domingo, 14 de junho de 2015

VASOS DE DESONRA



A questão da predestinação tem me incomodado muito nesses últimos anos. É que já professei uma das várias teses acerca dela e hoje não suporto mais ouvir falar disso. Confesso que todas as teses sobre a predestinação atualmente me horrorizam, por não encontrar nelas nada do Deus que se revelou em Jesus Cristo, nada do Deus que amo com todo o meu ser. 
No entanto, como luterano, não posso deixar de sentir algum desconforto ao rechaçar todas essas teses de vez, porque o próprio Lutero tinha a sua. Em sua obra Da Vontade Cativa, endereçada ao humanista Erasmo de Roterdã, ele deixa claro que Deus escolheu alguns para serem salvos, tendo rejeitado os demais. Fala que é próprio do Deus revelado convidar, chamar, entristecer-se, mas o Deus não revelado ou abscôndito nem sempre quer salvar. Vou deixar aqui alguns trechos da obra: 


"Mas se te agrada o Deus que coroa os indignos, também o que condena os que não merecem não deve te desagradar. Se ele é justo lá, por que não será justo aqui? Lá ele esparge a graça e a misericórdia sobre os indignos, aqui esparge a ira e a severidade sobre os que não o mereceram; em ambos os casos é desmesurado e iníquo aos olhos dos homens, mas justo e veraz consigo mesmo". "Assim não quer a morte do pecador, a saber, de acordo com sua palavra, mas a quer de acordo com aquela vontade imperscrutável". "Assim dizemos: o bom Deus não deplora a morte do povo que opera nele, mas deplora a morte que descobre no seu povo e que ele se esforça para afastar (...). O Deus abscôndito em sua majestade, porém, não deplora nem abole a morte, mas opera vida, morte e tudo em todos". "Do mesmo modo é próprio desse Deus encarnado chorar, lamentar-se e gemer por causa da perdição dos ímpios, embora a vontade da majestade divina deixe para trás e reprove propositadamente alguns, de modo que perecem. Não nos cabe perguntar por que ela procede assim, mas deve-se reverenciar a Deus que tanto pode como quer tais coisas".
Esta era a opinião de Lutero acerca da predestinação. Quanto à Fórmula de Concórdia, ela aborda a questão de outra maneira, bem mais cuidadosa: 



"Essa eterna eleição ou ordenação de Deus para a vida eterna também não deve ser considerada no conselho secreto e inescrutável de Deus tão nuamente como se nada mais compreendesse, ou como se nada mais a ela pertencesse, e nada mais houvesse de ser considerado nela, senão isso que Deus previu quem e quantos deveriam ser salvos, quem e quantos deveriam ser condenados, ou que apenas passou em revista assim: este deve ser salvo; aquele, não; este há de perseverar; aquele, não"; "e a essa vocação de Deus, que é feita mediante a pregação da palavra, não a devemos considerar burla, mas saber que, por meio dela, Deus revela a sua vontade, a saber, que naqueles que, dessa maneira, chama, ele quer operar pela palavra de forma que possam ser iluminados, convertidos e salvos"; "a causa, porém, de 'muitos serem chamados, mas poucos escolhidos', não é a vocação divina, que é feita por intermédio da palavra, como se Deus dissesse: exteriormente, por meio da palavra, deveras, chamo ao meu reino a todos vós a quem proponho a minha palavra; no coração, porém, não penso em todos, mas apenas em alguns poucos"; "assim, a santa Trindade inteira, Deus Pai, Filho e Espírito Santo, dirige todos os homens a Cristo como o livro da vida, no qual devem procurar a eleição eterna do Pai"; "a razão, entretanto, por que nem todos os que ouviram creem, sofrendo, por isso, condenação tanto maior, não é que Deus não lhes haja consentido a salvação. Eles mesmos são culpados nisso, eles, que ouviram a palavra não de forma que aprendessem, mas, unicamente, para desprezar, blasfemar e profaná-la, e resistiram ao Espírito Santo, que, neles, quis operar mediante a palavra, como no tempo de Cristo sucedeu no caso dos fariseus e seus asseclas".

