sexta-feira, 9 de outubro de 2015

AS INDULGÊNCIAS - PARTE 1


Eu me lembro de minha adolescência, quando pela primeira vez ouvi falar de Dr. Martinho Lutero, de suas denúncias contra o comércio de indulgências, de sua excomunhão pelo papa e do cisma que se seguiu a isso. Eu não sabia o que eram indulgências. A professora de história nos ensinou que indulgências eram "perdão dos pecados" e que Roma estava vendendo o "perdão dos pecados".
Creio que muitos evangélicos e até mesmo católicos romanos não têm ideia do que sejam as indulgências. Na minha opinião, eles não estão perdendo nada. Mas como as indulgências são ainda ensinadas pela Igreja de Roma e como as críticas levantadas por Dr. Martinho Lutero contra elas foram a causa de sua excomunhão, acho importante refletir sobre esse tema, principalmente porque estamos no mês da Reforma luterana. 
Para entender as indulgências, é necessário antes entender a visão da Igreja de Roma daquilo que considera sacramento da penitência. A penitência, de acordo com sua doutrina, é constituída de contrição, confissão e satisfação. Contrição é a tristeza sincera por haver pecado. A confissão é quando a pessoa, triste por causa do pecado, relata ao sacerdote seu pecado, a fim de ser absolvida. A satisfação é a pena prescrita a quem se confessou e foi absolvido, consistindo de reparação do erro, orações, jejuns e obras de misericórdia. A finalidade da satisfação é fazer com que a pessoa, na medida do possível, faça a reparação do erro, reflita sobre seu erro e aprenda com ele.
A prática da satisfação pelo pecado também ocorre em igrejas protestantes. Por exemplo, há pastores protestantes que se recusam a casar na igreja moças grávidas e muitas comunidades mantêm o costume de privar fieis da eucaristia por determinado tempo, mesmo havendo confissão do erro, mesmo quando a pessoa declara o desejo de emendar-se. Então a satisfação existe até mesmo nas igrejas protestantes, com o intuito de averiguar a sinceridade do arrependimento. 
A Igreja de Roma também classifica os pecados em veniais e mortais. Os pecados veniais são cometidos involuntariamente, enquanto que os mortais são atos deliberados. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, todos os pecados mortais devem ser confessados, ou melhor, relatados um a um ao sacerdote, até mesmo aqueles pecados mais secretos, cometidos contra o nono e décimo mandamentos do Decálogo. Após minuciosa confissão, os pecados são absolvidos e cabe ao penitente fazer algum tipo de reparação ou aprender com seu erro, através da disciplina espiritual, que é a satisfação.
De acordo com a Igreja de Roma, as consequências do pecado (ou penas) são temporais e eternas. As consequências eternas do pecado, ou seja, a morte eterna no inferno, são desligadas pela absolvição do sacerdote. Quem pagou o preço desse desligamento foi Jesus, mediante seu sacrifício. Quanto às consequências temporais do pecado, estas não são desligadas pelo sacerdote e deverão ser sofridas pelo penitente, nesta vida e, muito provavelmente, no purgatório.
Purgatório é uma condição ("fogo purificador", nas palavras do Catecismo) em que as almas de quem morreu na amizade de Deus padecem as consequências temporais de seus pecados e são purificadas pelo sofrimento, até que se tornem perfeitas e possam entrar no gozo do Céu.
Tudo isso não é nenhum crime contra a razão humana. Muito pelo contrário, crime contra a razão é ensinar a justificação somente pela fé, sem necessidade de obras, tendo por base os méritos e a perfeita satisfação de Cristo por todos os pecados. Que os erros têm consequências temporais, isso é evidente. Quem erra sofre as consequências de seu erro. Nós, em Minas Gerais, dizemos que quando a cabeça não pensa, o corpo é que padece. 
A satisfação pelo pecado é, sem dúvida, uma maneira interessante de avaliar a veracidade do arrependimento e tem um propósito didático. Nós utilizamos o método da satisfação em nossos lares, ao disciplinar nossos filhos. Portanto, os Pais da Igreja, quando estabeleceram a satisfação, certamente tinham uma boa intenção.
