"Elevo a Deus a minha voz e clamo, elevo a Deus
a minha voz, para que me atenda. No dia da minha angústia, procuro o Senhor;
erguem-se as minhas mãos durante a noite e não se cansam; a minha alma recusa
consolar-se. Lembro-me de Deus e passo a gemer; medito, e me desfalece o
espírito. Não me deixas pregar os olhos; tão perturbado estou que não posso
falar. Penso nos dias de outrora, trago à lembrança os anos de passados tempos.
Rejeita o Senhor para sempre? Acaso, não torna a ser propício? Cessou perpetuamente
a sua graça? Caducou a sua promessa para todas as gerações? Esqueceu-se Deus de
ser benigno? Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias? Então eu
disse assim: O pior de tudo é que o Deus Altíssimo não quer nos ajudar mais
como antes" (Salmo 77).
Só não quebra pratos
quem não lava pratos. Assim dizia com frequência um professor meu.
Viver é escolher.
Cada escolha implica em riscos. É arriscando que se ganha. É arriscando que
também se perde. De maneira que ninguém deixa esta vida sem se machucar devido
às perdas.
Algumas escolhas resultam em ganho.
Outras resultam em perda.
Lidar com os ganhos é natural.
Entretanto, lidar com as perdas não é fácil.
Este salmo é o lamento de uma alma
insone e desamparada, buscando uma explicação para sua perda.
Eis uma alma deprimida, porque perdeu.
A perda é algo inerente à nossa
condição. Perdemos muito ao longo da vida. Mas a beleza da vida é que ela
encontra sempre caminhos nunca antes notados, quando defrontada com a perda.
A vida é visitada pela morte, mas luta
por permanecer.
A essa resistência da alma à morte
chamamos de luto.
Costumamos associar luto à morte.
Luto, no entanto, é a maneira com que
lidamos com as perdas significativas. Ele tem mais a ver com a vida do que com
a morte.
Algumas coisas que perdemos são
verdadeiros pedaços de nós.
Assim é quando perdemos algo que fazia parte de nossa vida, que lhe dava
sentido, segurança, prazer, intimidade, paz, etc. Quando somos assolados pela
perda, desintegramo-nos, porque algo de nossa estrutura foi removido.
Entretanto, uma coisa me impressiona na humanidade. Veja como o Japão se
recuperou do tsunami. Existe em nós uma impressionante luta pela
sobrevivência, um instinto que nos quer manter vivos a todo o custo. Há em
nós uma energia potencial para superação de qualquer dano. Potencial,
porque se revela nas situações certas.
Fato é que o ser humano foi feito para viver.
Vez ou outra me deparo com a incoerência de quem odeia a vida, mas ao
mesmo tempo a busca.
Esta luta pela existência e pela reparação começa no corpo. Qualquer
ferida cicatriza, por mais profunda que seja. Qualquer infecção contida busca
um caminho para purgar sua podridão.
Mas uma luta semelhante existe na alma.
Veja o movimento da alma do salmista. Ele está profundamente deprimido,
mas ora incessantemente, em busca de uma resposta, que para ele é vida.
A nossa alma quer também um caminho para a restauração, mesmo que nossa
depressão a estorve.
Luto é esse movimento da alma em busca de sua cura.
A primeira reação à perda é a paralisia. A alma está abatida, surda,
inconsolável, presa ao instante fatídico. Nenhuma palavra a consola. Ela não
busca sentido ou explicação para nada. É incapaz de refletir sobre a perda. Ela
está como que morta.
Alguns, infelizmente, não saem dessa paralisia. Vivem, mas deixaram de
viver no momento em que sofreram a perda.
Aí está um problema grave. Quando não há uma mão amiga ou uma presença
amorosa que intervenha, a alma pode morrer, ao invés de vivenciar o luto.
Padre Fábio de Melo sempre diz que a maneira honesta de lidar com as
perdas é através da vivência do luto.
Não é justo que uma alma sucumba a uma perda. Ela precisa viver. Foi
feita para a vida.
Por isso o luto é um bálsamo para nossas chagas vivas.
Eu costumo me referir ao luto como sofrimento refletido. É
quando lançamos a luz da reflexão sobre a treva de nosso sofrimento.
Sofrer por sofrer não vale a pena. Suscita dó, autocomiseração, sem
promover reconstrução, vida ou ressurreição.
Eu acho que o luto tem um itinerário. O ponto de partida é sempre a
reflexão.