Com todo o respeito que devo a Lutero, eu fico com a Fórmula de Concórdia e não vou arredar o pé dela. Eu cheguei ao ponto de meu itinerário em que é necessário vencer em mim esse ranço de predestinação, de uma vez por todas.
A razão quer respostas para as seguintes perguntas: Se a fé é dom de Deus, por que Deus não a concede a todos, para que sejam salvos? Se Deus é todo-poderoso, como pode alguém não ser salvo, se ele assim o quer? De questionamentos assim, surgiram as teses que tratam da predestinação e da expiação limitada, restringindo a um determinado número de pessoas a obra vicária de Cristo, bem como sua aplicação. Como nunca é demais racionalizar as coisas, surgiu a tese da dupla predestinação, duplamente odiosa, que assevera Deus ter criado alguns homens para a salvação eterna e outros para a perdição eterna, de maneira proposital. Não há doutrina mais grosseira do que essa, em todo o cristianismo! É maniqueísmo! É heresia! Ressalto que Lutero nunca pensou assim. Embora acreditasse que Deus escolheu alguns para salvar, nunca afirmou que Deus criou homens para a perdição eterna.
Deus quer salvar toda a humanidade. Não se encontra nas Escrituras um versículo sequer que demonstre o desejo de Deus de salvar somente alguns. Por outro lado, elas demonstram claramente o desejo de Deus que TODOS sejam salvos: "Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? - diz o SENHOR Deus; não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva?" (Ezequiel 18.23). Com sincero pesar, Jesus clamou: "Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes"(Mateus 23.37). "Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento" (2 Pedro 3:9). 
É Deus quem nos chama e salva, através da fé, que é obra exclusiva dele em nós e sem nós. Quando a Bíblia fala em predestinação ou eleição, ela se refere ao modo pelo qual Deus estabeleceu a salvação: não por obras, não por mérito, não por iniciativa humana, mas unicamente por sua graça, que outorga a fé. É Deus quem sempre quis, não nós. Nesse sentido devemos entender a eleição de Deus e parar por aí. 
Na verdade, predestinação é um grande mistério, que S. Paulo só mencionou para que não nos sentíssemos responsáveis por nossa salvação, nem colaboradores de Deus. A verdadeira predestinação é de TODO incognoscível, conselho do Deus abscôndito, o qual não conhecemos e jamais iremos conhecer, a não ser que nos tornemos iguais a ele. A verdadeira predestinação não cabe em nenhuma tese, em nenhuma confissão e em nenhum papel.
Como me assusta a ousadia do homem em tentar investigar esse Deus abscôndito! Essa investigação se torna ainda mais perigosa (e até sacrílega) quando ela atinge verdades que Deus revelou com muita clareza, principalmente o seu amor incondicional pela humanidade, a sinceridade de sua vocação e a expiação de todos os pecados humanos. Deixamos de lado o Deus revelado em Jesus Cristo e voltamo-nos imprudentemente para o Deus abscôndito, filosofando sobre predestinação, dupla predestinação, supralapsarianismo, infralapsarianismo, expiação limitada e outras coisas mundanas, não satisfeitos até que transformemos Deus em um monstro, do qual todos devem ter pavor.
Ao debater com um humanista, Lutero infelizmente discursou como um humanista. Sabemos bem o quanto Lutero combateu o racionalismo teológico, mas ninguém está imune ao seu tempo, nem mesmo Lutero. Definitivamente, é inadmissível uma discordância de caráter e vontade entre o Deus abscôndito e o Deus revelado. Se é assim, não poderei confiar no que Cristo me revela e continuarei sem Deus algum. 
