sábado, 5 de março de 2016

O MODO LUTERANO DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 2



Lutero tinha diante de si a Teologia da Cruz ao interpretar todos os textos escriturísticos. Ele não aceitava o Deus de Aristóteles, o Deus produzido e investigado pela razão natural. Ele queria sempre o Deus revelado, que para ele se chama Jesus Cristo. Lutero confessava que havia um Deus revelado e um Deus não revelado (ou abscôndito). Deus se revelou aos homens através do homem Jesus Cristo. Fora de Jesus Cristo, nada podemos conhecer de Deus e tudo é pura especulação. Como teólogo, ele ficou somente com o Deus revelado e deixou o Deus abscôndito para os filósofos. Ousadamente afirmou, no Colóquio de Marburgo: "Não conheço outro Deus além daquele que se fez carne, nem quero ter outro"
Deus se revela ao homem através da pessoa de Jesus Cristo. Ali está seu amor, misericórdia, humildade, predileção pelos pobres, seu interesse pela salvação de todos, seu sincero pesar diante da tragédia humana e sua verdadeira vontade. Tudo o que se pode conhecer da Divindade ou da Santíssima Trindade está em Jesus Cristo. O clímax dessa revelação é a cruz. Portanto, Deus se revela ao homem fraco não segundo sua força, mas segundo sua fraqueza, que é Jesus Cristo. Deus se torna fraco para comunicar-se ao homem fraco. Isso Lutero aprendeu de S. Paulo: "Visto, como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação" (1 Coríntios 1:21). "Nós dizemos, como já dissemos antes, que não se deve debater acerca daquela secreta vontade da majestade; e a temeridade humana, que com contínua perversidade sempre investe e atenta contra ela, pondo de lado as coisas necessárias, deve ser dissuadida disso e retirada, a fim de que não se ocupe em escrutar aqueles segredos da majestade, a qual não se pode atingir, visto que habita em uma luz inacessível, conforme o testemunho de Paulo. Que se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado ou (como diz Paulo) com Jesus crucificado, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento" (Da Vontade Cativa).
Por pensar assim, Lutero encontrou Jesus em todo o Antigo Testamento. É sempre Jesus quem revela ao homem a vontade de Deus. Os santos do Antigo Testamento experimentaram Deus através de Jesus, conforme ensina S. Paulo: "Ora, irmãos, não quero que ignoreis que nossos pais estiveram todos sob a nuvem, e todos passaram pelo mar, tendo sido batizados, assim na nuvem, como no mar, com respeito a Moisés. Todos eles comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo" (1 Coríntios 10:1-4). Sobre a interpretação do Antigo Testamento, Lutero declarou o seguinte: "Se quiseres interpretar bem, contempla a Cristo, pois este é o homem ao qual se aplica EXCLUSIVAMENTE TUDO" (Prefácio ao Antigo Testamento).
Fora de Jesus Cristo, nada podemos saber sobre Deus, exceto aquilo que a filosofia já nos havia apresentado. Essa ruptura com o Deus abscôndito é um marco na teologia cristã, porque até então os teólogos se projetavam no cenário acadêmico através de especulações inférteis acerca de Deus, apoiando-se principalmente em Aristóteles.
Lutero tinha um respeito muito grande pelo mistério. Não lidava friamente com as Escrituras como o faziam os teólogos de seu tempo, mas como quem instruía mentes e que iria prestar contas de seu ensino perante Deus. Em sua obra Da Vontade Cativa, apresentou com clareza essa sua preocupação: "Essa vontade (vontade oculta e temível de Deus) não deve ser investigada, mas adorada com reverência como o segredo da majestade divina que mais se deve reverenciar, reservado unicamente a ela e proibido a nós, muito mais venerando do que uma multidão infinita de grutas de Corício".
Outro aspecto da teologia luterana é seu caráter experiencial. Lutero experimentou em sua carne o que leu nas Escrituras. A seriedade com que procurou viver o que era ensinado pela Igreja em seu tempo provocou nele tamanha angústia e inferno que o levou a buscar nas Escrituras a solução, para que não desesperasse de vez. Seus suplícios sempre o ajudaram a interpretar as Escrituras. "Pelo viver, mais ainda, pelo morrer e ser condenado faz-se um teólogo, não pelo compreender, ler ou especular" (Trabalhos nos Salmos).
Em oposição às interpretações alegóricas de seu tempo, Lutero optou pela literalidade. Os textos devem ser compreendidos de maneira histórica e literal, a não ser que se trate de uma metáfora evidente e inquestionável. Todas as heresias surgiram a partir de interpretações alegóricas de textos escriturísticos, por isso Lutero as temia muito. É necessário ater-se ao sentido simples das palavras, porque se permitirmos à razão alegorizar os textos escriturísticos não haverá uma interpretação confiável sequer, visto que a razão irá transformar em alegoria tudo aquilo que considera absurdo. Exemplo disso encontramos na disputa de Lutero com outros teólogos acerca das palavras: "Isto é o meu corpo". Lutero não via nessas palavras uma metáfora, primeiro por não haver elementos comparativos, segundo porque era plenamente possível a Cristo estar no pão. Ele compreendia o Evangelho como sendo o próprio Cristo que nos é dado para que dele façamos uso salvífico. Para ele, Cristo é um mistério, não um Homem-Deus que só pode estar em apenas um lugar, de maneira local, ou seja, ocupando espaço. Foi assim que ele rejeitou a interpretação alegórica dessas palavras e ateve-se à interpretação literal: O verdadeiro corpo de Cristo está verdadeiramente presente no pão. O mesmo raciocínio ele aplicou ao Batismo, como causa de morte literal de nossa natureza pecaminosa. "Assim, somos antes da opinião de que não se deve admitir nenhuma inferência e nenhuma figura em qualquer lugar da Escritura, a não ser que a circunstância evidente das palavras e a absurdidade de uma coisa evidente, que peca contra algum artigo da fé, force a isso. Deve-se, isto sim, ficar preso por toda a parte à simples, pura e natural significação das palavras que a gramática e o uso do falar criado por Deus nos seres humanos possuem" (Da Vontade Cativa). 
