sábado, 9 de janeiro de 2016

CRISTIANISMO CULTURIZADO


Dias atrás, minha esposa perguntou à senhora que trabalha para nós, que é cristã, qual era a programação de Natal em sua comunidade. Essa senhora se irritou com a pergunta e afirmou que, em sua igreja, não se comemora o Natal, por ser festa pagã.
De fato, muito problema se criou dentro da cristandade devido à influência pagã, que eu prefiro chamar de influência gentílica. Ninguém nega que Natal, ovos de Páscoa e imagens sejam de influência gentílica. Mas não só isso! A própria doutrina cristã foi influenciada por filósofos gentios, sobretudo Aristóteles e Platão.
É impossível a uma sociedade humana, que vem do mundo e está imersa nele, não sofrer influências culturais do mundo ao qual pertence. Por isso, o cristianismo é diferente na Europa, nas Américas, Ásia e África. Mas não devemos diabolizar essas influências. Elas mostram que a Igreja é divina E humana. Elas demonstram como se dá a introdução de Deus entre os seres humanos, santificando seus costumes, tradições e modo de vida. 
Muitos que congregam em igrejas que buscam rigorosamente extirpar delas qualquer influência gentílica caem no problema enfrentado pelos apóstolos: a influência judaica. A Igreja primitiva teve muita dificuldade em administrar a influência judaica fortíssima sobre o pensamento cristão, tendo que lidar com ela da mesma forma como tivemos que lidar com a influência gentílica em outras eras: até que ponto essa influência é neutra (ou adiáfora) e até que ponto ela é prejudicial à fé?
Eu percebo hoje muita influência judaica no cristianismo que se propõe a ser inteiramente bíblico, por assim dizer "isento" de tradições humanas. Pessoas que desejam isso entendem que só há cristianismo quando a sua igreja se torna idêntica à Igreja primitiva. A questão é que a Igreja primitiva não estava tranquila em sua condição, mas convivia com a influência judaica e era obrigada a administrá-la prudentemente, sobretudo a influência da Lei de Moisés. O resultado de se "voltar às origens" é acabar com o Natal, com as imagens, com os altares e velas, com o incenso, com o coelho e ovos de Páscoa, simultaneamente fazendo concessões a tradições judaicas, principalmente à Lei judaica: não comer sangue, observar o sábado, pagar o dízimo,  não comer alimentos consagrados a ídolos, apresentar os bebês no templo, etc. É o que temos visto! Então se troca a influência gentílica pela influência judaica, como se costumes judaicos fossem melhores e mais cristãos que os costumes gentílicos.
Entre os gentios, a Igreja teve de administrar seus costumes de maneira prudente, acatando aquilo que é neutro ou santificando o que sempre pertenceu a Deus, mas que foi usurpado pelo diabo, ao mesmo tempo em que combatia a idolatria, o individualismo, a imoralidade sexual e a influência da filosofia grega sobre a teologia, por serem danosos à fé. Entre os judeus, a Igreja primitiva teve igualmente que fazer concessões a tradições judaicas que por si só não prejudicavam a fé, mas foi obrigada a lutar fortemente contra a obrigatoriedade desses costumes, sua imposição aos gentios e contra a noção de justificação pelas obras. 
Não sei se as igrejas atuais que querem se tornar idênticas à Igreja primitiva estão tomando o mesmo cuidado dos apóstolos, em analisar judiciosamente a influência da Lei judaica sobre o cristianismo. Suspeito que não. 
É sobre o papel da Lei judaica na Igreja que quero tratar hoje. 
Nós, luteranos, ensinamos que a Lei foi dada por Deus a todos os homens, indistintamente. A Lei nos é inata. Cremos que o ser humano é um ser moral exatamente devido à Lei interior que rege seu pensamento e, por conseguinte, seu comportamento. Chamamos essa Lei de "Lei natural". Sobre ela comenta S. Paulo: "Quando, pois, os gentios, que não têm Lei, procedem, por natureza, de conformidade com a Lei, não tendo Lei, servem eles de Lei para si mesmos. Estes mostram a norma da Lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se" (Romanos 2:14-15). 
