sábado, 27 de fevereiro de 2016

O MODO LUTERANO DE INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 1



Uma querida amiga, que é espírita, perguntou-me como é que nós, luteranos, interpretamos o primeiro capítulo de Gênesis, acerca da criação. Isso deu início a um diálogo muito fecundo, em que ela própria concluiu que nós, luteranos, interpretamos a ressurreição de Cristo (e a nossa) como sendo literal. Começamos e terminamos o diálogo com a literalidade, assim como começamos e terminamos o diálogo com as Escrituras.
Para entender quão inovador foi o modo de Lutero interpretar as Escrituras, é necessário conhecer como elas eram interpretadas na época em que viveu. Durante a Idade Média, a teologia era ao mesmo tempo muito mística e filosófica. Mística porque muitos teólogos eram entusiastas, quer dizer: falavam de seu relacionamento com Deus à parte das Escrituras e sem um Mediador, com base em seus sentimentos, que eram comunicados ao público de maneira um tanto poética. Filosófica porque buscou-se, durante toda a Idade Média, conciliar a razão com a fé, tentando explicar minuciosamente o que Deus estabeleceu para ser crido, recorrendo-se à filosofia, sobretudo a Aristóteles. As Escrituras ocupavam um papel coadjuvante na teologia. Recorria-se mais à autoridade de quem ensinava que ao próprio testemunho das Escrituras. Portanto, governo, erudição e piedade eram as credenciais do teólogo, que tornavam sua teologia digna de aceitação. Recorria-se muito mais aos pais e doutores da Igreja e aos concílios que às próprias Escrituras. Obviamente, uma teologia filosófica é uma teologia que enfatiza a virtude, o arbítrio humano e as obras, em detrimento da fé.
Havia também muitas disputas entre os teólogos sobre coisas triviais, refletindo não só vaidades pessoais, mas principalmente a disputa entre as universidades por fama.
Também deram às Escrituras quatro sentidos: o literal, o tropológico, o alegórico e o anagógico, de maneira que nenhum texto se tornou seguro quanto à sua interpretação: o que era entendido de maneira literal por um, poderia ser entendido de maneira alegórica por outro e vice-versa.
Parece que nada mudou de lá para cá. Hoje a teologia continua mergulhada nos mesmos problemas. A única diferença é que hoje, em nosso contexto de profunda secularização, a teologia não mais fascina quase ninguém.
Contra tudo isso Lutero começou a se posicionar. Para ele as Escrituras eram a única autoridade doutrinária. Lutero não estava preocupado com a piedade exterior, com os milagres ou com o prestígio de quem ensinou. Também não se importava com os concílios. Ele estava preocupado com as Escrituras. Disse S. Paulo o seguinte: "Ainda que NÓS ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue Evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema" (Gálatas 1:8). Portanto, nem mesmo a autoridade apostólica estava acima da autoridade das Escrituras.  Percebemos que o próprio Senhor Jesus, sendo Deus, a Verdade em pessoa, jamais introduziu qualquer doutrina sem recorrer à autoridade delas. Lutero rejeitava qualquer tipo de doutrina proveniente da mente humana, sem fundamento escriturístico sólido, rechaçando-a como entusiástica e não confiável. Quando o fazia, pouco se importava com a autoridade de quem estabeleceu a doutrina, fosse S. Jerônimo ou Santo Agostinho. Assim declarou a Erasmo: "Que haveria de admirável se os que foram santos, espirituais e milagrosos às vezes foram surpreendidos pela carne e falaram e agiram segundo a carne, já que isso aconteceu, e não apenas uma vez, aos próprios apóstolos, que estavam sob o próprio Cristo?" (Da Vontade Cativa). Lutero não encontrou outro alicerce que fosse tão seguro quanto as Escrituras para fundamentação doutrinária. Se até os apóstolos erraram, que esperar dos pais?
