sábado, 19 de março de 2016

O QUE É SER IGREJA VISÍVEL?


"Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores" (S. Mateus 6:12).

A Quaresma tem, a meu ver, uma forte conotação de Lei. Eu me sinto mais pecador durante a Quaresma que em qualquer outro tempo da Igreja. Essa ênfase dada à Lei é muito sábia, porque a melhor preparação para a Páscoa, que é Evangelho puro,  é deixar-se morrer pela ação da Lei. Tenho que ter plena consciência de minha condição de pecador para que possa apreender com muito maior prazer o Cristo ressurreto que me será oferecido. Também o intuito do Advento é chamar-nos à Lei, para que mais nos deliciemos com o Evangelho da Encarnação. 
Entretanto, quando sentimos o peso do pecado precisamos ter o Evangelho por perto, para que nos consolemos com ele. É muito perigoso pregar somente a Lei, ainda que seja por quarenta dias apenas. Por esse motivo, os textos escolhidos para a Quaresma sempre nos apontam o pecado e nos conclamam a que olhemos para Cristo. Em Cristo está a plena remissão dos pecados.
A Quaresma é, portanto, tempo de perdão. Somos perdoados por Deus!
Ou será que não? Como podemos ter tanta certeza de nossa remissão dos pecados? Cristo de fato morreu por nós, mas impôs uma condição para que nos apropriemos dessa morte vicária: a fé. Como posso ter certeza que de fato creio e, por meio dessa fé, participo do mistério de Cristo? Ainda mais quando me sinto tão pecador, como agora, como posso ter plena convicção de que estou em Cristo?
Esse questionamento é um problema para os cristãos de todos os tempos. Alguns buscam em seu coração a consciência desse perdão, mas isso é entusiasmo, algo muito incerto. Alguns se voltam para suas obras, para a santidade própria, mas essa confiança nas obras é algo extremamente frágil, que não pode oferecer paz. É necessário que creiamos, mas essa fé não é aceitação intelectual de um Evangelho-texto, é algo místico, é a boca mística de Deus que se abre em nós para comer o Evangelho, que é Jesus Cristo, mistério de Deus. Sobre a natureza da fé, São Paulo afirma: "Gostaria, pois, que soubésseis quão grande luta venho mantendo por vós, pelos laodicenses e por quantos não me viram face a face; para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos. Assim digo para que ninguém vos engane com raciocínios falazes" (1 Colossenses 2:1-4).
Nossa razão recebe e sujeita-se obedientemente aos paradoxos envolvidos no mistério de Cristo, mas nossa fé come a carne de Cristo e bebe o sangue de Cristo, dá-nos pleno conhecimento de algo que não conhecemos. Embora a fé seja obra de Deus, ela ocorre em nós, através de nós e para nós, dando-nos, sem que o saibamos, tudo o que Deus é. Como essa obra de Deus ocorre através de nós, podemos só dessa maneira considerá-la obra nossa também.
Fé e Evangelho se pertencem. A verdadeira fé é, antes de mais nada, fé no Evangelho. Quando, porém, Evangelho é entendido não como textos, mas como "mistério de Deus", Cristo inteiro, a fé que comunga esse mistério se torna tão imperscrutável quanto ele. É aí que reside o maior dilema: precisamos de fé para receber a remissão de pecados, que está em Cristo, mas também necessitamos da consciência dessa fé, para que possamos testemunhá-la e descansar nela.
É então que entram os sinais do Evangelho: Pregação, anúncio do perdão, Santo Batismo e Eucaristia. Aqui está a Igreja visível. Eu ouço o Evangelho quando ele é pregado, eu o como através do pão, eu o bebo através do vinho e sou batizado nele através da água. Coisas sensíveis são utilizadas por Deus para veicular o Evangelho. Quando o Evangelho oculto é dado através de coisas sensíveis, a fé oculta imediatamente se manifesta para recebê-lo. Quando o Evangelho é tornado audível ou visível, surge a fé visível para recebê-lo visivelmente. É então que tomamos consciência de nossa fé e, por meio dela, descobrimo-nos como Igreja visível e, como Igreja visível, concluímos que somos Igreja e que estamos em Cristo, visto que não há duas Igrejas. Portanto, é nos sinais que encontramos a certeza de nossa fé, da remissão de pecados e de nossa pertença a Cristo.
Assim como Jesus Cristo andando por este mundo, curando enfermos e perdoando pecados, atraía para si a fé, cuja manifestação se tornou notória em várias situações narradas pelos evangelistas, hoje ela se torna visível quando esse mesmo Jesus Cristo se manifesta publicamente na Pregação, na absolvição, no Santo Batismo e na Eucaristia. Para ele nossa fé nos conduz, revelando-se a nós e ao mundo. É claro que muitas pessoas recebem sem fé alguma esses sinais, mas não cabe a ninguém julgar onde a fé é verídica ou não. Nesse momento, cada um deve cuidar de si, saber de sua fé, alegrar-se nela, descansar nela e nela morrer em paz.