A Lei dada a Moisés contém a Lei natural de maneira perfeita e inequívoca, mas também contém leis que foram dadas somente ao povo judeu. Devemos nos lembrar que a Lei foi pactuada entre Deus e os judeus: "Disse também Deus a Moisés: Sobe ao SENHOR, tu, e Arão, e Nadabe, e Abiú, e setenta dos anciãos de Israel; e adorai de longe. Só Moisés se chegará ao SENHOR; os outros não se chegarão, nem o povo subirá com ele. Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do SENHOR e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o SENHOR faremos. Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR (...). E tomou o livro da aliança e o leu ao povo; e eles disseram: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos. Então, tomou Moisés aquele sangue, e o aspergiu sobre o povo, e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o SENHOR fez convosco a respeito de todas estas palavras" (Êxodo 24:1-4, 7-8). 
Então a Lei dada a Moisés contém a Lei natural ditada por Deus, de maneira que esta não é mais subjetiva, mas objetiva e padrão universal de moralidade, como também contém leis civis e cúlticas, que foram estabelecidas somente ao povo judeu. 
Todos nós, cristãos, estamos de acordo que somente a Lei natural que consta na Lei de Moisés deve ser obedecida. Já temos conosco a Lei natural desde nossa concepção, mas não a enxergamos de maneira integral e unânime, devido ao pecado que também nos é inato. Então encontramos na Lei de Moisés a voz de Deus proclamando a Lei natural a nós, de maneira que esta Lei não está mais sujeita ao filtro grosso de nossa subjetividade pecaminosa, mas também leis civis e cúlticas ordenadas somente ao povo judeu e que não dizem respeito a nós. Quem de nós quer circuncidar os filhos ao oitavo dia, isolar-se do convívio social em caso de doença dermatológica, cumprir rituais de purificação, sacrificar animais e casar-se com a cunhada viúva? Ninguém! Sabemos que essas leis não nos dizem respeito, por serem leis civis ou cúlticas dadas a Israel. Queremos somente a Lei natural.
Mas onde está a Lei natural em Moisés? Aqui nos bagunçamos e muito! Mas muito mesmo! 
A maioria dos cristãos acha que o Decálogo é a Lei natural à qual devemos nos sujeitar. Lutero concordava em termos com isso. Santificar o sábado definitivamente não é Lei natural! Todos os dias devem ser santificados a Deus igualmente. É imoral quem reserva um dia na semana para santificá-lo a Deus. Todo homem tem o dever de amar a Deus, honrá-lo, dedicar-lhe culto, ser grato a ele, estudar sua Palavra, nela meditar e orar todos os dias, porque Deus é Deus todos os dias, não somente aos sábados. É ingratidão de nossa parte não lhe santificar cada dia da semana, como se ele fosse Deus somente aos sábados. Existem também aqueles que transferiram o sábado para o domingo, mas continuam com a mesma mentalidade. Isso é influência judaica perniciosa.
Isaías profetizou: "E será que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar perante mim, diz o SENHOR" (Isaías 63:23). 
É claro que precisamos de um dia da semana para nos reunirmos em torno do altar, ouvir a Pregação e receber os sacramentos, mas por tradição a Igreja escolheu o domingo. Poderia ter optado pela quarta-feira ou pela quinta-feira, sem maiores problemas. De forma alguma é pecado se determinada comunidade transferir o dia de culto do domingo para terça-feira, de acordo com sua disponibilidade de tempo. 
Também no Decálogo encontramos uma Lei que não é nada natural: não fazer imagens ou representações de Deus. O mesmo Deus que proibiu as imagens ordenou que fossem feitas: os querubins do tabernáculo e a serpente de bronze. Ora, não há contradição em Deus. Imagens são somente arte e mais nada! Deus não proibiu a arte em sua Lei natural. Muito pelo contrário, amamos a arte porque ela nos aproxima de Deus, o grande artista. Somos imagem e semelhança de Deus também em nossa capacidade de criar. Portanto, imagem é arte e apenas isso!
O que Deus estava prevendo e, por isso mesmo advertiu o povo judeu, era o sincretismo religioso. O povo judeu iria se encontrar com o povo cananeu e haveria de misturar a verdadeira religião com o paganismo daquele povo, adorando seu Deus invisível sob a forma e nome dos deuses pagãos. Foi assim que Javé se tornou Baal. O povo se voltava a Javé através de imagens de Baal e ousaram chamar Javé de Baal. Esse foi o pecado gravíssimo cometido por Israel. Por causa desse pecado é que Deus proibiu qualquer tipo de representação sua. Mas essa ordem tem um receptor e um contexto. É importante que tenhamos isso em mente toda vez que abrimos a Bíblia.
Portanto, o Decálogo não é a Lei natural. Teremos que recorrer a um outro princípio para discernir a Lei natural que consta na Lei de Moisés. Que princípio será este?
