sexta-feira, 23 de junho de 2017

ONDE SE ENCONTRA A MARIOLOGIA LUTERANA?

Nos últimos dias, surgiu grande polêmica em torno da figura do pastor Cláudio Duarte, relacionada ao que ele disse acerca de Maria: que ela não é mãe de Deus e que, com certeza, teve vida conjugal com José após o nascimento de Jesus. Tudo em tom de brincadeira, como é próprio desse pastor, mas dito em um púlpito, dentro de uma comunidade religiosa. Como era de se esperar, sua mensagem foi imediatamente repudiada por muitos católicos romanos.
Enquanto eu o ouvia, pensei comigo: Puxa, isso bem poderia estar saindo da boca de um pastor luterano. Sim, muitos pastores e leigos luteranos pensam exatamente como o pastor Cláudio. Então concluí: é necessário abordar sempre de novo a questão de Maria ou a mariologia.
Por outro lado, vez ou outra visualizo postagens de luteranos com invocações a Maria, que certamente não me deixam de provocar incômodo.
Então percebo que nós, luteranos, entrepostos entre romanos e protestantes no palco cristão ocidental, temos de assumir nossa postura mediana tradicional, não polarizando para nenhuma das direções, pois em ambos os polos há problemas sérios envolvendo a figura de Maria.
Uma mariologia problemática é aquela que diviniza Maria, que a coloca como advogada, intercessora, dispenseira de graças e de misericórdia. É muito problemática uma mariologia que atende à ideia de um Cristo que está irado conosco, que está indisposto a nos receber, devido ao nosso pecado, de forma que é necessário recorrer à intercessão de sua mãe. Também é muito problemática uma mariologia que torna Maria uma cooperadora da redenção humana (sinergia). É problemático e até pagão! Primeiro o homem se afunda em obras, depois passa a recorrer a quem tem obras e muito mérito para lidar com Deus em seu lugar. Dentro disso, um caminho diferente de Cristo é estabelecido e o mandamento: "E tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, isso farei" é desprezado. Portanto, uma mariologia que se opõe à Palavra de Deus.
Por outro lado, é problemática também a mariologia que procura vulgarizar a figura de Maria, tornando-a uma cristã qualquer. Essa mariologia afirma que Maria era pecadora, que a humanidade de Cristo não se formou a partir de sua humanidade, que teve uma vida conjugal normal com José após o nascimento de Jesus e que faleceu, foi sepultada, enfim, que virou terra e está aguardando a ressurreição.
Percebemos que não há respaldo escriturístico para nenhum dos dois polos. Muito pouco as Escrituras falam acerca de Maria e o que temos é insuficiente para tirar qualquer conclusão acerca de sua natureza, matrimônio e destino final. Maria, portanto, permanece um mistério impossível de ser desvendado nesta vida. Quase tudo será mera opinião, exceto três coisas, que para nós, cristãos, são DOGMAS: que Maria concebeu Jesus sem cooperação do homem, que Jesus é semente dela e que ela é verdadeira mãe de Deus.
A mariologia saudável deverá se restringir a esses três pontos. O que passar disso, é aceitável, contanto que permaneça como opinião pessoal e não contradiga as Escrituras.


