quinta-feira, 24 de março de 2016

UM SERMÃO SOBRE A CONTEMPLAÇÃO DO SANTO SOFRIMENTO DE CRISTO



"Algumas pessoas meditam o sofrimento de Cristo indignando-se contra os judeus, cantando a canção do pobre Judas e censurando-o pelo que fez, e se limitam a isso, da mesma forma como estão acostumadas a acusar outras pessoas e a condenar e denegrir seus adversários. Isto com certeza não significa meditar o sofrimento de Cristo, e sim a maldade de Judas e dos judeus.
Alguns descreveram diversos frutos e proveitos oriundos da contemplação do sofrimento de Cristo. Sobre isso circula por aí um dito enganoso, atribuído a Santo Alberto, segundo o qual seria melhor meditar uma vez superficialmente o sofrimento de Cristo do que jejuar um ano inteiro, orar o Saltério diariamente, etc. Existem pessoas que vão cegamente atrás disso e acabam perdendo, assim, o verdadeiro fruto do sofrimento de Cristo, pois buscam seu próprio interesse. Por isso, ficam carregando consigo figurinhas e livrinhos, cartas e cruzes. Algumas pessoas chegam ao ponto de acreditar que, com isso, estão se protegendo contra inundações, assaltos, incêndios e toda sorte de perigos, e que, assim, o sofrimento de Cristo, contrariando seu próprio caráter e natureza, devesse proporcionar-lhes uma vida sem sofrimento.
Essas pessoas têm compaixão por Cristo, lamentando-o e pranteando-o como um homem inocente. Foi o que fizeram as mulheres que, de Jerusalém, seguiram atrás de Cristo e foram repreendidas por ele no sentido de que chorassem por si mesmas e por seus filhos. Desse gênero são aqueles que, em meio à meditação da paixão, passam a divagar, acrescentando muita coisa a respeito da despedida de Cristo em Betânia e das dores da virgem Maria, o que também não lhes adianta muito. É por isso que a pregação da paixão se prolonga por tantas horas, sabe Deus se é mais para dormir ou para ficar acordado. Desse bando fazem parte também aqueles que aprenderam quão grande proveito traria a sagrada missa e, em sua ingenuidade, julgam que é suficiente ouvir a missa. Somos induzidos a essa atitude por afirmações de diversos mestres no sentido de que a missa seria agradável a Deus opere operati, non opere operantis, por si própria, também sem nosso mérito e dignidade, como se isso bastasse. Na verdade, porém, a missa não foi instituída em função de sua própria dignidade, mas para tornar dignos a nós, e principalmente para meditar o sofrimento de Cristo. Quando isso não ocorre, transforma-se a missa em obra corporal e infrutífera, por melhor que ela seja em si mesma. Pois de que te adianta que Deus seja Deus, se não for um Deus para ti? De que adianta o fato de que comer e beber em si seja sadio e benéfico, se não for sadio para ti? E é de se temer que com muitas missas nada de melhor se conseguirá, caso não se buscar nelas seu verdadeiro fruto.
O sofrimento de Cristo é meditado autenticamente por aquelas pessoas que o encaram de forma tal, que se assustam sinceramente por causa dele e sua consciência logo cai em desânimo. O susto deve provir do fato de veres a severa ira e o inexorável rigor de Deus para com o pecado e os pecadores, tanto é que nem a seu único dileto Filho ele quis dar por resgatados os pecadores, a menos que o Filho por eles fizesse uma penitência tão grande quanto aquela da qual ele diz através de Isaías: "Eu o feri por causa do pecado do meu povo" (Isaías 53:5). O que será dos pecadores, se até o dileto Filho é ferido assim? Só pode tratar-se de uma gravidade indizível, insuportável, para que uma pessoa tão grande e incomensurável se exponha à mesma e sofra e morra por isso. E se pensares bem a fundo que é o próprio Filho de Deus, a eterna sabedoria do Pai, quem sofre, não deixarás de ficar assustado, e quanto mais profunda for tua reflexão, tanto mais assustado haverás de ficar.
É preciso que graves profundamente em teu coração e que não duvides de forma alguma que quem tortura Cristo dessa forma és tu mesmo, pois teus pecados são, com certeza, responsáveis por seu sofrimento. Assim São Pedro, qual trovão, atingiu e assustou os judeus ao dizer a todos eles: "Vocês o crucificaram", etc (Atos 2:37). Por isso, ao vires os pregos atravessarem as mãos de Cristo, podes ter certeza de que são obra tua; ao vires a sua coroa de espinhos, podes crer que são os teus maus pensamentos; e assim por diante.