Jesus nos deu o princípio: "AMARÁS O SENHOR, TEU DEUS, DE TODO O TEU CORAÇÃO, DE TODA A TUA ALMA E DE TODO O TEU ENTENDIMENTO. ESTE É O GRANDE E PRIMEIRO MANDAMENTO. O SEGUNDO, SEMELHANTE A ESTE, É: AMARÁS O TEU PRÓXIMO COMO A TI MESMO. DESTES DOIS MANDAMENTOS DEPENDEM TODA A LEI E OS PROFETAS"(S. Mateus 22:37-40). O amor é este princípio!
Jesus estava prevendo o que viria logo após Pentecostes, quando a Igreja nasceu: a influência judaica sobre o pensamento cristão. São Paulo teve que continuar insistindo nessa norma, em sua luta contra a judaização do cristianismo: "A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a Lei" (Romanos 13:8); "porque toda a Lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Gálatas 5:14).
Deus não nos deixou na mão, nós que somos gentios e até hoje ficamos confusos quando lemos Moisés e com boa vontade nos propomos a obedecê-lo. Ele nos deu o princípio da Lei natural, que deve nos reger dentro e fora da Lei de Moisés: o amor a Deus e ao próximo. 
Por exemplo, quando entrego o dízimo estou amando a Deus e ao próximo? Bem, é necessário que se questione: o dízimo é melhor oferta a Deus que um valor menor ou maior, dado conforme minha situação financeira? É claro que não! A viúva doou tudo o que tinha, enquanto Zaqueu doou metade de seus bens e os coríntios doaram "segundo as suas posses" (2 Coríntios 8:10-14). Não amo menos a Deus e ao meu próximo quando entrego o que posso, dentro de meu orçamento. Muito pelo contrário, poderei estar faltoso com meu próximo (esposa, filhos e pais) se, em nome do dízimo, permitir que falte dinheiro em casa. Então o princípio do amor me leva a amar a Deus e ao próximo, contribuindo, dentro de minhas possibilidades financeiras, sem ganância e avareza, para que a minha comunidade permaneça com as portas abertas, que meu pastor e minha família tenham seu sustento e que meu vizinho pobre também o tenha. 
Quando deixo de comer sangue e recuso galinha ao molho pardo ou chouriço, estou amando a Deus e ao meu próximo? É óbvio que não! Estou amando a mim mesmo, exibindo-me como mais santo que os outros. Que não coma quem não gosta! Devemos estar livres diante dos alimentos. Todo alimento pertence a Deus e nós o amamos quando aceitamos alegremente o que ele nos dá para comer, ainda que tenha sido preparado por uma baiana ou por um indiano, depois consagrado a algum ídolo. 
Se oro a Deus diante de uma imagem, estou deixando de amar a Deus e ao próximo? Não! A imagem não é meu Deus, mas uma representação ou símbolo dele. Os símbolos encurtam distâncias, por isso nós os utilizamos e precisamos deles. Também a viúva se dirige ao retrato de seu finado marido cheia de saudade e, graças à foto, que é um símbolo dele, ela sente tê-lo mais perto de si. O mesmo com relação às mães que perderam seus filhos e guardam consigo algum símbolo dessa relação, ao qual recorrem nos momentos de saudade. Quem se aproxima de uma imagem com este coração está não só amando a Deus, mas também cheio de saudade, suspirando por ele, com o coração doído e pobre. Também está amando ao próximo à medida em que ora e entrega a Deus os problemas dele.
E assim por diante, toda vez que Moisés é lido, é necessário que nos atenhamos ao princípio da Lei natural, que é o amor. Princípio este não inventado pela Igreja, mas ensinado pelo próprio Deus.
Nós, que somos cristãos, temos que aprender a libertar nossa consciência através do amor. Devemos orar por isso e praticar pequenos exercícios, de maneira a libertá-la paulatinamente, sem nunca achar que estamos prontos e livres por completo. Foi para a liberdade de filhos que Deus nos chamou e devemos ser livres diante de todas as coisas, inclusive diante da Lei de Moisés, através do amor. Devemos estar livres também diante da cultura, vivendo-a e santificando-a no amor, afastando aquilo que nos afasta de Deus e uns dos outros, retendo aquilo que nos une e, se necessário for, ressignificando as coisas. Ser cristão não é ser esquisito e anticultural. Mas sobre essa liberdade irei tratar na próxima postagem.
Concluo com o ensinamento de Jesus: "Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos" (S. Mateus 9:13).



Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.





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