segunda-feira, 19 de outubro de 2015

DA GLÓRIA PARA A CRUZ


Estamos nos aproximando da celebração da Reforma e é então que me vem a necessidade de novamente remoer a Teologia da Cruz, que é um distintivo da doutrina luterana e algo que deve residir no coração de todo cristão verdadeiro. Na verdade, todo cristão deverá chegar à Teologia da Cruz. Essa teologia que embeleza as confissões luteranas terá que embelezar também o coração de todo cristão antes que ele parta deste mundo.
Deus deixou a sua glória para ser pendurado numa cruz, de maneira vexatória. Também nós devemos deixar a glória e descer até à cruz.
Assim nos ensina S. Paulo: "Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus" (1 Coríntios 1.18).
Há duas maneiras de ter conhecimento acerca de Deus e, a partir desse conhecimento, relacionar-se com ele. A primeira maneira é através da razão. A segunda, através da fé.
A razão nos revela muito sobre Deus. Ela busca informações acerca de Deus no homem e fora do homem, no mundo e no universo. Ela busca conhecer Deus através do que ele criou e estabeleceu. Também a razão aprende muito acerca de Deus a partir da Lei natural que existe em nosso coração.
O problema maior de se procurar Deus através da razão é que inevitavelmente iremos dar com um Deus distante, inacessível e amedrontador. Como nossa razão está corrompida pelo pecado, interpreta o desassossego da consciência como ira de Deus e tem como imanência de Deus a criação, que está igualmente corrompida pelo mal (Romanos 8.20-22). O resultado dessa percepção é uma caricatura de Deus, porque nossa razão é caricata, nossa consciência é caricata e a criação é caricata. O Deus que a razão produz é soberano, distante, terrível em seus decretos, incomunicável, incompreensível, não servido por mãos humanas; que ama e rejeita na mesma proporção, elege, julga, salva e condena. Esta é a Teologia da Glória. Ela é erigida sobre essa percepção de Deus e desenvolve-se através de obras, servidão e medo. Depois, moralismo e isolacionismo. Ela nos apresenta um Leviatã, que não podemos amar, somente temer e adorar, amedrontados. 
A Teologia da Glória é lógica, fruto da razão humana. Ela dá corpo a praticamente toda teologia que existe na terra. Esse Deus que ela propõe é adorado pelos muçulmanos, pelos judeus e por muitos cristãos. Trata-se do "DEUS DESCONHECIDO" dos atenienses, sobre o qual falou S. Paulo: "Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais; de um só fez toda a raça humana para habitar toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites de sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, TATEANDO, o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração" (Atos 17.24-28). Esse Deus não pode ser encontrado, muito menos tocado. Na melhor das hipóteses, ele é só tateado.
Dr. Martinho Lutero trata esse Deus de "Deus escondido" ou "Deus abscôndito".
Muitos, aos lerem as Escrituras, interpretam-nas com o véu da razão (ou Teologia da Glória) diante dos olhos, como disse S. Paulo, com referência aos judeus: "Mas até hoje, quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles. Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é retirado" (2 Coríntios 3.15-16).
A relação com esse Deus abscôndito não nos salva, porque não pode haver verdadeira confiança nele, muito menos amor. Como amar tão severo juiz, que com tanto furor castiga o pecado, reivindica a santidade, reivindica o que não podemos lhe dar, por mais que nos esforcemos? Como amar tão terrível soberano, que destrona poderosos e destrói nações como se fossem nada, de acordo com seu conselho inescrutável? É certo que prevalecem temor, tremor e adoração servil no coração humano. Como somos imagem e semelhança de Deus, quando adotamos a Teologia da Glória também nos tornamos miniaturas do Leviatã, cheios de moralismo e fechados em nós mesmos, não querendo nos misturar com quem é moralmente inferior.
Dr. Martinho Lutero deixou um único legado: a Teologia da Cruz. Ela está formalizada nas confissões luteranas, mas é necessário que todo cristão se dê com ela um dia. Caso contrário, estará perdido com os muçulmanos e judeus.