De acordo com o relato bíblico, Maria concebeu Jesus por obra do Espírito Santo, sem participação de um homem. Algo que certamente pegou os judeus de surpresa, mas que foi anunciado ainda no Éden. 
Foi prometido a Eva que a semente da mulher haveria de esmagar a cabeça do demônio (Gênesis 3:15). De acordo com o entendimento dos hebreus, todo filho é semente do homem. Deus, porém, prometera a Eva uma semente de mulher, sendo esse o primeiro sinal de que a Salvação haveria de vir a partir de uma virgem.
O profeta Isaías, iluminado por essa Palavra, profetizou que uma virgem iria conceber e dar à luz um filho, que seria chamado pelo próprio nome de Deus (Isaías 7:14).
Isso foi questionado por Cerinto e outros gnósticos, que ensinavam ter sido a concepção de Jesus algo natural, decorrente da união de um homem com uma mulher. Naquela época, o problema era essencialmente cristológico, pois se duvidava da encarnação de Deus. Hoje em dia, essa mesma heresia está sendo defendida pelo liberalismo teológico, só que não pelo mesmo caminho dos gnósticos. Hoje a heresia é fruto de uma anterior vulgarização da figura de Maria. Primeiro Maria se tornou uma mulher comum, depois sua concepção deixou de ser milagrosa e tornou-se igualmente comum. Apesar de o liberalismo teológico descrer na encarnação de Deus, isso não é a fonte da heresia. Talvez seja, inclusive, a consequência.
Se Maria permaneceu virgem ou não após o nascimento de Jesus, sobre isso iremos falar mais adiante. 
Quanto a Lutero, ele com certeza acreditava na virgindade perpétua de Maria:

"Assim Elvídio, criatura estúpida, também quis que Maria haja tido filhos depois de Cristo, baseando-se nestas palavras do evangelista: 'E José não conheceu sua noiva Maria, até que ela deu à luz o seu primogênito'. Quis ele entender essas palavras como significando que, depois do primeiro filho, ela teve outros. Néscio grosseiro! Deu-lhe resposta acertada S. Jerônimo" (Vom Schem Hamphoras und vom Geschlecht Christi, 1543).

Jesus é verdadeira semente de Maria. Isso significa, no modo de falar do povo hebreu, que Jesus foi concebido e gerado a partir do corpo de Maria. Ele não foi colocado lá, criado lá, mas constituído lá. Isso para nós é dogma!
Alguns transformaram Maria em uma espécie de barriga de aluguel. Roubam dela a maternidade real. Embora a concepção tenha sido milagrosa, a formação da humanidade de Cristo não foi. Pelo contrário, a gestação de Maria foi uma gestação normal. A semente é de Maria, o corpo de Cristo se formou a partir do corpo de Maria, a substância de Cristo se formou a partir da substância de Maria. Negar isso é negar a semente da mulher, prometida a Eva. Negar isso é negar a encarnação do Verbo!
Sobre isso, Lutero afirma o seguinte:

"Igualmente, não é suficientemente claro que o anjo Gabriel é enviado à virgem Maria e diz: 'Eis que conceberás no teu corpo e darás à luz um filho'? Que poderia ser mais claro e evidente? Quem não sabe o que significa conceber e levar um filho no ventre ou [carregar um filho] fisicamente e dar à luz? Mas houve e há pessoas (como o bando dos anabatistas em Münster atualmente) que negam que esteja escrito que Cristo é o filho natural da Virgem, nascido da carne e do sangue dela. Eles querem convencer as pessoas a crer que expressões como 'conceber' e 'dar à luz' não equivalem a ser verdadeiramente mãe e que a criança ou filho não é uma criança natural, mas um abobado ou um monstrengo" (Os capítulos 14 e 15 de S. João, pregados e interpretados pelo Dr. Martinho Lutero e capítulo 16 de S. João, pregado e explicado).

Posto isso, entramos numa questão séria. Está escrito no Salmo 51 que "eu nasci na iniquidade, e em pecado (de semente pecaminosa) me concebeu minha mãe". Com isso, defendemos que a semente do ser humano está maculada pelo pecado original. Sabemos que Cristo foi concebido sem pecado. Então devemos perguntar: como era a semente de Maria? Era, porventura, pecaminosa? É evidente que não. Não sendo pecaminosa, concluímos que era isenta de pecado.
Se a semente de Maria era isenta de pecado, então ela toda era sem pecado. De fato, é inverossímil que alguém esteja livre do pecado original em apenas uma parte do corpo. O pecado original não é uma doença que acomete o corpo, mas uma condição existencial e até metafísica. 
Quanto ao momento em que Maria é liberta do pecado original, as opiniões divergem. Alguns creem que Maria foi concebida sem pecado original.Outros afirmam que Maria foi tornada pura imediatamente antes de conceber, ao receber o anúncio do anjo. Por fim, muitos negam o pecado original e, por isso, não hesitam em dizer que Maria era uma mulher comum. A propósito, estes são bons espécimes de pelagianos.
Lutero, inicialmente, era da opinião romana tradicional que Maria foi concebida sem o pecado original:

