-se um bem a ser usufruído. Como resultado, a existência do Outro está a serviço do Eu. Se o Outro não atender aos meus interesses pessoais, ele deve ser banido da mesma forma que se bane qualquer coisa imprestável. O Outro pode ser um embrião, que eu posso abortar; um cônjuge, de quem posso me divorciar; um trabalhador, que eu posso explorar e escravizar; um corpo humano, que eu posso usufruir; um doente, que eu posso abandonar ou matar. No modo de pensar pagão, o Outro pode ser usado da mesma forma que a água, o ar e a terra. Se me serve, é bom; se não me serve, lanço fora, sem qualquer remorso. A coisificação do Outro não é fato novo, mas é própria do paganismo, desde sempre.
A mesma relação o pagão tem com seu corpo. Se o corpo é um bem consumível, é de se esperar sua instrumentalização, sobretudo para o alcance da felicidade. Se a felicidade é vista como bem-estar espiritual, o corpo é negligenciado e castigado, pois sua aniquilação se torna um meio. Se a felicidade é vista como bem-estar carnal, o corpo se torna palco de todo o tipo de sensualização e erotização, pois novamente é reduzido a um simples meio. Em tudo isso, percebe-se com clareza que o corpo se reduz a uma coisa, que se deve descartar ou consumir, o que indubitavelmente lesa a dignidade humana e determina todo o tipo de autodegradação. Se meu corpo me traz infelicidade, irei destruí-lo, seja pela ascese, seja pelo suicídio, prostituição ou consumo de drogas. Se meu corpo traz felicidade, irei embelezá-lo, expô-lo como troféu e dedicar-me ao seu prazer. Em todo caso, nada disso depõe contra a moralidade, pois o corpo não sou Eu, mas uma coisa.
Se a verdade provém do Deus interior, ela é algo subjetivo. Entretanto, é um subjetivismo que não se restringe ao portador. Quando a verdade deixa de ser um patrimônio comum, ela necessariamente se torna um elemento coercivo, porque é próprio da verdade a busca pela legitimação. Como a legitimação depende do Outro, este se torna área de atuação, receptáculo, plateia. Se o Outro se recusa a legitimar a minha verdade, como coisa que é, deve ser eliminado. Daí toda a intolerância que caracteriza o paganismo. As pessoas são humilhadas, excluídas, desconsideradas e até mortas pelo simples fato de não legitimarem a verdade alheia. Para o pagão, o Outro não é uma pessoa, mas aquilo que legitima ou não seu modo de pensar. Se legitima, permanece, porque o pagão precisa de um espelho onde contemplar-se. Se não legitima, deve ser descartado como traste inservível e até como ameaça à sua subsistência.
Mas por que a verdade pessoal precisa ser legitimada pelo Outro? É devido às suas implicações morais. A moralidade é uma manifestação da verdade que precisa ser legitimada pelo Outro, já que envolve aprovação e condenação, coisas que somente o Outro pode fazer. Moral é aquilo que o Outro aprova. Imoral é aquilo que o Outro desaprova. De qualquer forma, o Outro é necessário para autenticar a moralidade. Mesmo quando nos julgamos, é como Outro que nos julgamos, como olhar externo sobre nós mesmos. E é por causa da legitimação moral, que a verdade subjetiva busca impor-se sobre o Outro. Não é suficiente que eu pense assim ou me comporte assim, eu quero que o Outro me aprove. Se não o fizer, irei me sentir imoral. Se me sentir imoral, serei infeliz. É por isso que o Outro deverá legitimar a minha verdade, caso contrário deverá ser banido da minha vista.
Diante do exposto, deve-se concluir que o pagão é incapaz de amar o Outro. Ele somente se ama. Seu Deus não está fora de si, mas dentro, e é para dentro que toda a razão, afetividade e espiritualidade se voltam.  O Outro é apenas um constituinte do cosmos, algo que está ao seu dispor.
Na postagem seguinte, iremos tratar sobre a cosmovisão cristã, que é a contraparte do paganismo. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.