Lutero também dividiu as Escrituras em duas partes: Lei e Evangelho. A Lei consiste em ordenanças e ameaças, com o intuito de trazer o homem ao arrependimento. O Evangelho consiste em promessa de salvação gratuita ao que crê. Lei e Evangelho estão praticamente em todas as Escrituras, em diferentes proporções. Deus sempre ordena, ameaça e aflige, para depois estender sua mão ao aflito. Fere com a Lei, com o propósito de curar com o Evangelho. Há algo dessa distinção nos pais, sobretudo em Santo Agostinho, mas ninguém havia olhado para isso com o mesmo interesse de Lutero. "Prezados amigos, vocês já ouviram, muitas vezes, que nunca se viu uma pregação pública vinda do céu, exceto duas (...). A primeira pregação e doutrina é a Lei de Deus, a segunda, o Evangelho. Essas duas pregações não são idênticas, por isso é preciso ter uma noção adequada a respeito, de modo que se saiba distingui-las, ou seja, [que se saiba discernir] entre Lei e Evangelho. A Lei ordena e exige de nós o que devemos fazer; ela está voltada, exclusivamente, para nossa atuação e consiste em exigir. Pois pela Lei Deus fala: Faze isto, deixa aquilo, isto quero de ti! O Evangelho, porém, não prega o que devemos fazer ou deixar de fazer, ele nada exige de nós, e, sim, inverte-o, faz o contrário e, em vez de dizer 'faze isto, faze aquilo', manda-nos apenas estender as mãos para tomar, dizendo: 'Vê, meu caro amigo, isto Deus fez por ti: por ti fez seu Filho entrar na carne, mandou estrangulá-lo por amor a ti e o salvou do pecado, da morte, do diabo e do inferno; acredita nisso, aceita-o e serás salvo'" (Declamationes). 
A Lei suscita o pecado, a ira e o temor. O Evangelho suscita a fé. Então Lutero centralizou todo o entendimento escriturístico na antítese Lei e Evangelho, pecado e graça. Viu o Evangelho em praticamente todas as Escrituras e atribuiu a esse Evangelho o poder de fazer cristãos, ao suscitar fé.
A primeira coisa que se deve concluir disso é que, para Lutero, Antigo Testamento e Novo Testamento são um continuum, reconhecendo Cristo, o Evangelho, a fé no Evangelho e a Santa Igreja no Antigo e Novo Testamentos. Diversas vezes referiu-se aos crentes do Antigo Testamento como sendo cristãos. Acerca do Antigo Testamento, afirmou: "Aqui encontrarás as fraldas e as manjedouras em que Cristo jaz deitado, lugar que também o anjo indica aos pastores. As fraldas são simples e ínfimas, mas é precioso o tesouro que nelas se encontra: Cristo" (Prefácio ao Antigo Testamento). A diferença é que os santos do Antigo Testamento criam na salvação que havia de vir, enquanto que os santos do Novo Testamento creem na salvação que veio. Portanto, um mesmo Evangelho salvou no Antigo Testamento e salva hoje, no Novo Testamento.
Para Lutero, o Evangelho não era um texto ou um discurso. O Evangelho é o próprio Cristo. Receber o Evangelho, seja na Pregação, na absolvição ou nos sacramentos, é receber o próprio Cristo e fazer uso dele. Cristo não era visto por ele como um personagem histórico, um Deus no Céu ou uma ideia, mas como um ser místico, do qual fazemos uso através da apropriação do Evangelho. Ousadamente declarou, em seu comentário da primeira epístola de S. Paulo a Timóteo: "Chamo de Cristo a própria realidade de Cristo, Cristo no espírito. Ter Cristo em pessoa é o mesmo que nada ter. Antes, É PRECISO QUE FAÇAMOS USO DELE. Os entusiastas dizem: 'Cristo está na cruz. Logo, ele não está no Sacramento, no Batismo, na palavra visível'. Isso é uma ignorância acerca de Cristo; é ignorar qual seja o USO DE CRISTO ter, meramente, o FATO DE CRISTO em termos metafísicos, como quando digo a seu respeito que ele tem carne e cabelos. Antes, a FUNÇÃO pela qual ele morreu é a remissão dos pecados. Mas o USO em vista DO QUAL morreu - PARA a remissão dos pecados, fim para o qual batiza - ESTÁ no Sacramento: PARA a remissão dos pecados".
