quarta-feira, 8 de junho de 2016

AS DUAS MENTIRAS - PARTE 2

"Deus é o existirmos e isto não ser tudo" (Fernando Pessoa).



A outra mentira que a razão dogmatizou é a liberdade humana.
Ah, a liberdade humana e o livre-arbítrio! Como nos deleitamos em ser senhores de nossa vida, possuidores de cada decisão e determinantes de nosso futuro! Como isso nos enobrece até Deus!
Entre os que professam alguma religião, a única maneira de explicar a salvação dos bons e a perdição dos maus é o livre-arbítrio, único argumento racional para salvaguardar a bondade de Deus e sua imunidade diante do pecado. 
Entretanto, o ser humano não é livre. A liberdade humana não passa de utopia.
Todo o nosso agir e pensar é condicionado por inúmeros fatores. Cada um de nós tem uma história, traumas, medos, ideologias, contextos e limitações que nos condicionam a agir e pensar de determinada maneira, diante de determinadas circunstâncias. 
O avarento não desejou ser avarento. Tornou-se avarento por causa de muitos fatores condicionantes. O adúltero desejou adulterar, mas sua decisão foi limitada por muitos fatores condicionantes. A prostituta desejou prostituir-se, mas dentro de um contexto amplíssimo. E assim por diante, para cada erro do homem, podemos encontrar muitos fatores que condicionaram sua decisão, de maneira que não se pode dizer dele que seja livre.
Como médico infectologista, lido muito de perto com a realidade do pecado e posso dizer categoricamente: nenhum de meus pacientes foi ou é livre. Machismo, imaturidade, individualismo, paganismo, niilismo, questões familiares complexas, abuso sexual, traumas, pouca ou nenhuma autoestima, pobreza financeira, cultural e moral, etc. Eis alguns dos muitos fatores que nos condicionam a agir e pensar contra nós mesmos, contra o próximo e contra Deus.
Outra prisão do homem é a razão. O homem a ela serve com obediência de escravo. Somente o que é lógico é verdade. Muitas tragédias humanas foram e estão sendo provocadas pela lógica da eugenia, da vingança, da meritocracia e do nacionalismo.
A maldade humana é também outra prisão. O homem é condicionado por essa maldade essencial a agir e pensar de maneira má, até quando busca a virtude, conforme expomos no texto anterior. Mesmo fazendo o bem e cultivando a virtude, o homem é incapaz de fazê-lo por amor ao bem e à virtude, sendo movido pelo desejo egoísta de salvar-se. 
Entretanto, nenhuma prisão é pior que a alienação. Ela não permite ao homem lutar pela liberdade, porque lhe dá a falsa impressão de ser livre.  
Jesus nos mostra que Deus se compadece deste nosso cativeiro. Ele não é um juiz irado, mas um pai compassivo, como percebemos nos evangelhos: "Vendo ele [Jesus] as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor"; "vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve". "Responderam-lhe [os judeus]: Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de alguém; como dizes tu: Sereis livres? Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado"
A compreensão do cativeiro humano é que move o coração misericordioso de Deus. Ele sabe que homem algum é livre e seu objetivo é libertá-lo. Quando as Escrituras falam de salvação, elas sempre se referem à liberdade.
Igualmente, devemos ser condescendentes uns com os outros porque somos todos escravos. O pecado não é uma responsabilidade puramente individual, mas social. Nós é que estabelecemos muitos dos fatores que condicionam o comportamento humano, direcionando-o ao mal. 
Em nossa relação com Deus, não podemos ser livres também. A maldade inata, a razão e a alienação nos impedem de nos relacionarmos com Deus livremente. A maldade não aceita ser má por ser má, assim como o louco não admite ser louco, o arrogante não admite sua arrogância, nem o avarento a sua avareza, e assim por diante. A razão nos aprisiona à lógica de um Deus amoroso para quem é perfeito e juiz severo para quem está em pecado. Ela nos rouba a misericórdia divina, sem a qual Deus deixa de ser Deus. A alienação nos torna acomodados em nosso cativeiro. Portanto, o homem não é livre para optar por Deus.
Lutero era um perseguidor implacável da doutrina do livre-arbítrio. Para ele, o livre-arbítrio é doutrina puramente pagã. Deixo aqui algumas de suas colocações acerca do livre-arbítrio, em sua obra Da Vontade Cativa, bastante polêmicas, por colidirem com um dogma racional: "Se o reino é tal qual Cristo o descreve, o livre-arbítrio nada será a não ser um animal de carga cativo de Satanás, o qual não pode ser libertado se antes o diabo não for expulso pelo dedo de Deus (...). Desconhecendo a justiça, como se esforçará por alcançá-la? Desconhecemos o pecado no qual nascemos, no qual vivemos, nos movemos e no qual existimos, sim, o pecado que vive, se move e reina em nós. Como haveríamos de conhecer a justiça que reina fora de nós, no céu? Essas palavras fazem do livre-arbítrio menos do que nada".
O homem só se torna livre quando, através da fé, identifica-se como filho de Deus. São Paulo ensina: "Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade". Também: "Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai".
Na filiação de Deus o homem encontra a sua liberdade. Quem é filho de Deus e crê em seu amor e misericórdia, está apto para buscar a virtude por amor à virtude, pois sabe que já pertence a Deus, mediante a fé, e que não será necessário persegui-lo ou conquistá-lo. Quem é filho de Deus não precisa viver sob o temor de condenação, porque um Pai compassivo não condena seus filhos. Quem é filho de Deus é livre para fazer o bem desinteressadamente, pois tem ciência do amor incondicional de Deus e não busca negociar esse amor com méritos. Somente quem recebe de graça a recompensa está desonerado de buscá-la egoisticamente. Somente assim é possível olhar para o lado e contemplar no irmão não um meio, mas o fim.
Quanto a Deus, como Pai, ele não aceita que seus filhos permaneçam alienados e escravizados pelo pecado. Ele desvenda seus olhos para que vejam seu cativeiro e lutem contra ele. Perdoa seus pecados e concede-lhes os meios para combatê-los: Palavra e Sacramentos. Portanto, somente na filiação divina o homem se torna livre. 
Obviamente, é uma liberdade consumada escatologicamente e progressiva no tempo presente, pois o filho de Deus, enquanto viver neste mundo, estará sob os mesmos condicionantes do pecado que todo o mundo. No entanto, o fato de conhecer a liberdade verdadeira o estimula a lutar permanentemente contra o cativeiro presente. É então que a vida cristã se torna uma permanente luta contra o cativeiro e um progresso contínuo em direção à liberdade.

Observação: Neste texto e no anterior, entenda a palavra "essencialmente" como "por natureza". Nestes textos não trabalhei os conceitos filosóficos de substância e acidentes.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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