Deus está revelado de maneira autêntica e perfeita somente em Jesus. Fora de Jesus, tudo é caricato e não pode nos conduzir ao conhecimento de Deus. Fora de Jesus, nada podemos saber de Deus. Fora de Jesus teremos um monstro para servir; nada mais.
Deus se tornou homem, palpável, visível, com sentimentos, que chora e carece. Deus se tornou homem que cansa, que dorme profundamente, que sua gotas de sangue, que se angustia até à morte. Deus se tornou homem para ser escarnecido e morrer em uma cruz da maneira mais aviltante que se pode imaginar. Deus se tornou homem para tocar, curar, andar e jantar conosco. Deus se tornou homem para estar conosco segundo sua humanidade, para ser triturado em nossa boca e engolido. Deus se tornou homem para nos revelar seu amor de maneira inequívoca.
Essa é a Teologia da Cruz, que nos apresenta a humanidade de Deus. Não temos que nos tornar divinos para o comungarmos. É ele quem se torna humano para o comungarmos. O eixo dessa teologia é a humanidade de Deus, não o conhecendo fora dessa humanidade. Dr. Martinho Lutero, para escândalo de muitos, reiteradas vezes afirmou que não conhecia Deus algum que não houvesse se encarnado.
A Teologia da Cruz não busca Deus fora do homem, mas nele. Não quer saber sobre a transcendência, nem sobre os decretos, soberania, juízos e predestinações desse Deus. Rejeita tudo isso para abraçar, beijar e cheirar sua carne. 
Eu fui conhecer a Teologia da Cruz na Igreja Evangélica Luterana. O que me atraiu a essa igreja foi a presença real de Cristo na Eucaristia. Mas imbuído da Teologia da Glória, eu temia a presença real de Cristo nos elementos, porque para mim essa presença era REAL, no sentido de realeza também. Eu não podia crer que Deus estava me servindo. Assim, certo dia confessei ao pastor André Plamer que achegar-me à Eucaristia estava me provocando medo, devido às minhas indignidades. Ele, que me instruiu na Teologia da Cruz, ensinou-me a nunca ter medo de Deus. Deus é humilde e gosta de servir. Para ele, lavar os pés é pouco. Para ter parte com ele é necessário literalmente comê-lo e bebê-lo.
Foi então que descobri Deus e sua Igreja, inclusive eu, nos Cânticos de Salomão. 
Somente esse Deus pode ser verdadeiramente amado e crido. Somente a esse Deus podemos servir de boa vontade ou livremente. Somente esse Deus pode nos salvar.
Igualmente, como somos imagem e semelhança de Deus, quando enxergamos a fragilidade de Deus, sua humildade e serviço, voltamo-nos para nossa indigência e tornamo-nos mais abertos, solidários, compassivos, solícitos e servis. Passamos a nos alegrar em nossa pobreza, porque ela nos configura a esse Deus. Essa teologia nos faz amar o último lugar, onde Deus se encontra. Também faz com que nos apeguemos aos escândalos, onde Deus está.
Essa Teologia da Cruz deve ser perseguida a todo o custo por todos os cristãos. Quem se encontra na Teologia da Glória deve suplicar a Deus que este o transporte à Teologia da Cruz o quanto antes. 
A Teologia da Cruz não é luteranismo, é uma necessidade humana. 
Muitos imaginam a Reforma como sendo uma ruptura com a apostasia, superstições medievais, imagens, crucifixos e velas. Não, a verdadeira Reforma foi uma ruptura com a Teologia da Glória. Acho importante retornarmos às nossas origens, não por uma questão doutrinária somente, mas por uma questão de vida.
Quem encontra a Teologia da Cruz e adere a ela, já está reformado, não importa em qual igreja congregue.

Dr. Martinho Lutero: "É perigoso querer perscrutar e compreender a divindade nua sem o mediador Cristo, pela razão humana, como o fizeram os sofistas e monges e como o ensinaram outros. A Escritura diz: "Não me verá o homem, e viverá"; e a fim de evitarmos tal perigo, foi-nos dado o Verbo encarnado, colocado num presépio e suspenso na madeira da cruz. Este Verbo é a Sabedoria e o Filho do Pai, e nos revelou qual é a vontade do Pai conosco. Aquele que, tendo posto de lado este Filho e segue suas cogitações e especulações, este se escondeu da majestade de Deus e desespera".



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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