Por pensar assim, Lutero considerava o Evangelho divino, Deus em essência, com poder para gerar fé no coração humano. Ele afirmou sobre o Batismo, no Catecismo Maior: "Por isso, não é apenas água natural, porém água divina, celeste, santa, bendita e outros termos com que se possa louvá-la. Tudo em virtude da Palavra, que é Palavra divina, santa, que ninguém pode exaltar suficientemente; porque tem e pode tudo quanto é de Deus"
Sendo o Evangelho o próprio Deus e não mera doutrina, atribuiu ao Evangelho coisas muito grandiosas, que somente a Deus se pode atribuir: "A Igreja é criatura do Evangelho, incomparavelmente inferior a ele, como diz Tiago: 'Ele nos gerou de livre vontade pelo verbo de sua verdade' (Tg 1:8). E Paulo afirma: 'Eu vos gerei pelo Evangelho' (1 Co 4:15). Por isso, a mesma Palavra é chamada de útero e ventre de Deus: 'Os que sois carregados em meu ventre e estais no meu útero' (Is 46:3), isso porque somos nascidos de Deus e somos carregados por sua Palavra poderosa" (Comentários de Lutero sobre suas teses debatidas em Leipzig). Tanto quanto Cristo está acima da Igreja e de suas autoridades espirituais, assim o Evangelho está acima de tudo! Para Lutero, o Evangelho é o distintivo da Verdadeira Igreja: "Por isso, onde quer que se pregue a Palavra de Deus e se creia nela, ali está a verdadeira fé, essa rocha irremovível; e onde está a fé, ali está a Igreja" (Comentário de Lutero sobre a décima terceira tese a respeito do poder do papa). Também: "Em que sinal, portanto, posso reconhecer a Igreja? Pois é necessário que nos seja dado um sinal visível pelo qual sejamos congregados num só lugar para ouvir a Palavra de Deus. Resposta: O sinal é necessário e nós também o temos, a saber, o Batismo, o Pão e sobretudo o Evangelho. Estes são os três símbolos dos cristãos, suas senhas e caracteres. Pois onde encontras o Batismo, o Pão e o Evangelho, seja onde for e entre quaisquer pessoas que sejam, não duvides que ali está a Igreja" (Resposta a Ambrósio Catarino).
Recusou qualquer participação imediata de Cristo, isto é: sem meios. Lutero enfatizou que a recepção de Cristo é a recepção do Evangelho, que está na Pregação, na absolvição e nos sacramentos. Ninguém recebe Cristo de outra maneira, conforme nos ensina S. Paulo: "A fé vem pela pregação, e a pregação, pela Palavra de Cristo" (Rm 10:17).
Portanto, é a oferta, recepção e fruição do Evangelho, ou seja, do próprio Cristo, que geram e preservam a fé e, com ela, a Igreja. De fato, a Igreja é criatura do Evangelho.
Lutero não entendia a fé como assentimento intelectual. Concordar com o que é ensinado é uma fé fictícia, que jamais sobreviverá aos dias maus. Para ele, a verdadeira fé é algo essencialmente místico: "Um mistério sagrado é algo abscôndito, assim como a fé é, essencialmente, mística. Antes, é da natureza da própria fé trabalhar nas coisas abscônditas e exercitar-se nas coisas invisíveis" (Comentário da primeira epístola de S. Paulo a Timóteo). A fé nos possibilita apropriar-nos de Cristo e fazer uso dele. De acordo com a natureza de seu objeto é que devemos entender a fé.
Exatamente por ser essencialmente mística, Lutero não conseguiu manter uma mesma definição do que é fé em seus escritos. Predomina a ideia de firme e inabalável confiança em Deus, mas no Deus que se oculta de nossos olhos através da fraqueza do Evangelho. Essa confiança, porém, nem sempre é consciente. É a partir do pecado e da experiência com a misericórdia de Deus que tomamos consciência de nossa fé.
Somente essa fé torna o homem justo perante Deus. O princípio da justificação EXCLUSIVAMENTE pela fé tornou-se, para Lutero, o acesso seguro ao entendimento de qualquer texto. O homem não se torna justo através da virtude e boas obras, como ensinava Aristóteles e, com ele, os teólogos medievais. O homem é declarado justo por Deus no momento em que crê, sem participação de obra alguma. As obras são consequência da fé e da justificação. Assim ensinou S. Paulo: "Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da Lei" (Rm 3:28). De onde Deus retira a justiça com que nos presenteia, assim que cremos? De seu amado filho Jesus. Eis o cerne do cristianismo!
A justificação SOMENTE pela fé tornou-se a doutrina capital. Acerca dela, declarou Lutero: "Desse artigo, a gente não se pode afastar ou fazer alguma concessão, ainda que se desmoronem céu e terra ou qualquer outra coisa" (Artigos de Esmalcalde). A partir dessa doutrina é que Lutero interpretou todas as Escrituras. "Caso alguém queira me perguntar: Não podes outra coisa, a não ser falar a respeito da justiça, da sabedoria e da capacidade humana? Interpretar a Escritura sempre a partir da justiça e da graça de Deus? E, portanto, tocar a lira sempre na mesma corda e cantar somente uma toada? Eu respondo: Cada um cuide de si. Isto eu confesso a meu respeito: Todas as vezes que encontrei na Escritura menos do que Cristo, nunca, até hoje, fiquei satisfeito; mas todas as vezes que encontrei mais do que Cristo, nunca me tornei mais pobre. De modo que também me parece verdadeiro que Deus, o Espírito Santo, não sabe nem quer saber de outra coisa do que de Jesus Cristo" (Salmos de penitência).
Continuaremos nosso assunto na próxima postagem, por ser muito amplo.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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