No primeiro post dessa série, vimos as
características que diferenciam a espiritualidade luterana da católica romana e
as condições que permitem o desenvolvimento de uma mística distintivamente
luterana (o tripé leitura bíblica-oração-participação nos sacramentos). Nos
próximos posts, veremos como essa
mística se realizou historicamente, em suas diferentes modalidades.
Num dos trechos de Lutero citados
no post anterior, podemos perceber
que o reformador concebia a união com Deus como uma comunhão amorosa realizada
por meio da fé. Isso permite discernir uma primeira modalidade da mística
luterana, a saber, uma vertente devocional, que se distingue da mística
especulativa de um Mestre Eckhart, por exemplo, direcionada ao conhecimento do
fundamento divino da alma. Certamente, ambas visam à união com Deus, mas
possuem atitudes existenciais diferentes para alcançá-la: no primeiro caso,
Deus é concebido como o Outro ao qual a alma deve se unir a Cristo amorosamente
através da fé; no segundo caso, Deus é concebido como a raiz da personalidade, e,
por causa disso, deve ser buscado não fora, mas dentro de si mesmo.
Outra diferença está nas práticas
espirituais que cada um desses tipos de mística exige. A mística intelectual,
por sua própria natureza, está mais próxima de um tipo “monástico” de
espiritualidade: concentração intensa, meditação, esvaziamento da mente são atitudes
típicas do contemplativo, mas quase impossíveis de serem praticadas pelo leigo em
meio à agitação do dia-a-dia. Em contraste, a espiritualidade devocional pode
se apoiar em práticas mais simples, como a meditação sobre textos bíblicos e a
oração, e, portanto, mais adequadas para aqueles que não desejam se retirar do
mundo. No entanto, como as duas têm o mesmo objetivo, acabam se encontrando no
final. Assim, a mística devocional, tal como a mística especulativa, é também
uma forma de conhecimento, um aspecto que foi reconhecido pelo próprio Lutero:
“E
esse conhecimento vem da fé, de acordo com a Escritura, ‘Se vocês não crerem,
tampouco vão compreender’. Esta é aquela entrada na nuvem, Ex. 20:21, na qual são
engolidas todas as coisas que os sentidos, razão, mente ou conhecimento do
homem podem compreender. Pois a fé une a alma à invisível, inefável, inimaginável,
eterna Palavra de Deus, e ao mesmo tempo, a separa de todas as coisas visíveis.”
[1]
Como se pode perceber, a fé
para Lutero não é simplesmente um ato da vontade individual, mas, acima de tudo,
é uma forma superior de conhecimento, que une a alma a Cristo. Conhecimento e
amor, portanto, não estão separados na fé: para usar um adágio dos monges
cistercienses, com o qual Lutero certamente concordaria, “amor ipse est intellectus” (“o amor por si só já é conhecimento”).
Trata-se de um saber que não é obtido nem pelos sentidos nem pela razão, mas
pela negação de ambos, representada pela “entrada na nuvem”, um símbolo típico
da literatura mística apofática. No entanto, Lutero faz um uso muito particular
dessa metáfora, pois a ênfase do reformador recai não sobre a
incognoscibilidade da essência de Deus, como na maior parte da tradição apofática
ocidental, mas sobre a incognoscibilidade da relação com Ele: Deus é conhecido
na imediaticidade da relação, e qualquer tentativa de compreender sua essência,
mesmo através de negações, surge posteriormente à relação pessoal com Ele,
estabelecida através da fé. Portanto, sendo um relacionamento com uma Pessoa, e
não com uma essência, a fé pressupõe um envolvimento existencial completo, que
mobiliza não apenas a razão e os sentimentos, mas também dimensões mais profundas
da personalidade. Não por acaso, Lutero vê a fé como a atividade própria do
“espírito” (pneuma), a parte mais
elevada e mais interior do ser humano:
“A
natureza do homem consiste de três partes – espírito, alma e corpo.[...] A
primeira parte, o espírito, é a mais alta, mais profunda e mais nobre parte do
homem. Por ele, o homem é capaz de captar coisas incompreensíveis, invisíveis e
eternas. Ele é, em resumo, o lugar de habitação da fé e da Palavra de Deus.” [2]
“A
raça dessa noiva era hostil ao Pai celestial, mas o próprio Cristo
reconciliou-a ao Pai por sua mais amarga paixão. A noiva foi calcada em seu
sangue, lançada sobre a face da terra (Ezequiel 16:22). Mas ele mesmo a lavou
na água do batismo e a purificou no banho mais santo (Efésios 5:26). [...] A
noiva estava com fome, mas ele deu-lhe flor de farinha, mel e azeite para
comer; com Seu próprio corpo e sangue Ele a alimentou para a vida eterna. A
noiva é, em todos os sentidos, infiel e muitas vezes quebra o vínculo conjugal,
fornicando com o mundo e o diabo, mas o Noivo a recebe repetidamente em graça
com seu imenso amor, renovando-a na verdadeira conversão a ele.” [4]
Vinculada ao Noivo através da