É então que, ao refletir honestamente sobre o assunto, como uma questão de vida ou morte, confesso que três capítulos das Escrituras me afligem e preciso vencê-los. Na verdade, eles mesmos não me atormentam, mas a interpretação que recebi deles, da qual não tenho conseguido me desvencilhar. Refiro-me aos capítulos nono, décimo e décimo primeiro da carta de S. Paulo aos romanos. 
Esses três capítulos são as principais armas usadas pelos defensores da dupla predestinação, sobretudo o nono. Por isso, vejo-me obrigado a reler com redobrada atenção esses textos, para que não me confunda mais e me livre desse estorvo para sempre.
Ele diz: "Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz" (9.18), para depois afirmar: "Porque Deus a TODOS encerrou na desobediência, a fim de usar de misericórdia para com TODOS" (11.32). Portanto, a misericórdia de Deus continua sendo universal e temos que interpretar de outra maneira o que S. Paulo afirma no capítulo nono.
Ele diz: "Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra?" (9.21). Em seguida, ele completa: "Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita LONGANIMIDADE os vasos da ira, preparados para a perdição?" (9.22). Ora, se Deus preparou vasos de ira para serem vasos de ira, não é de se esperar que ele os suporte "com muita longanimidade". Somente suportamos com muita paciência aquilo que contraria a nossa vontade. 
São Paulo fala sobre o endurecimento do coração como sentença de morte aplicada aos judeus que não creram (11.7). Eles são chamados de ramos quebrados da oliveira (11.17). Aos gentios que creram, São Paulo os chama de ramos de oliveira brava, que foram enxertados no lugar dos ramos quebrados. Depois afirma que esses mesmos judeus, que foram arrancados da oliveira, poderão ser enxertados de novo (11.23). Se foram preparados para a perdição eterna, como é que S. Paulo afirma que poderão vir a crer e ser enxertados novamente? Por outro lado, se os gentios crentes foram predestinados à salvação eterna, qual é o perigo que S. Paulo lhes apresenta de serem extirpados da oliveira (11.21)? De acordo com a doutrina da dupla predestinação, jamais um predestinado poderia ser extirpado, nem um réprobo enxertado de novo.
Com certeza S. Paulo escreveu esses capítulos após estudo de Isaías 45. Há muita semelhança entre o capítulo nono da carta aos romanos com esse texto do profeta. Pois no mesmo texto de Isaías, Deus clama: "Olhai para mim, e sede salvos, vós, TODOS OS TERMOS DA TERRA; porque eu sou Deus, e não há outro" (versículo 22). Novamente, Deus afirma sua graça universal, clamando a todos que olhem para ele (e isso só pode ser feito pela fé) e sejam salvos, indistintamente.
Portanto, este é o contexto que deve nos guiar, quando formos estudar os capítulos nono, décimo e décimo primeiro da carta de S. Paulo aos romanos: Israel se vangloriava de sua origem carnal, por ser descendente de Abraão. São Paulo vem advertir que Esaú também era descendente de Abraão e foi rejeitado por Deus. Portanto, não basta ser descendente de Abraão segundo a carne, é necessário crer. O que o povo de Israel rejeitou, ou seja, a salvação revelada em Jesus Cristo, os gentios vieram a aceitar, pela fé. Por isso, Deus deixou Israel. E quando Deus deixa, é certo que o coração se endurece de vez. No entanto, São Paulo ainda acena para a possibilidade de o povo de Israel vir a crer em Jesus Cristo e ser novamente aceito.