Vê, pois, que, quando um espinho aguilhoa a Cristo, seria justo que te aguilhoassem mais de cem mil espinhos; mais ainda: eles deveriam espetar-te desse jeito e até pior por toda a eternidade. Quando um prego atravessa torturantemente as mãos ou os pés de Cristo, tu é que deverias sofrer eternamente com pregos tais e até piores. É o que também sucederá àqueles que fazem com que o sofrimento de Cristo tenha sido em vão para eles. Pois esse sério espelho, que é Cristo, não mente nem brinca; o que ele anuncia será cumprido em sua totalidade.
São Bernardo ficou tão assustado com isso que disse: "Eu julgava estar seguro, nada sabia da sentença eterna sobre mim pronunciada no céu, até que vi que o Filho unigênito de Deus se compadece de mim, se apresenta e se submete à mesma sentença por mim. Ai de mim, se a coisa é tão séria, não é hora de brincar nem de estar seguro" (...).
Neste ponto é preciso exercitar-se muito bem, pois todo o proveito do sofrimento de Cristo depende de a pessoa chegar ao conhecimento de si mesma, assustar-se consigo mesma e ficar quebrantada. E se a pessoa não chegar a isso, o sofrimento de Cristo ainda não lhe terá trazido o proveito da forma devida. Pois a obra própria e natural do sofrimento de Cristo consiste em levar o ser humano à conformidade com Cristo. Assim como Cristo é martirizado física e psiquicamente de forma terrível em nossos pecados, também nós, à sua semelhança, devemos ser martirizados na consciência pelos nossos pecados. Também aqui não se trata de fazer muitas palavras, mas de nutrir pensamentos profundos e de levar muito a sério os pecados (...).
Tem razão para temer quem se sentir tão endurecido e empedernido a ponto de não se assustar com o sofrimento de Cristo nem ser levado ao conhecimento de si mesmo (...). Por esta razão, deves pedir a Deus que abrande o teu coração e permita que medites o sofrimento de Cristo de modo frutífero. Pois nem é possível que o sofrimento de Cristo seja meditado com profundidade por nós mesmos, a menos que Deus o derrame em nosso coração (...). É por isso que aquelas pessoas acima mencionadas não lidam adequadamente com o sofrimento de Cristo, pois não invocam a Deus para tal, mas, por sua capacidade própria, inventaram modos próprios de fazê-lo, tratando o sofrimento de Cristo de forma totalmente humana e infrutífera.
Quanto a quem considerar o sofrimento de Deus por um dia, por uma hora ou mesmo apenas por um quarto de hora, afirmamos abertamente que procede melhor do que se jejuar um ano inteiro, orar o Saltério todos os dias ou mesmo ouvir uma centena de missas; pois essa meditação transforma a pessoa em seu ser quase da mesma forma como o Batismo opera o renascimento. É aqui que o sofrimento de Cristo efetua sua obra autêntica, natural e nobre, estrangula o velho ser humano, espanta todo prazer, alegria e confiança que se possa ter em relação a criaturas, assim como Cristo foi abandonado por todos, até mesmo por Deus.
Visto que semelhante obra não está em nossas mãos, sucede que, às vezes, a pedimos, mas não a recebemos na mesma hora; mesmo assim, não se deve desanimar ou desistir. Às vezes, ela vem quando nem a pedimos, conforme a sabedoria e a vontade de Deus; pois ela quer ser livre e não presa. Então a pessoa fica de consciência aflita e se desagrada de si mesma em sua vida. É bem possível que ela nem saiba que o sofrimento de Cristo é que está efetuando isso nela; talvez não reflita sobre ele. Da mesma forma, outras pessoas concentram-se firmemente no sofrimento de Cristo e, mesmo assim, não chegam ao conhecimento de si mesmas dessa maneira. Naquelas pessoas, o sofrimento de Cristo é oculto e verdadeiro; nestas, é aparente e enganoso (...).
Até aqui falamos sobre a semana da Paixão e a celebração apropriada da sexta-feira santa. Chegamos agora ao dia da Páscoa e à ressurreição de Cristo. Quando a pessoa se conscientizou de seu pecado e ficou profundamente assustada consigo mesma, é preciso cuidar que os pecados não fiquem desse jeito na consciência. Sem dúvida, eles causariam puro desespero. Assim como se manifestaram e foram reconhecidos por intermédio de Cristo, é preciso derramá-los novamente sobre ele e aliviar a consciência.
