sexta-feira, 20 de novembro de 2015

FÉ INSENSÍVEL


"Mas do céu lhe bradou o Anjo do SENHOR: Abraão! Abraão! Ele respondeu: Eis-me aqui! Então lhe disse: Não estendas a mão sobre o rapaz e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não me negaste o filho, o teu único filho" (Gênesis 22.11-12).

Fé é uma realidade de fato sublime. Não é obra humana, é obra divina. Não é atividade intelectual, mas espiritual, invisível, sendo ela própria matéria de fé. É necessário que se creia na fé. Ela é objeto de si mesma. 
Lutero ensina que o cristão está oculto de si mesmo: "Esse ponto (creio em uma santa Igreja Cristã) é um artigo da fé como os outros. Por isso, intelecto nenhum pode reconhecê-lo, ainda que bote um monte de óculos, pois o diabo pode muito bem encobrir a Igreja com escândalos e divisões, de modo que só podes mesmo ficar indignado com ela (...). Da mesma forma, também o cristão está oculto diante de si mesmo, de modo que não enxerga sua santidade e virtude, mas somente percebe desvirtude e falta de santidade em si mesmo".
O cristão é definido pela fé no Evangelho. Mas ele próprio não sente tal fé e é obrigado a crer nela. Que complexidade há na fé, que torna a vida do cristão tão difícil?
Gostaria tanto que os conceitos que estão plantados em minha mente pudessem ser chamados de fé! Gostaria tanto que o conteúdo da Confissão de Augsburgo pudesse ser apropriado por mim como fé! Mas não é o caso. Fé é algo sublime, assaz misterioso. 
Por outro lado, ela nunca nos deixa na mão. Nos momentos de aflição ela intervém em nosso socorro. Então nos tornamos cônscios de sua existência.
Abraão foi provado por Deus, que lhe ordenou o sacrifício de seu único filho, Isaque. Abraão pegou o menino e, resignadamente, levou-o para ser imolado, conforme Deus havia ordenado. Quando estava para consumar o ato, Deus o impediu, afirmando-lhe: "AGORA SEI que temes a Deus".
Como assim: Agora sei? Deus não sabe de todas as coisas? Sim, ele sabe. Conhecia muito bem a fé de Abraão. Mas Abraão a conhecia? É certo que não.
Quando Deus prova a fé, ele está nos provando que temos fé. Essa informação preciosa não lhe diz respeito, mas a nós. 
Toda vez que peco e corro a Deus atrás de misericórdia, confiante nela. Toda vez que recorro a Deus com lágrimas nos olhos, implorando por socorro. Toda vez que sou tentado ao desespero, mas resisto a essa tentação e escondo-me em Deus. Toda vez que perco o sono e, perturbado, dirijo o meu olhar ao céu, em busca de uma resposta. Toda vez que me derramo em poesias tristes, por meio das quais eu oro a Deus. Toda vez que me aproximo do corpo e do sangue do Senhor ciente de minhas indignidades, afligido pela consciência, mas certo que ele me ama e não haverá de me recusar. Toda vez que luto contra a carne, o mundo e o diabo. Sim, toda vez que despedaçado eu me dirijo ao meu Deus, como meu Deus, não a mim, como ídolo abominável. Sim, toda vez que me volto a Deus como única solução e rendo-me, minha fé se torna manifesta.
No entanto, a fé não se torna manifesta a mim. Ela se revela dinamicamente, como pulsão, de maneira que o mundo a constata de pronto, mas não eu. Por isso, a fé, antes de mais nada, é um testemunho ao mundo. Basta que nos lembremos da parábola do fariseu e do publicano (Lucas 18.9-14). Eu duvido que o publicano tinha consciência de sua fé, mas todos que ouvem essa parábola não têm dúvidas de que ela existia.
Posteriormente, ao lembrar-me de minha postura frente à tribulação é que minha razão deduz a existência de fé em mim.
Portanto, para quem crê, a certeza da fé baseia-se em lembranças. O salmista recorre ao passado em busca de sua fé para poder ancorar-se nela nos momentos difíceis: "Lembro-me destas coisas - e dentro de mim se me derrama a alma -, de como passava eu com a multidão pelo povo e os guiava em procissão à Casa de Deus, entre gritos de alegria e louvor, multidão em festa. Sinto abatida dentro de mim a minha alma; lembro-me, portanto, de ti, nas terras do Jordão, e no monte Hermom, e no outeiro de Mizar" (Salmo 42.4, 6).
