sábado, 27 de dezembro de 2014

ENTRE PERDAS E GANHOS




"Elevo a Deus a minha voz e clamo, elevo a Deus a minha voz, para que me atenda. No dia da minha angústia, procuro o Senhor; erguem-se as minhas mãos durante a noite e não se cansam; a minha alma recusa consolar-se. Lembro-me de Deus e passo a gemer; medito, e me desfalece o espírito. Não me deixas pregar os olhos; tão perturbado estou que não posso falar. Penso nos dias de outrora, trago à lembrança os anos de passados tempos. Rejeita o Senhor para sempre? Acaso, não torna a ser propício? Cessou perpetuamente a sua graça? Caducou a sua promessa para todas as gerações? Esqueceu-se Deus de ser benigno? Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias? Então eu disse assim: O pior de tudo é que o Deus Altíssimo não quer nos ajudar mais como antes" (Salmo 77).

Só não quebra pratos quem não lava pratos. Assim dizia com frequência um professor meu.
Viver é escolher. Cada escolha implica em riscos. É arriscando que se ganha. É arriscando que também se perde. De maneira que ninguém deixa esta vida sem se machucar devido às perdas.
Algumas escolhas resultam em ganho. Outras resultam em perda.
Lidar com os ganhos é natural. Entretanto, lidar com as perdas não é fácil.
Este salmo é o lamento de uma alma insone e desamparada, buscando uma explicação para sua perda.
Eis uma alma deprimida, porque perdeu.
A perda é algo inerente à nossa condição. Perdemos muito ao longo da vida. Mas a beleza da vida é que ela encontra sempre caminhos nunca antes notados, quando defrontada com a perda.
A vida é visitada pela morte, mas luta por permanecer.
A essa resistência da alma à morte chamamos de luto.
Costumamos associar luto à morte.
Luto, no entanto, é a maneira com que lidamos com as perdas significativas. Ele tem mais a ver com a vida do que com a morte.
Algumas coisas que perdemos são verdadeiros pedaços de nós.
Assim é quando perdemos algo que fazia parte de nossa vida, que lhe dava sentido, segurança, prazer, intimidade, paz, etc. Quando somos assolados pela perda, desintegramo-nos, porque algo de nossa estrutura foi removido.
Entretanto, uma coisa me impressiona na humanidade. Veja como o Japão se recuperou do tsunami. Existe em nós uma impressionante luta pela sobrevivência, um instinto que nos quer manter vivos a todo o custo. Há em nós uma energia potencial para superação de qualquer dano. Potencial, porque se revela nas situações certas.
Fato é que o ser humano foi feito para viver.
Vez ou outra me deparo com a incoerência de quem odeia a vida, mas ao mesmo tempo a busca.
Esta luta pela existência e pela reparação começa no corpo. Qualquer ferida cicatriza, por mais profunda que seja. Qualquer infecção contida busca um caminho para purgar sua podridão.
Mas uma luta semelhante existe na alma.
Veja o movimento da alma do salmista. Ele está profundamente deprimido, mas ora incessantemente, em busca de uma resposta, que para ele é vida.
A nossa alma quer também um caminho para a restauração, mesmo que nossa depressão a estorve.
Luto é esse movimento da alma em busca de sua cura.
A primeira reação à perda é a paralisia. A alma está abatida, surda, inconsolável, presa ao instante fatídico. Nenhuma palavra a consola. Ela não busca sentido ou explicação para nada. É incapaz de refletir sobre a perda. Ela está como que morta.
Alguns, infelizmente, não saem dessa paralisia. Vivem, mas deixaram de viver no momento em que sofreram a perda.
Aí está um problema grave. Quando não há uma mão amiga ou uma presença amorosa que intervenha, a alma pode morrer, ao invés de vivenciar o luto.
Padre Fábio de Melo sempre diz que a maneira honesta de lidar com as perdas é através da vivência do luto.
Não é justo que uma alma sucumba a uma perda. Ela precisa viver. Foi feita para a vida.
Por isso o luto é um bálsamo para nossas chagas vivas.
Eu costumo me referir ao luto como sofrimento refletido. É quando lançamos a luz da reflexão sobre a treva de nosso sofrimento.
Sofrer por sofrer não vale a pena. Suscita dó, autocomiseração, sem promover reconstrução, vida ou ressurreição.
Eu acho que o luto tem um itinerário. O ponto de partida é sempre a reflexão.
Quando sofremos uma perda, precisamos dar um novo significado às coisas que permaneceram. É necessário que a perda nos mova em direção ao que ganhamos e, por conseguinte, temos. É aí que está a possibilidade de enxergar aquilo que até então só tínhamos visto. É quando surge a chance de valorizar aquilo que era banal. Muitas vezes a alma deprimida só considera a perda e passa a negligenciar o resto, que certamente é ganho e dádiva.
