quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A VIVÊNCIA DA MORTE

"Agora, me regozijo nos meus sofrimentos por vós; e preencho o que resta das aflições de Cristo, na minha carne, a favor do seu corpo, que é a Igreja" (Colossenses 1:24).



A vida humana é marcada pelo sofrimento. Do início ao fim de nossa existência, sofremos muitas perdas, boa parte delas irreparáveis. Cada perda é uma espécie de morte. De tanto morrer, somos obrigados a um dia admitir que viver é o mesmo que estar morrendo. 
No entanto, as pessoas não costumam pensar assim. Aliás, as pessoas não costumam pensar muito. Vivem irrefletidamente, sem prestar atenção ao que está acontecendo em si mesmas e ao redor: envelhecimento, adoecimento, mortes, divórcios, separações as mais diversas e esquecimento. As vidas são varridas pelo tempo e deixam de existir. Esta é a realidade de todos nós: somos vida, porém vida que se esvai a todo instante. 
No texto acima e em muitos outros, São Paulo trata diversas vezes do sofrimento cristão como sendo diferente e mais amplo que o sofrimento do mundo. O cristão sofre por ser cristão. Além de suportar todos os sofrimentos que afligem a humanidade, ele sofre na qualidade de cristão. Por isso, ser cristão não é fácil.
Fico pensando na falsa propaganda que existe acerca da vida cristã, como se fosse fácil. Não é, em absoluto! O cristão sofre muito mais que o não cristão. 
Quando o homem é tornado cristão através do Batismo, ele entra numa etapa nova de existência, que é mescla de vida e morte. Muitos pensam que a crucificação cristã é simbólica, mas não é. O homem, quando é tornado cristão pelas águas do Batismo, é inserido no Cristo crucificado e é posto a morrer com ele. Essa morte é literal e contínua. Dessa maneira, ninguém sente mais a morte que o cristão.
Através de sua crucificação, o Adão que habita a Igreja é posto a morrer. Adão está sempre fadado à morte, mas é morto de fato, no sentido de deixar de existir, somente no cristão. Por isso, as agonias de Adão são mais intensas na Igreja e têm que ser. O nosso Adão deve morrer no Calvário do mundo, deixando para trás suas inclinações perversas, sua razão, seus sentidos, suas carências, sua carne e seu fôlego. Ele todo deve ser reduzido ao nada. A morte tem que devorar até suas cinzas!
Alguém poderá dizer: Mas se Cristo nos representou na cruz, morreu por nós e matou a morte, qual a necessidade de nós também morrermos?
É que Cristo matou a morte, de maneira que hoje ela tem um fim. A morte infinita tornou-se finita ou a morte imortal tornou-se mortal. Porque para o ímpio a morte é um flagelo incessante e eterno.
A Quaresma irá começar na próxima semana e acho importante que reflitamos sobre este efeito do Batismo em nós: reduzir nosso Adão ao nada, aniquilá-lo, algo que não ocorre sem profunda dor.
O cristão é obrigado a renunciar a muitas coisas que são preciosíssimas ao homem: reputação, família, bens, inteligência, prestígio, tempo, conforto, motivações e a própria vida. Mesmo que seja rico, deve necessariamente viver como se fosse pobre. Ainda que tenha família, deve estar disposto a abrir mão dela, se necessário for. Se uma coroa está posta sobre sua cabeça, deve portar-se como se não conhecesse coroa alguma. Sendo inteligente, é tolo e deve ser tolo. Assim orou Ester: 

"Tu conheces todas as coisas e sabes que odeio a glória dos ímpios, que me horroriza o leito dos incircuncisos e o de todo estrangeiro. Tu conheces o perigo por que passo, que tenho horror da insígnia de minha grandeza que levo em minha fronte quando apareço em público, o mesmo horror como diante de um trapo imundo, e não a levo nos meus dias de tranquilidade. Tua serva não comeu à mesa de Amã, nem apreciou os festins reais, nem bebeu o vinho das libações. Tua serva não se alegrou desde que veio para cá até hoje, a não ser em ti, Senhor Deus de Abraão"

Toda essa renúncia ou despojamento é morte, sem sombra de dúvida! Poderíamos viver tudo isso plenamente, como faz o mundo. Mas nenhuma dessas renúncias é nossa pior morte.
A pior morte que o cristão sofre é a perda desta vida, sem usufrui-la o quanto poderia, em nome de uma vida vindoura ou de uma verdadeira vida, que aos olhos da carne é apenas uma suposição. O cristão é obrigado a renunciar ao que vê em nome do que não vê. Isso é tremendamente angustiante! O cristão vive pobremente, tem e não tem, poderia, mas não faz, enquanto o mundo todo aproveita tudo o que existe com intensidade. O cristão é obrigado a negar sua carne, que não é diferente da carne dos ímpios, ser expectador da alegria e prosperidade alheias, porque este mundo não é seu lugar. Em outras palavras, o cristão troca o certo pelo duvidoso, o que é deveras a pior morte, a pior agonia que existe.
Que cristão nunca perguntou a si mesmo: Que estou fazendo com meu tempo, com minha vida? Deveria estar aproveitando o  que este mundo me dá. Que cristão nunca foi tentado a pensar que está desperdiçando sua vida? Mas sente que sua morte é irresistível, que está crucificado para morrer de fato, até que a última partícula de Adão se dissolva. Não consegue descer da cruz e é motivo permanente de chacota.
Paralelamente à morte cristã, é claro que está a vida. Desde o Batismo o cristão começa a viver também. O problema é que trata-se de uma vida interior, que frequentemente não se sente, porque está no espírito, do qual não temos notícia alguma. Portanto, trata-se de vida oculta sob a carranca da morte. Essa vida é matéria de fé! Por isso, São Paulo declara: "Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (...), visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé" (Romanos 1:16-17). Não há outro jeito! Somos obrigados a ver além da carranca da morte, o que é fé.
Ser cristão não é brincadeira! Professamos uma morte redentora não como ato pronto, mas como obra continuada, que continua em nós. O sacrifício de Cristo mereceu a nossa salvação, mas não nos exime de nosso sacrifício, não nos isenta de sofrer e morrer também. Percorremos o mesmo caminho de Cristo e cada um de nós terá que dizer um dia, com ele: "Está consumado!" Enquanto isso permanecerão a dor, as trevas, o medo, a solidão... e uma esperança, só a lânguida chama de uma esperança para nos encorajar em meio às trevas.
Dr. Martinho Lutero: "Diante disso, eu cometo a loucura de dar a minha opinião. Primeiro, é certo que a graça, isto é, a fé, a esperança e o amor não são infundidos se não for simultaneamente expulso o pecado, isto é, o pecador não é justificado se ele não for condenado; ele não é vivificado se não for morto; ele não ascenderá ao céu se não descer ao inferno, como toda a Escritura atesta. Razão pela qual, na infusão da graça, é necessário que haja amargura, tribulação, sofrimento, sob os quais o velho homem geme, suportando a sua iminente ruína com extremo pesar" (Trabalhos nos salmos, 1519-1521).
Que tenhamos todos uma Quaresma muito fecunda. Amém!
Dr. Martinho Lutero: "



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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