"Quem duvida que Deus pode conceder a alguém tanta graça que ele cumpre [os mandamentos] plenamente, como pensamos em relação à Beata Virgem, ainda que não o faça a todos?" (A refutação do parecer de Látomo, 1521).

Depois, mudou de opinião e afirmou aquilo que os cristãos orientais sustentam: que a concepção de Jesus a purificou de todo o pecado.

"Toda pessoa que não é Deus em pessoa, como Cristo, tem concupiscência; mas o homem Cristo não a tem, porque é Deus em pessoa, e na concepção toda a carne e sangue de Maria foram purificados, de maneira que não restou nenhum pecado" (Debate sobre a Divindade e a humanidade de Cristo, 1540).

Considerando que Maria foi purificada de todo o pecado, torna-se inevitável que ela tenha permanecido virgem, visto que a carne santa de Maria não poderia se misturar à carne pecaminosa de José. Como uma mulher santa, tão santa quanto os anjos, haveria de ter relações carnais com seu marido pecador? Vê-se, então, que a questão não é tão simples e que aqui devemos de novo respeitar os Pais, como verdadeiros católicos que somos.
Qual foi, então, a situação de José? Porventura ficou ardendo de desejos por sua esposa, sem poder possui-la? Por acaso Maria o expôs ao pecado?
Um texto me chama a atenção, na famosa Legenda Áurea, da qual Lutero bebeu e que tantas vezes cita em seus textos e sermões:
 
"Daí os judeus dizerem que, muito embora Maria tenha sido de extrema beleza, nunca despertou desejos concupiscentes em ninguém. A razão disso é que a virtude da sua castidade penetrava em todos que a viam e repelia neles toda concupiscência. Ela é comparada ao cedro, cujo cheiro faz as serpentes morrerem, da mesma forma que a santidade irradiada por ela matava a serpente dos movimentos da carne. Ela também é comparada à mirra, que mata os vermes, da mesma forma que a santidade dela destrói toda concupiscência carnal. Ela possuía essa qualidade mais do que outras pessoas que também foram santificadas no ventre materno ou que permaneceram virgens, mas cuja santidade e castidade não se transmitiam aos outros, nem extinguia neles os movimentos da carne, ao passo que a força da castidade da Virgem penetrava até o fundo do coração dos impudicos, tornando-os imediatamente castos em relação a ela" (Legenda Áurea, Purificação da bem-aventurada Virgem Maria).
 
Portanto, a convivência com Maria santificou José, tornando-o um homem castíssimo. Não pela renúncia à libido, mas pela libertação daquilo que é animal, terreno e precário.
Por fim, Maria é verdadeira mãe de Deus. Negar isso é decair da fé cristã. 