O luto também requer uma releitura da história.
Sabemos que passado não existe. Dele fica a interpretação dos fatos, que chamamos de memória. Não registramos fatos, mas suas interpretações. É aí que coisas pequenas se transformam em monstros, enquanto que coisas sublimes se tornam pequenas e desprezíveis, porque existe a possibilidade de reinterpretar o que está em nossa memória, seja a favor da vida, seja a serviço da morte.
Quando a perda abala nossa integridade, é necessária uma releitura da história, pois somos o que vivemos. Fosse retirado um "i" de nossa história, não seríamos quem nós somos.
Lamentamos as perdas e isso é legítimo. Mas não fossem elas, seríamos bem diferentes.
E é na história que devemos buscar alento.
Como o passado não existe, o que possuo é o registro da memória, que está sujeito a interpretações.
Eu não posso alterar o passado, mas posso reinterpretar seus registros em minha mente. E como isso é necessário em tempos de crise!
Faça uma releitura de suas escolhas, mas também de seus determinantes. Não somos tão livres quanto pensamos ser. Por isso, quando lamentamos algo que fizemos no passado, é necessário que entendamos nossas limitações e os determinantes. Talvez você verá que não tinha opção ou maturidade suficiente para escolher melhor. Talvez entenderá que fez o melhor que pôde, dentro de suas possibilidades.
Ao reler a história de sua vida, que é única, não busque culpa ou culpados. Busque aprendizado. Busque a compreensão dos outros, mas sobretudo de si mesmo.
Sei que é difícil analisar nossa história com a maturidade que temos hoje. Somos tentados a nos sentirmos tontos por termos feito determinadas escolhas. Mas você é quem você é porque passou por tudo isso. Como disse, retire um "i" de sua história, que seu todo se desfaz.
Alguém poderia lamentar o casamento, por exemplo. Mas já pensou que, sem ele, não teria os filhos e uma série de outros ganhos? Lembre-se que você cresceu com seu cônjuge. Um participou intimamente do processo de amadurecimento do outro. Você precisou dele para ser quem você é hoje.
Então não adianta culpar as escolhas. É necessário que busquemos compreendê-las.
É assim que o luto nos leva à aceitação de quem nós somos. Eu só posso aceitar se primeiro compreender.
É assim que o luto cumpre seu papel de nos levar ao amor por nós mesmos. Porque se compreendo e aceito, é natural que ame.
Por fim, é o amor por nós mesmos que nos possibilita amar.
O luto chega ao fim quando novamente sentimos vontade de amar. É o amor que nos move para o trabalho, para a nossa rotina. É o amor que nos faz ter projetos, que nos lança para frente, que nos faz querer viver, mesmo sabendo dos riscos que isso implica. É o amor que nos retira de nós mesmos, de nosso egoísmo e de nossa depressão para ajudar o outro.  É o amor que nos faz reencontrar a vida e seu gosto.
O luto faz com que perdas se transformem em ganhos.
Veja ao seu redor se há alguém interessante, que tem sempre uma palavra amiga e consoladora, um conselho certo, um sorriso acolhedor. Saiba que essa pessoa admirável enfrentou muitas perdas e as transformou em ganho, para ser quem ela é.
Sua bagagem não caiu do céu e nem foi produzida pelo tempo, como se pensa. Foi produzida pelas perdas bem vividas.
Viva suas perdas! Deixe de morrê-las.
Se não houver força para viver, deixe que a vida siga seu caminho, movida pela sua própria força. A vida encontra sempre um caminho, por mais hostis que sejam as circunstâncias.
Se não tem forças para colaborar, então evite impedir o movimento natural de sobrevivência da vida. Não queira cruelmente localizar todos os caminhos possíveis, para obliterá-los.
E não se esqueça: a vida procura a Vida, ou seja: Deus. A vida sempre se movimenta em direção a Deus, assim como os rios procuram o mar.
Saiba que qualquer perda é vida se nos levar a Deus e que qualquer ganho é morte se nos distanciar dele.
"Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa, achá-la-á" (Evangelho segundo S. Mateus).
Vivamos sabiamente nossas perdas, para que elas não sejam o fim, mas oportunidades de recomeço.

Autoria: Carlos Alberto Leão.

Foto retirada da internet.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.