quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A TENTAÇÃO DA IGREJA NO DESERTO - PARTE 1

Estamos na Quaresma, tempo muito oportuno para meditarmos sobre nossas indigências. Somos pobres e temos inimigos poderosíssimos, contra os quais nada podemos. Que inimigos são esses? Lutero prontamente responderia que são o pecado, a morte e o inferno. Contra eles nada somos!
Neste nosso contexto de indigência está a tentação. Por tentação, entendemos qualquer situação que propicie o pecado. Obviamente, tentação é exclusividade de quem crê. Quando um incrédulo decide entre praticar ou não determinado ato imoral, trata-se de escolha, que não envolve o espírito, mas somente o intelecto, que é regido pela Lei natural. Quanto ao crente, ele não decide entre praticar ou não um ato imoral; ele decide entre pecar e não pecar, o que é mais profundo. Portanto, a deliberação do crente envolve espírito, pecado e fé. Só assim podemos falar em verdadeira tentação, quando fé e pecado existem e digladiam-se. Não havendo fé nem pecado, não pode existir a tentação.
Lutero sempre dizia que o cristão é tentado por sua carne, pelo mundo e pelo diabo. Por sua carne, que está dominada pela concupiscência. Pelo mundo, através de suas ideologias e perseguições. Mas principalmente pelo diabo, tentador por excelência, sendo ele o corruptor da natureza humana e de todo o mundo, tornando todas as coisas hostis a Deus e à fé.
Jesus foi tentado também. É evidente que seria tentado, pois é homem e foi posto entre os homens, no mundo, dentro do império de Satanás! Não podemos jamais dizer que Jesus foi tentado por sua carne, posto que não herdou o pecado de Adão, mas não lhe faltou mundo e diabo para feri-lo amargamente. Contra nenhum de nós o mundo e o diabo investiram com tanta fúria como contra Jesus, nosso amado Salvador.
Os quarenta dias de Quaresma nos remetem aos quarenta dias de Jesus no deserto, depois dos quais foi tentado pelo diabo. Assim narra S. Mateus:

"A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo. E, depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (S. Mateus 4:1-4).