A fé crê em si mesma. Ela é a "certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem" (Hebreus 11.1), porém é uma certeza inconsciente, da qual me aproprio com o tempo, através da recordação.
Exatamente por possuir tal natureza, a fé não é obra humana em absoluto. Como irei praticar uma obra inconscientemente? Muitos insistem na ideia de fé como obra. Então exigem fé para o Batismo e para a recepção de outras graças. Mas que fé é essa?
Então aparece o grande equívoco nosso: confundir fé com confissão.
São Paulo diz: "Porque COM O CORAÇÃO SE CRÊ para justiça e COM A BOCA SE CONFESSA a respeito da salvação" (Romanos 10.10).
A fé é obra de Deus em nosso coração, da qual não temos participação alguma, nem sequer consciência dela. A confissão, por sua vez, é ato deliberado, racional e intelectual. Inclusive somos preparados para fazer a confissão através de muito estudo. 
Assim, frequentemente quem confessa a fé não crê em coisa alguma. Por outro lado, muitos que confessam não ter fé, tem-na abundantemente. A própria experiência nos revela quão falsa pode ser uma confissão. Quantas vezes ela foi imposta ao homem, ao longo da história! Não se deve dar crédito à confissão. Ela sim é obra humana e pode falhar. Portanto, quem insiste na fé como pré-requisito para o Batismo está, na verdade, insistindo não na fé, mas na confissão, que é uma obra humana. O mesmo raciocínio vale para qualquer outra graça cuja recepção se pretende sujeitar à fé.
O Evangelho não deve ser proibido a quem o deseja, a quem o procura. Se a fé se manifesta como pulsão, deixemo-la agir conforme sua natureza e não exigir confissão alguma. Que venham todos os que se sentem cansados e sobrecarregados! A mesma fé que jogou Maria aos pés de Jesus, para ungir-lhe os pés, é a mesma que nos impulsiona à igreja, a fim de que recebamos a salvação.
Também não devo sujeitar minha participação dos meios de graça, que são: Pregação, Batismo e Eucaristia, à certeza de minha fé. Não posso depender de uma impressão e muito menos de uma convicção, para poder participar da bênção do Evangelho. Devo, sim, participar de tudo isso por obediência, porque Deus quer, porque eu quero. Esteja a fé onde estiver, preciso alimentá-la com o Evangelho, para que não morra de inanição.
Outro equívoco frequente entre nós é quando novamente transformamos a fé em obra humana, reduzindo a fé que salva à aceitação intelectual de um corpo doutrinário que se chama confissão. O assentimento intelectual com qualquer confissão não é fé salvífica. Por isso, é tolice achar que minha confissão de fé me torna cristão e salvo. Fosse assim, fé poderia ser ensinada por argumentação humana, quando S. Paulo declara: "A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana e sim no poder de Deus" (1 Coríntios 2.5). Não, a fé que o salva você não vê nem sente; quando muito, recorda-se dela. 
Embora haja muitas confissões cristãs, as palavras de S. Paulo continuam firmes: "há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo" (Efésios 4.5). Fé invisível, insensível, inexprimível, porém firme, criada e preservada pelo próprio Deus, através do Evangelho.
Que coisa sublime é a fé! Sendo obra de Deus nos cristãos, ela passa por cima de nossas limitações, incompreensões e intolerâncias, irmanando-nos todos, fazendo-nos cristãos iguais, não importando a doutrina que nosso intelecto confessa. Essa fé nos torna igualmente justificados e igualmente salvos. Essa fé nos torna um só corpo. Então concluo que a fé salvífica não torna o conceito de "cristão" complexo, mas o simplifica grandemente!
Minha opinião é que muito de nossas meninices e desacordos é que até hoje não sabemos o que é fé.
Entretanto, consolo-me na consciência de que, embora não saiba exatamente o que seja fé, nem a sinta, nem saiba onde ela está, eu a possuo. Caso contrário, eu não estaria louco de vontade que domingo chegue, para que possa receber o perdão dos pecados, a Pregação e o Sacramento. Não é o meu intelecto que me faz deleitar-me nos átrios do Senhor; ah não é mesmo!



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



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