Lutero reconheceu o risco de erro ao interpretar as Escrituras de maneira literal, mas considerou ser muito menos arriscado que a interpretação alegórica, que se apoia em nossa razão pervertida. Ele preferia ser "enganado" por Deus que por sua razão. Novamente percebe-se o temor com que ensinava as Escrituras como quem deveria prestar contas ao Senhor delas. "Se é para aceitar um texto e interpretação duvidosos e obscuros, prefiro aquele que foi pronunciado pela boca de Deus, ao invés daquele que foi formulado por boca humana. Se é para ser enganado, prefiro ser enganado por Deus (se isso fosse possível) do que por homens. Se Deus me enganar, ele assumirá a responsabilidade e haverá de reparar isso. Homens, porém, não podem oferecer compensação depois de me terem enganado e conduzido ao inferno" (Da Ceia de Cristo, Confissão).
Imagine a repercussão que teve a teologia de Lutero em seu contexto histórico: a renascença exaltando a razão humana e o entusiasmo, uma teologia muito mais filosófica que bíblica, enquanto o reformador ensinava coisas absurdas e toscas à razão humana, baseando-se no entendimento literal das Escrituras. Ele odiava a intromissão da filosofia de Aristóteles na teologia cristã. Acerca desse filósofo ele declarou: "Dói-me o coração [de ver] que esse maldito, arrogante e astucioso pagão seduziu tantos dos melhores cristãos com suas falsas palavras e os fez de bobos (...). Não é esse homem miserável que ensina em seu livro, Tratado da Alma, que a alma seria mortal com o corpo? Não obstante, muitos procuram salvá-lo com palavras vãs, como se não tivéssemos a Sagrada Escritura, na qual recebemos ensinamento abundante acerca de todas as coisas, das quais Aristóteles jamais sentiu o menor cheiro. Ainda assim o pagão morto saiu vitorioso, barrando e quase suprimindo os livros do Deus vivo, a ponto de eu, ao considerar essa lástima, me ver obrigado a acreditar que teria sido o espírito maligno que inventou o estudo" (À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão).
A busca medieval por conciliar fé e razão, recorrendo à filosofia, sobretudo a Aristóteles, tornou o entendimento das Escrituras altamente complexo. As Escrituras eram obrigadas a se sujeitar à razão humana, principalmente a Aristóteles. Então os teólogos medievais recusavam o entendimento simples de suas palavras toda vez que soava absurdo à razão humana. Com isso as Escrituras se tornaram de difícil compreensão, porque cada texto era explicado à luz da filosofia grega, de maneira obviamente forçada e viciosa.
Ao libertar as Escrituras de Aristóteles e da filosofia o quanto pôde, ao interpretar as Escrituras de maneira literal, ao insistir na distinção entre Lei e Evangelho, ao compreender o Evangelho como sendo Jesus Cristo, única revelação de Deus em todas as Escrituras, e tendo por chave hermenêutica a justificação SOMENTE pela fé, Lutero encontrou nas Escrituras muita clareza. Com algumas poucas exceções, tudo nas Escrituras era tão claro quanto a luz. Os teólogos medievais é que as tornaram obscuras, quando se obrigaram a entender o que deveria ser somente crido. Assim declarou a Erasmo: "Ora, com tais fantasmagorias Satanás desviou da leitura das Sagradas Letras e tornou desprezível a Santa Escritura, para pôr no governo da Igreja suas pestes extraídas da filosofia. Admito, por certo, que nas Escrituras há muitas passagens obscuras e abstrusas, não por causa da majestade dos assuntos, mas por causa da ignorância acerca de vocabulário e gramática. No entanto, elas absolutamente não impedem o conhecimento de todas as coisas nas Escrituras. Pois que coisa mais sublime pode ainda permanecer oculta nas Escrituras depois que os selos foram rompidos e a lápide foi removida da entrada do sepulcro e depois que foi revelado aquele sumo mistério: Cristo, o Filho de Deus se fez ser humano, Deus é trino e uno, Cristo sofreu por nós e reinará eternamente? Acaso não se conhecem e cantam essas coisas até nas escolas primárias? Se tiras Cristo das Escrituras, que  encontrarás nelas ainda? Portanto, todas as coisa contidas na Escritura estão reveladas, embora algumas passagens sejam obscuras porque ainda não conhecemos as palavras. Estulto e ímpio, porém, é saber que todas as coisas da Escritura estão postas na mais clara luz e, por causa de algumas poucas palavras obscuras num lugar, chamar as coisas de obscuras" (Da Vontade Cativa).
Para concluir, aprendemos com Lutero que o menos é mais. Quando estava para me tornar luterano, eu sofri muito por não encontrar uma conexão entre as doutrinas. As doutrinas luteranas me pareciam barcos à deriva e, racionalmente, tentava juntar os barcos através de cordas visíveis, mas sem sucesso. A única coisa que unia os barcos era o misterioso mar. Então ouvi de um amigo: "A teologia luterana não tem lógica". Foi então que cheguei ao ponto de partida de Lutero: as doutrinas cristãs, claramente expostas nas Escrituras, não devem ser entendidas e harmonizadas entre si, mas somente cridas, ainda que isso nos doa e seja verdadeira mortificação.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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