Essa manifestação do Evangelho através de sinais é a base da doutrina dos sacramentos. Quantos sacramentos existem é motivo de controvérsia. A Igreja de Roma, por exemplo, ensina que são sete sacramentos. A Apologia da Confissão de Augsburbo diz que são três. Os reformados e luteranos racionalistas afirmam que são dois. Mas Lutero não se prendeu a isso. Para ele, a apropriação do Evangelho através de sinais visíveis ocorre cotidianamente na vida do cristão. Foi assim que considerou a oração e o perdão ao próximo como sacramentos, como batismos cotidianos, que nos permitem ter posse consciente do Evangelho, destarte descobrindo a fé. Ele coloca qualquer obra cristã como sacramento, já que toda obra do crente é visível, é realizada por fé e a revela. Para Lutero, o próximo está ornado com o Evangelho, devendo ser ele considerado um sinal, através do qual nossa fé se manifesta ao comungá-lo. 
A esposa está ornada com o Evangelho, que é comungado toda vez que o marido cristão se volta para ela e a comunga. Os pais estão ornados com o Evangelho, que igualmente deve ser comungado pelos filhos. Também quem nos ofende e quem passa por necessidade devem ser vistos como sinais do Evangelho, que devemos comungar reverentemente. 
É então que a verdadeira fé se torna clara a nós e ao mundo, quando ela nos arroja famintos ao Evangelho que Deus colocou dentro e fora da Igreja, para o comungarmos.
"Portanto, também o perdão exterior evidenciado por um ato é um sinal seguro de que tenho o perdão do pecado junto a Deus; e, inversamente, onde tal não se evidencia para com o próximo, terei um sinal seguro de que também não tenho perdão do pecado junto a Deus, mas que ainda estou preso na falta de fé (...). Mas quando vejo e sinto que de bom grado perdoo ao próximo, posso concluir e dizer: não faço essa obra por natureza, mas pela graça de Deus, sinto-me diferente de antes. Seja isso dito em breves palavras contra a conversa fiada dos sofistas. Mas também é verdade que tal obra, como ele aqui a chama, não é mera obra como outras que fazemos por nós próprios. Pois aí não está esquecida a fé; ele toma essa obra e a dota de uma promessa, de modo que se poderia chamá-la com boa razão de sacramento para fortalecer a fé (...). Da mesma forma, também nossa oração, como obra nossa, nada valeria nem efetuaria qualquer coisa; o que, porém, a faz [valer e efetuar algo] é o fato de ela ter seu mandamento e promessa, de modo que também pode muito bem ser considerada um sacramento, mais obra divina do que obra nossa (...). Ora, Deus nos apresentou diversas maneiras e caminhos para nos apropriarmos da graça e do perdão dos pecados. Em primeiro lugar, o Batismo e o Sacramento, depois, (como acabamos de expor) a oração, depois, a absolvição e, neste caso, o perdão, para que estejamos abundantemente providos e sempre possamos encontrar graça e misericórdia. Pois onde as buscarias mais perto do que em teu próximo, com quem vives cotidianamente, tendo motivo diário suficiente para praticar tal perdão? (...) Portanto, não é só dentro da Igreja ou junto ao sacerdote, mas em meio à nossa vida que temos Sacramento ou Batismo diário, um irmão para com o outro, e cada qual em seu lar, em sua casa" (Dr. Martinho Lutero, Prédicas semanais sobre Mateus 5-7).
Mas como é que se comunga o Evangelho que Deus inseriu em nosso próximo? Comungar o Evangelho significa recebê-lo como nosso. Entretanto, essa comunhão não é algo dispensável na vida do crente, mas uma necessidade. Logo, comungar o Evangelho que está em nosso próximo é ter o próximo como algo necessário, por meio do qual recebemos o Evangelho e descobrimos a fé. Ele é um sinal exterior que exterioriza nossa fé. É ele que nos torna Igreja visível. Comungamos nosso próximo quando o recebemos de bom grado em nós, permitindo que sua realidade se misture à nossa e assumindo um compromisso com ele. É nesse momento que a fé se revela de maneira mais brilhante, porque sai de sua demonstração a nós mesmos para tornar-se demonstração pública ou testemunho.
Quando ouço a Pregação e recebo a Eucaristia por necessidade e com gratidão, descubro minha fé perante mim mesmo, o que é assaz consolador. Mas quando vou ao encontro de meu próximo para recebê-lo em mim, disposto a perdoá-lo, a aceitá-lo e a amá-lo, então minha fé se torna verdadeiramente pública. Se na primeira situação eu me torno Igreja visível a mim mesmo, na segunda eu me torno Igreja visível ao mundo. Então a Igreja brilha diante dos homens como única luz. Como disse Jesus: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros" (S. João 13:35). Em ambas as situações, porém, irei ter certeza da remissão dos pecados por causa da fé que descubro em mim.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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