fé, a alma compartilha com ele todos os seus bens, incluindo a santidade, e os
recebe sem qualquer mérito próprio. Como se pode perceber do trecho citado, essa
“passividade” da alma está relacionada à compreensão luterana dos sacramentos
como os meios visíveis divinamente instituídos para produzir e fortalecer a fé
no crente. Principalmente no caso da eucaristia, a doutrina da “presença real”,
segundo a qual o Cristo inteiro (corpo e espírito) está presente no sacramento,
pressupõe uma união íntima com o Verbo divino durante a comunhão, o que pode
também ser um suporte para uma experiência espiritual mais profunda. Se a Santa
Ceia concede ao crente a união objetiva com Cristo, a forma de compreender essa
união varia. Johann Gerhard, por exemplo, vê esse sacramento como um verdadeiro
banquete celeste, no qual o mesmo corpo que foi glorificado na comunhão da
Trindade e que é adorado pelos anjos torna-se presente aqui e agora:
"A alma fiel é alimentada na festa divina e celestial. A carne santa de
Deus, que os anjos adoram na unidade das pessoas, que os arcanjos veneram,
diante da qual os governantes tremem e se maravilham, essa mesma carne é o
nosso alimento espiritual. Alegrem-se os céus e regozije-se a terra (Salmo
96:11), e ainda mais a alma fiel a quem um tão grande e importante dom foi
estendido.” [5]
Johann Gerhard
No que diz respeito à
oração, como já foi mencionado no primeiro post,
o Luteranismo preservou a prática das orações jaculatórias e é possível
encontrar inclusive alusões a formas interiores de prece, análogas à “oração de
Jesus”, do Cristianismo Ortodoxo e às descrições que João Cassiano dá dos
estágios mais elevados de prece. Assim, ao tratar da oração em seu livro Wahres Christentum (“Verdadeiro
Cristianismo”), Johann Arndt distingue três tipos de prece (oral, interna e
sobrenatural), sendo que esta última leva a uma forma de união mística com
Deus:
“Por
essa prece interna [isto é, a prece incessante e interior] somos levados
gradualmente àquilo que é a [prece] sobrenatural; que, de acordo com Tauler, ‘consiste
em uma verdadeira união com Deus pela fé; quando nosso espírito criado se
dissolve, por assim dizer, e se afunda no Espírito incriado de Deus. [...]’. Por
esta razão, esta prece sobrenatural é incrivelmente mais excelente do que a
[prece] que é principalmente externa; pois nela a alma é, pela fé verdadeira,
tão plenificada com o amor divino, que não pode pensar em outra coisa senão em
Deus. [...] Uma alma que uma vez chegou a este estado feliz dá pouco ou nenhum
emprego à língua: ela é silenciosa diante do Senhor. [...] Por isso, ela é ainda
mais e mais cheia de um conhecimento experimental de Deus, e com tal amor e
alegria como nenhuma língua é capaz de proferir. Tudo o que a alma então
percebe está além de toda possibilidade de ser expresso em palavras. " [6]
Johann Arndt
Portanto, existe na
tradição luterana não só um fundamento teológico para o que chamamos de
“mística devocional”, como também a possibilidade de vivenciar de fato experiências
que podemos muito bem qualificar como “místicas”, a partir da participação nos
sacramentos e da prática da prece interior. No próximo e ultimo post dessa série, analisaremos outra
vertente da mística luterana.
Autoria: Rodrigo Moreira de Almeida.
NOTAS:
[1]
Comentário ao Salmo 2, versículo 10. In: Comentário
aos salmos, 1519.
[2]
Comentário ao Magnificat, 1521.
[3] A esse respeito,
vale citar o comentário de Rudolf Otto, que compara a fé luterana ao “fundo da
alma” da mística alemã, o centro “no qual se realiza a união [com Deus]” (O Sagrado. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143). Mais uma vez, é possível ver o
parentesco entre Lutero e Mestre Eckhart, via Tauler, discípulo de Eckhart que
era lido avidamente pelo jovem Lutero.
[4] Johann Gerhard, Meditationes sacrae, XIII.
[5] Meditationes sacrae, XIX. Essa compreensão
do sacramento é expressa também no Prefácio à celebração da Santa Ceia,
utilizado frequentemente na liturgia luterana: “Portanto, com os anjos e
arcanjos e com toda a companhia celeste, louvamos e magnificamos o teu glorioso
nome.”
[6] Wahres Christentum, livro 2, XX, 4. É
interessante comparar a descrição que Arndt dá da “prece sobrenatural” com a
descrição que João Cassiano dá dos estágios mais elevados da prece: “[Esta
prece] vem de uma intenção mental ardente, através de um enlevo inefável do
coração, por meio de um inexplicável arrebatamento do espírito. Livre de todas
as sensações e de preocupações visíveis, a mente derrama-se sobre Deus com
gemidos e suspiros inexplicáveis (Rm 8,26)” (Conferências, 10, 11).
Para quem gostou, deixaremos o link da parte deste estudo:
http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/09/o-lugar-da-mistica-na-igreja-luterana.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.