Também é agradável à razão a ideia de purificar-se dos erros por iniciativa e esforço próprios. É o que espíritas, budistas, muçulmanos, hinduístas e todos os pagãos fazem, porque a ideia de justiça alheia que nos é imputada não é nem de longe razoável. Nossas leis evidenciam a racionalidade de punir quem erra, mesmo havendo sincero arrependimento. Se fé e razão podem ser conciliadas, não é ideia descabida pensar em um purgatório, onde a pessoa possa se purificar de seus pecados e ser reabilitada deles.
Entretanto, a doutrina católica romana sobre a penitência têm sérios problemas associados, que põem em perigo a verdadeira fé. Não é prudente fugir a essas questões. Em se tratando de um cura d'almas, como Dr. Martinho Lutero o foi, a necessidade de enfrentar essas questões assume uma dimensão muito maior.
Comecemos pela classificação que a Igreja de Roma faz dos pecados em veniais e mortais. São Paulo nos ensina com muita clareza que a única consequência do pecado é a morte, que começa agora, no tempo, e nunca termina. Quem peca começa a morrer e esse processo de morte é perpétuo. São Paulo não excetuou pecado algum ao declarar que "o salário do pecado é a MORTE" (Romanos 6.23). E quanto aos gentios, que pecavam sem saber que estavam pecando, ele declarou que "assim, pois, todos os que pecaram SEM LEI também SEM LEI perecerão" (Romanos 2.12). Pecado é coisa séria demais para ser considerado venial. Por cada pecado Cristo morreu. E não fosse sua morte vicária na cruz, todos nós estaríamos condenados para sempre, não só pelos ditos pecados mortais, porque todo pecado é, segundo S. Paulo, mortal. O chamado pecado venial só existe no contexto da fé, em que Deus graciosamente perdoa nossos pecados involuntários e cotidianos de maneira contínua. Portanto, nenhum pecado é venial segundo sua natureza, mas segundo a misericórdia divina aos que creem.
Sempre digo que quem subestima o pecado igualmente subestima a graça. Jesus disse: "Aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama" (Lucas 7.47). Portanto, quem reduz o pecado inevitavelmente irá reduzir a graça de Deus.
Passemos então para a primeira parte da penitência, que é a contrição. O Catecismo da Igreja Católica ensina que a contrição é a tristeza profunda ou "dor da alma" provocada pelo pecado. É necessário que haja essa tristeza premente para que o perdão ocorra. Isso é uma questão muito problemática porque não sabemos o quanto é necessário entristecer-nos para que de fato sejamos absolvidos do pecado. Para piorar, muitos pecados graves não nos suscitam tristeza, por mais que a queiramos, devido à nossa natureza pecaminosa. O Catecismo bem tenta amenizar esta situação ao falar em "predisposição" ao perdão. Daí fica a dúvida cruel: estou de fato triste pelo meu pecado e serei perdoado? Ou não serei perdoado ainda, por não estar triste o suficiente? Outra questão é a natureza dessa tristeza. A pessoa pode estar triste não por causa do pecado cometido, mas pelas consequências dele. Não foi o amor à Lei de Deus que provocou a tristeza, mas interesses pessoais. 
Vamos então à segunda parte, que é a confissão. Bem, a confissão privada é um costume excelente. Eu adoraria poder confessar meus pecados a um ministro da Palavra periodicamente, porque muitas vezes me sinto sobrecarregado de pecados e percebo em mim a necessidade de falar, desabafar, chorar e ser aconselhado. Acho linda a relação entre pastor e ovelha dentro da Igreja de Roma, no contexto da penitência.
De fato, os pecados devem ser confessados, para serem absolvidos. Jesus quis que cada um de nós ouvisse: "Perdoados lhe são os seus muitos pecados". Para isso, instituiu o ministério das chaves. É uma pena as igrejas protestantes (aqui não me refiro à igreja evangélica luterana) terem abandonado as chaves. Igualmente lamento o fim da confissão privada nas igrejas luteranas. Mas o problema que quero abordar aqui é a exigência da Igreja de Roma que a pessoa enumere seus pecados mortais, que os confesse um a um, ainda que sejam muito secretos. 