O bispo Nestório viveu no século V e, em oposição ao arianismo, afirmava que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Quer dizer, é tão homem quanto um de nós, tão Deus quanto o Pai. Até aqui nenhum problema. A questão é que Nestório começou a negar isso no momento em que negou ser Maria a mãe de Deus. Para ele, Maria é mãe da humanidade de Cristo, não de sua Divindade. Com isso, ele dividiu Cristo em duas pessoas: uma puramente humana, que nasceu de Maria, e outra puramente divina, gerada do Pai. Dada a relevância da questão, isso ocasionou um concílio.
É importante destacar que, ao afirmar que Maria é mãe de Deus, a Igreja não está divinizando Maria. O que se pretende com essa afirmação é manter que Cristo é verdadeiro homem e verdadeiro Deus em uma única pessoa indivisa, em uma única consciência, em uma única hipóstase. Em Cristo, Deus e homem se encontram, fundem-se, compartilham seus atributos, tornam-se um só ser. Por causa dessa união pessoal da natureza humana com a divina, pode-se afirmar que a humanidade de Cristo é onipotente (S. Mateus 28:18) e que a Divindade de Cristo verdadeiramente nasceu de Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificada e morta. O que não é possível à humanidade de Cristo, a Divindade o faz. O que não é possível à Divindade de Cristo, a humanidade o faz. Mas nunca fora da pessoa de Cristo! Onde Deus está, ali Cristo está. Onde Cristo está, certamente estão sua humanidade e Divindade, pois não existe Cristo que não seja verdadeiro homem e verdadeiro Deus. O Cristo que não for homem e Deus é, com certeza, um falso cristo.
O problema maior decorrente da divisão de Cristo em duas pessoas é que Deus deixa de participar da redenção humana. Tudo o que Cristo fez para nossa salvação não pode ser feito pela Divindade, pois nascer, cumprir a Lei, morrer e ressuscitar não são coisas possíveis a Deus, a não ser que ele se encarne. Então a heresia de Nestório coloca um homem nascido de Maria como redentor. Qual seria o papel de Deus na redenção? Afinal, ele não pode nascer, sofrer, morrer e ressuscitar. E como pode um homem vencer a Lei, a morte e o inferno? Com isso, Nestório nega a encarnação de Deus e a dupla natureza de Cristo. Porque, se levarmos a sério o que Nestório diz, há um Cristo coeterno com o Pai e o Espírito Santo, impassível e incorpóreo, absolutamente transcendente, e um homem Cristo, que seria incapaz de vencer a Lei, a morte e o inferno. A conclusão da heresia de Nestório é que o Verbo não se fez carne, mas permaneceu igual ao que sempre foi junto ao Pai e ao Espírito Santo. Igualmente se pode concluir que a libertação da morte, da Lei e do inferno não foi possível, já que um homem não pode nada contra tais inimigos. Isso é uma das muitas repaginações do gnosticismo dos primeiros dois séculos, que distinguia o Cristo eterno, que está no seio do Pleroma, do Cristo temporal, que nasceu de Maria.
Lamento que o nestorianismo esteja tão presente no protestantismo atual, a ponto de qualquer protestante considerar idolatria a afirmação de que Maria é mãe de Deus. Com isso, a encarnação do Verbo está sendo negada. Depois fica fácil dizer que a Eucaristia é simbólica e que o Batismo não justifica, pois o Verbo não se fez carne, mas continua puramente divino, tão incorpóreo quanto o Pai e o Espírito Santo, tão incognoscível quanto o Pai e o Espírito Santo. Esse foi o erro principal no discurso do pastor Cláudio, mas que poderia estar na boca de qualquer pastor luterano ou na boca de um leigo.
Quero concluir com Lutero:

"Assim também se deve dizer que Maria é a mãe verdadeira e natural da criança que se chama Jesus Cristo, e que ela é a verdadeira mãe de Deus, progenitora de Deus e tudo o que se pode dizer da mãe de uma criança como amamentar, lavar, alimentar, dar que beber, de sorte que Maria amamenta Deus, embala a Deus, faz mingaus e sopas para Deus. Pois Deus e homem é uma pessoa, um Cristo, um filho, um Jesus, não duas pessoas, dois Cristos, dois filhos, dois Jesus, do mesmo modo como também teu filho não é dois filhos, dois Joões, dois sapateiros, ainda que tenha duas naturezas, corpo e alma, corpo de ti, alma de Deus somente" (Dos concílios e da Igreja, 1539).

Autoria: Carlos Leão.
Imagens extraídas da internet.






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