Jesus foi tentado como pessoa divina e humana, isenta do pecado, libérrima em relação ao pecado. Para Jesus, pecar é impossível, pois é verdadeiro Deus. Mas não pense que, ao ser tentado, Jesus não tenha sofrido. De tal maneira sua natureza divina se ocultou em seu estado de humilhação, que Jesus vivia no mundo como se não fosse Deus, como qualquer um de nós, exceto no pecado. Ocasionalmente agia como Deus, mas sempre com um propósito redentor, nunca para seu próprio benefício.
Quando Jesus foi tentado, sua Divindade não veio em seu socorro. Ali o diabo novamente se encontrava com Adão, querendo desviá-lo da Verdade. Jesus certamente sentiu desamparo, medo e aflição, como qualquer um de nós, quando é tentado. É bom ressaltar que a humilhação de Jesus consistiu em sofrer como homem o que poderia ter enfrentado como Deus. 
Atentemo-nos ao fato de Jesus ter sido conduzido à tentação pelo Espírito Santo. É Deus quem nos permite ser tentados, embora não além de nossas forças e sob seu olhar amoroso. As tentações servem ao bom propósito de nos tornar cônscios de nossa fé, seja pela resistência ao pecado, seja pela contrição que ela provoca, quando pecamos. Por isso, pode-se dizer que são salutares ao cristão.
Lutero disse, ousadamente: "Assim como é extremamente perigoso que o homem sempre tenha prosperidade, pois, dessa forma, nunca ou em raríssimos casos aprende a amar a Deus, assim é perigoso deixar o homem em muitos méritos e benefícios da graça de Deus até a morte, porque dificilmente, alguma vez, aprenderá a confiar em Deus até a morte. Por isso acontece, pela misericórdia de Deus, que não sejam apenas perturbados na consciência, mas que também caiam, mesmo sendo muito duro, algumas vezes, em manifesto pecado, como a prostituição ou [outro] ato criminoso similar; que Deus seja obrigado a guardá-los com tamanho cuidado a ponto de, contra a misericórdia, conduzi-los à misericórdia e, através do pecado, libertá-los do pecado"
Jesus estava com fome. A necessidade ou fome é um elemento indispensável à tentação, visto que ninguém é tentado ao que não quer ou precisa. A força da tentação é sempre a nossa fome, seja ela pecaminosa ou não. Vê-se então que a tentação não necessariamente nos faz cair em imoralidade, mas seu propósito principal é desviar nossa confiança de Deus, até mesmo para suprir necessidades não pecaminosas. 
Jesus foi tentado a transformar pedras em pães, a fim de alimentar-se. Que mal há nisso? Não é legítimo que alguém coma, sobretudo após quarenta dias de jejum? Por que Jesus não cedeu? Bem, é evidente que ele não haveria de ceder, pois estava diante do diabo, que zombeteiramente questionou sua Divindade: "Se és Filho de Deus". Mas a ênfase não devemos colocar aí. Quase nunca o diabo se apresenta de maneira tão explícita!
Jesus, embora Deus e homem em absolutamente tudo o que fazia, viveu misteriosamente como simples homem entre nós, poucas vezes valendo-se de sua onipotência. Quando o fazia, era sempre com um propósito redentor, nunca para benefício próprio. O diabo, portanto, estava tentando Jesus a utilizar seu poder para resolver um problema imediato seu. 
A Igreja é tentada da mesma forma. À semelhança de Jesus, ela é divina e humana. Divina no que se refere à Verdade, humana no que concerne ao pecado. Seu poder é a Pregação da Palavra de Deus, que é onipotente. O uso desse poder está nas mãos de ministros devidamente chamados e preparados para isso. 
A essa Igreja divino-humana o diabo está sempre assediando, valendo-se de suas fomes, com o intuito de fazê-la cair. 
Fome não falta à Igreja: sente-se tola, inadequada ao mundo, pecadora, sozinha, dividida, etc. Tudo isso a Igreja padece e bem gostaria de obter alívio.
É então que o diabo, astutamente, oferece-lhe pedras e a tenta a valer-se do ministério da Pregação para transformar essas pedras em pães, dessa maneira aliviando suas fomes.
A primeira pedra que o diabo oferece é a opressão estatal. A Igreja poderia muito bem transformar essa pedra em pão através de sua intromissão na política, querendo obrigar as leis do Estado a preservarem o Evangelho. Para isso, púlpitos são transformados em palanques de comício, pastores induzem suas ovelhas a votarem em determinados candidatos, são formadas bancadas ou coalizões parlamentares, tudo com o intuito de proteger o Evangelho e quem o professa. 
A segunda pedra que o diabo traz é a divisão exterior e escandalosa. A Igreja também poderia transformar essa pedra em pão, abandonando ou relevando suas confissões, em nome de uma união exterior. Exemplo disso, a Igreja Evangélica Alemã.
A terceira pedra é o aniquilamento do mistério. Não é agradável à Igreja ser tola perante o mundo, sobretudo agora, quando as ciências evoluíram de maneira extraordinária, propondo uma resposta para quase tudo. A Igreja poderia muito bem utilizar o seu poder para transformar essa pedra em pão, acabando com os "mitos" e apresentando suas doutrinas de maneira racional e científica, dispondo-se do conhecimento humano atual. Assim, seu discurso se tornaria mais atraente, contextualizado e prático. 
O poder que a Igreja é tentada a utilizar é sempre o ministério da Pregação. Daí a necessidade de sempre orarmos por nossos pastores e doutores, para que permaneçam na sã doutrina. São eles que manejam a onipotente Palavra de Deus, podendo muito bem utilizá-la para fins escusos, com o intuito de transformar pedras em pães e resolver seus próprios problemas, deixando de lado o propósito redentor desse poder. 
Quando o diabo tenta a Igreja dessa maneira, ele também propõe algo inocente: matar uma fome legítima e não pecaminosa. Não é pecado algum desejar ser protegido pelo Estado, nem ansiar pelo fim das divisões exteriores, assim como também não é errado desejar uma Igreja contextualizada, com uma mensagem adequada às necessidades de seu tempo. Tudo isso é fome legítima!
O objetivo da tentação é desviar-nos da confiança em Deus. Quando, famintos, nos deparamos com as pedras e Satanás nos oferece a possibilidade de transformá-las em pães, para que saciemos nossas fomes, ele quer que deixemos de confiar em Deus. Ele nos tenta à incredulidade e à autossuficiência. Então caímos, recorrendo à proteção do Estado, a alianças eclesiásticas mutilantes e à ciência.
Jesus respondeu ao diabo que "não só de pão viverá o homem, mas de toda Palavra que procede da boca de Deus". Com essas palavras, ele nos provê o livramento, para que não sejamos seduzidos pelo diabo a descrer em Deus e no seu cuidado para conosco. Vivemos não só de pão, mas da Palavra de Deus, de sua Promessa para conosco.
Quando a Igreja é perseguida pelo Estado, ela deve buscar em Deus o socorro, consolando-se em sua Promessa. Também não deve descrer na unidade dos cristãos, ainda que as divisões nos causem dor, vergonha e sejam causa de zombaria. Também não deve tornar o Evangelho cientificamente correto, mas deve ater-se ao que Deus disse e crer nisso, ainda que o mundo inteiro nos chame de tolos.
Permaneçamos vigilantes. Nem sempre o diabo nos proporá o pecado de maneira explícita. Quase sempre ele irá se valer de uma carência legítima nossa, induzindo-nos a não confiar em Deus e a buscar solução em nós mesmos.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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