É impossível enumerar os pecados que cometemos, ainda mais quando a confissão é mensal ou anual. Isso enreda consciências, porque, a menos que se reduza o que é pecado enormemente, ninguém conseguirá enumerar seus pecados ao sacerdote. Nem o sacerdote terá tempo e paciência para ouvir. Quem aprende com S. Paulo o que é pecado, não conseguirá confessar todos os seus pecados um a um, ainda que fique dia e noite, semanas, meses e anos, a vida inteira no confessionário. Então a ordem de confessar pecado por pecado obriga a pessoa a reduzir o conceito de pecado, o que é péssimo e lesivo à verdadeira fé.
Com relação à terceira parte da penitência, que é a satisfação, ela foi instituída pelos Pais com a melhor das intenções. Mas aqui cabe avaliar o que se ganha e o que se perde com a prática da satisfação. Certamente quem repara seu erro e cumpre determinada obra é obrigado a refletir sobre seu pecado, o que é deveras salutar. Por outro lado, a satisfação pode se transformar em uma escolinha de boas obras e méritos. É muito fácil a uma alma fraca achar que está fazendo algo para merecer o perdão de Deus. Também o Catecismo não lhe facilita a vida, porque ele se refere à satisfação como maneira de "satisfazer" ou "expiar" os pecados. Então é necessário colocar em um prato da balança os perigos a que se expõe a ovelha quando lhe é ordenado satisfazer pelo seu erro e, no outro prato da balança, colocar os benefícios da satisfação. Isso precisa ser colocado na balança sim, principalmente porque a satisfação é tradição humana e, portanto, dispensável. 
Para finalizar este primeiro texto sobre a questão das indulgências, quero apresentar também os problemas envolvendo a ideia de consequências temporais do pecado nesta vida e no purgatório. Todo mundo que comete algum erro terá que padecer as consequências dele, ainda que seja perdoado. Todos sabemos muito bem disso. É então que pergunto por que se criou o purgatório? Eu digo "criar" com convicção, porque nada consta nos evangelhos e nos escritos apostólicos sobre sua existência. Também nunca houve consenso entre os cristãos quanto ao purgatório. Portanto, não é doutrina apostólica e católica, mas humana. Estou certo que o purgatório foi criado pela razão humana, como consequência lógica de uma teologia fundamentada em obras e méritos. 
Quando me ponho a meditar nas separações, angústia, perdas irreparáveis, julgamentos, prisões, carestia, calamidades, enfermidades e morte corporal, que são consequências temporais de nosso pecado, indago se há de fato a necessidade de um outro mundo para continuar padecendo a consequência temporal de nossos erros. Acaso não são suficientes as terríveis penas temporais que amargamos aqui? Igualmente, quando penso na cruz da renúncia, que todo cristão é obrigado a carregar, sofrendo todo o tipo de perseguição e vexame, por causa de sua fé, questiono se é necessário passar pelo purgatório para aprender o despojamento de si mesmo e o verdadeiro amor. Minha convicção é que não. A razão humana sugere muita coisa errada, porque se baseia no que vê. Também não tenho o testemunho da Escritura, nem a opinião consensual dos cristãos, porque a Igreja Ortodoxa Grega, que é de sucessão apostólica, nunca acreditou na existência do purgatório. Por outro lado, as Escrituras falam inúmeras vezes do aperfeiçoamento humano através de muitos sofrimentos neste mundo, através de muitas cruzes, que nos obrigam a amar a Deus mais e mais e a amar-nos cada vez menos. De fato, o único purgatório autenticado pela Escritura é a Cruz. É a Cruz que nos aperfeiçoa neste mundo, preparando-nos para o Céu. O quanto cada cristão deverá padecer neste mundo, cabe a Deus decidir. Todavia é certo que o cristão não padecerá além de suas forças (1 Coríntios 10.13).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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