Quando sofremos uma perda, precisamos dar um novo significado às coisas
que permaneceram. É necessário que a perda nos mova em direção ao que ganhamos
e, por conseguinte, temos. É aí que está a possibilidade de enxergar aquilo que
até então só tínhamos visto. É quando surge a chance de valorizar aquilo que
era banal. Muitas vezes a alma deprimida só considera a perda e passa a
negligenciar o resto, que certamente é ganho e dádiva.
O luto também requer uma releitura da história.
Sabemos que passado não existe. Dele fica a interpretação dos fatos, que
chamamos de memória. Não registramos fatos, mas suas interpretações. É aí que
coisas pequenas se transformam em monstros, enquanto que coisas sublimes se
tornam pequenas e desprezíveis, porque existe a possibilidade de reinterpretar
o que está em nossa memória, seja a favor da vida, seja a serviço da morte.
Quando a perda abala nossa integridade, é necessária uma releitura da
história, pois somos o que vivemos. Fosse retirado um "i" de nossa
história, não seríamos quem nós somos.
Lamentamos as perdas e isso é legítimo. Mas não fossem elas, seríamos bem
diferentes.
E é na história que devemos buscar alento.
Como o passado não existe, o que possuo é o registro da memória, que está
sujeito a interpretações.
Eu não posso alterar o passado, mas posso reinterpretar seus registros em
minha mente. E como isso é necessário em tempos de crise!
Faça uma releitura de suas escolhas, mas também de seus determinantes.
Não somos tão livres quanto pensamos ser. Por isso, quando lamentamos algo que
fizemos no passado, é necessário que entendamos nossas limitações e os
determinantes. Talvez você verá que não tinha opção ou maturidade suficiente
para escolher melhor. Talvez entenderá que fez o melhor que pôde, dentro de
suas possibilidades.
Ao reler a história de sua vida, que é única, não busque culpa ou
culpados. Busque aprendizado. Busque a compreensão dos outros, mas sobretudo de
si mesmo.
Sei que é difícil analisar nossa história com a maturidade que temos
hoje. Somos tentados a nos sentirmos tontos por termos feito determinadas
escolhas. Mas você é quem você é porque passou por tudo isso. Como disse,
retire um "i" de sua história, que seu todo se desfaz.
Alguém poderia lamentar o casamento, por exemplo. Mas já pensou que, sem
ele, não teria os filhos e uma série de outros ganhos? Lembre-se que você
cresceu com seu cônjuge. Um participou intimamente do processo de
amadurecimento do outro. Você precisou dele para ser quem você é hoje.
Então não adianta culpar as escolhas. É necessário que busquemos
compreendê-las.
É assim que o luto nos leva à aceitação de quem nós somos. Eu só posso
aceitar se primeiro compreender.
É assim que o luto cumpre seu papel de nos levar ao amor por nós mesmos.
Porque se compreendo e aceito, é natural que ame.
Por fim, é o amor por nós mesmos que nos possibilita amar.
O luto chega ao fim quando novamente sentimos vontade de amar. É o amor
que nos move para o trabalho, para a nossa rotina. É o amor que nos faz ter
projetos, que nos lança para frente, que nos faz querer viver, mesmo sabendo
dos riscos que isso implica. É o amor que nos retira de nós mesmos, de nosso
egoísmo e de nossa depressão para ajudar o outro. É o amor que nos faz reencontrar
a vida e seu gosto.
O luto faz com que perdas se transformem em ganhos.
Veja ao seu redor se há alguém interessante, que tem sempre uma palavra
amiga e consoladora, um conselho certo, um sorriso acolhedor. Saiba que essa
pessoa admirável enfrentou muitas perdas e as transformou em ganho, para ser
quem ela é.
Sua bagagem não caiu do céu e nem foi produzida pelo tempo, como se
pensa. Foi produzida pelas perdas bem vividas.
Viva suas perdas! Deixe de morrê-las.
Se não houver força para viver, deixe que a vida siga seu caminho, movida
pela sua própria força. A vida encontra sempre um caminho, por mais hostis que
sejam as circunstâncias.
Se não tem forças para colaborar, então evite impedir o movimento natural
de sobrevivência da vida. Não queira cruelmente localizar todos os caminhos
possíveis, para obliterá-los.
E não se esqueça: a vida procura a Vida, ou seja: Deus. A vida sempre se
movimenta em direção a Deus, assim como os rios procuram o mar.
Saiba que qualquer perda é vida se nos levar a Deus e que qualquer ganho
é morte se nos distanciar dele.
"Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por
minha causa, achá-la-á" (Evangelho segundo S. Mateus).
Vivamos sabiamente nossas perdas, para que elas não sejam o fim, mas
oportunidades de recomeço.
Autoria: Carlos Alberto Leão.
Foto retirada da internet.
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