Tira o teu pecado de cima de ti e o atira para cima de Cristo, crendo firmemente que suas chagas e sofrimentos são teus pecados e que ele os carrega e paga por eles, como diz Is. 53:6: "Deus fez cair sobre ele o pecado de nós todos"; e São Pedro: "Ele carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados"; e São Paulo: "Deus o fez um pecador por nós, para que fôssemos justificados através dele". Em passagens como estas e em outras deves confiar com toda a ousadia; quanto mais te atormentar tua consciência, tanto mais deves confiar nelas (...). Pois se permitimos que nossos pecados ajam em nossa consciência, se permitimos que fiquem conosco e se os enxergamos em nosso coração, eles são fortes demais para nós e vivem eternamente. Mas se vemos que estão sobre Cristo e que ele os vence através de sua ressurreição, e se cremos nisso com ousadia, eles estão mortos e foram destruídos; pois sobre Cristo não puderam permanecer, foram tragados por sua ressurreição (...). 
Se, entretanto, não consegues crer, deves pedir a Deus por isto, como dissemos acima, pois também o crer está exclusivamente nas mãos de Deus, e ele também o dará, ora abertamente, ora ocultamente, como dissemos a respeito do sofrimento. Mas tu podes animar-te com isso: em primeiro lugar, não deves mais contemplar o sofrimento de Cristo (pois agora este já efetuou sua obra e te assustou); deves ir em frente e contemplar seu amável coração, considerando quanto amor ele tem para contigo, amor que o obriga a carregar o fardo tão pesado de tua consciência e de teu pecado. Assim teu coração ficará doce para com ele e a confiança da fé será fortalecida. Continuando, passa então pelo coração de Cristo para chegar ao coração de Deus, e vê que Cristo não poderia ter te demonstrado esse amor caso Deus, a quem Cristo obedece com seu amor para contigo, não o tivesse querido em amor eterno. Assim acharás o coração paterno divino e bom e, como Cristo diz, dessa maneira serás atraído por Cristo para o Pai. Então passarás a entender as palavras de Cristo: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito", etc. É isto o que significa reconhecer a Deus de forma apropriada: apreendê-lo não pelo seu poder ou por sua sabedoria (que são assustadores), mas pela bondade e pelo amor. Então a fé e a confiança podem subsistir e então a pessoa é verdadeiramente renascida em Deus.
Quando, pois, teu coração estiver firmado em Cristo e tiveres te tornado inimigo dos pecados - por amor e não por medo do castigo -, então o sofrimento de Cristo também deverá constituir-se em exemplo para toda a tua vida. Agora queremos refletir sobre ele de outro modo ainda; pois até aqui tratamos dele como um sacramento que atua em nós e que experimentamos passivamente. Agora o trataremos como algo que também nós efetuamos, da seguinte maneira:
Quando fores incomodado por sofrimentos ou por uma doença, reflete quão pouco isto é em comparação com a coroa de espinhos e os pregos de Cristo.
Quando tiveres que fazer ou deixar de fazer algo que te contraria, pensa como Cristo, amarrado e preso, é levado de lá para cá.
Se és atribulado pela soberba, repara o quanto teu Senhor é debochado e desprezado junto com os malfeitores.
Se a incastidade e a concupiscência te atacam, lembra-te quão dolorosamente a tenra carne de Cristo foi açoitada, golpeada e ferida.
Se ódio, inveja ou sentimento de vingança te atribulam, pensa com quantas lágrimas e clamores Cristo orou por ti e por todos os seus inimigos, quando teria sido cabível que ele se vingasse.
Se tristeza ou outras adversidades afligem teu corpo ou teu espírito, fortalece o teu coração e diz: ora, por que eu também não poderia passar por uma pequena tristeza, já que, no Getsêmani, meu Senhor suou sangue, de tanto medo e tristeza? Servo indolente e infame seria quem quisesse ficar na cama enquanto seu senhor tem que lutar na agonia da morte. Como vês, em Cristo se podem encontrar força e alívio contra todos os vícios e desvirtudes. É nisto que consiste a verdadeira meditação do sofrimento de Cristo, são estes os frutos de seu sofrimento (...).
Cristãos autênticos são os que trazem a vida e o nome de Cristo para dentro de sua vida da forma descrita por São Paulo: "Os que pertencem a Cristo crucificaram sua carne, com todas as suas concupiscências, juntamente com Cristo" (...). Porém essa contemplação caiu em desuso e se tornou rara, embora as epístolas de São Paulo e São Pedro estejam cheias delas. Nós transformamos a essência numa aparência e pintamos a meditação do sofrimento de Cristo apenas nas folhas e nas paredes" (Dr. Martinho Lutero, Um Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de Cristo, datado de 1519, traduzido pela equipe: Annemarie Höhn, Ilson Kayser, Luís M. Sander, Martinho L. Hasse; publicado em Martinho Lutero: obras selecionadas, volume 1, pelas editoras Sinodal e Concórdia. Os grifos são meus).

Imagem extraída da internet.


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