Também S. Paulo deixa claro que a salvação humana se dá pela fé na Palavra de Cristo. Os defensores da dupla predestinação parecem pular o capítulo décimo, que fala do anúncio do Evangelho como forma de suscitar a fé. Eles negam a necessidade dos meios da graça para outorga da fé, como, por exemplo, o uso salvífico do Batismo infantil. Basta uma criança ter sido predestinada à salvação que tudo está resolvido, com ou sem Batismo. Se, porém, uma criança não foi predestinada à salvação, de nada vale seu Batismo. Com isso, não é possível crer no Batismo, nem na Promessa contida nele. Igualmente com relação à Pregação do Evangelho. Ela é meio pelo qual Deus suscita a fé no coração dos predestinados, dizem. Ora, se Deus quer operar a fé através do Evangelho somente no coração dos predestinados, em última análise, não é o Evangelho que suscita a fé, mas a predestinação, baseada na qual o Espírito Santo age secretamente. Se é assim, São Paulo deveria, então, afirmar que a fé vem pela predestinação, não pela Pregação (10.17), ainda que um convite tenha que ser formalmente realizado. A Pregação do Evangelho se torna, então, mero convite, proclamas de casamento ou menos ainda. Cadê o poder de Deus que está em seu Evangelho?
Deus não salva o homem através de suas obras, mas unicamente através da fé, que ele mesmo opera misericordiosamente no homem. Quando S. Paulo diz que Deus usa de misericórdia com quem quer e endurece a quem lhe apraz, é importante que entendamos que Deus quer agir misericordiosamente com todos, embora possa endurecer a quem resiste obstinadamente à sua graça. Esse endurecer não é forçar ao pecado, mas deixar o pecador seguir seu próprio caminho de obras, pecado e desgraça. Ainda assim, São Paulo não deixa essa situação como definitiva, pois logo após falar de endurecimento, ele fala sobre a possibilidade de Deus enxertar de novo os ramos que havia cortado, caso viessem a crer. 
Ao ler sobre vasos preparados para desonra, é inevitável lembrar de um outro texto de S. Paulo em que ele fala de utensílios de desonra de maneira mais clara: "Ora, numa grande casa não há somente utensílios de ouro e prata; há também de madeira e de barro. Alguns, para honra; outros, porém, para desonra. Assim, pois, se alguém a si mesmo se purificar destes erros, será utensílio para honra, santificado e útil ao seu possuidor, estando preparado para toda boa obra" (1 Timóteo 2:20-21). São Paulo então diz que um vaso de desonra poderá tornar-se vaso de honra, através da justificação, que é pela fé. Deus não prepara um vaso para desonra com o intuito de deixá-lo eternamente assim. Esse Deus eu desconheço, sinceramente.
Concluindo, é próprio do homem resistir a Deus, devido ao seu pecado. Deus primeiro revela ao homem a dimensão de seu pecado, confrontando-o com a Lei. Nesse momento, o homem diz: "Eu não careço de misericórdia, porque sou bom". Caso alguém se curve perante Deus, reconhecendo seu pecado e precariedade, Deus imediatamente lhe oferece o socorro do Evangelho, da graça, da fé, para reerguê-lo. Mas ainda o homem tapa os ouvidos e diz: "Eu não acredito nessa misericórdia. Meu pecado é muito grande!". Alguns poucos, porém, vão-se deixando conduzir por Deus, passando por todas as etapas até chegar à fé. 
É no Deus que age assim que eu creio. Qualquer problema que ocorre entre o anúncio da Lei e a outorga da fé deve ser atribuído unicamente ao homem, não a Deus; nunca! Seja lá o que for predestinação, ela não poderá remover de mim a certeza que Deus é amor e jamais, sob hipótese alguma, será encontrado ódio ou falsidade em sua natureza (1 João 1:5).
Pronto! Agora sinto que posso virar esta página de minha vida e prosseguir. Não quero nunca mais voltar a esse assunto. Basta para sempre!

Lutero: "É perigoso querer perscrutar e compreender a divindade nua sem o mediador Cristo, pela razão humana, como o fizeram os sofistas e monges e como o ensinaram outros. A Escritura diz: "Não me verá o homem, e viverá"; e a fim de evitarmos tal perigo, foi-nos dado o Verbo encarnado, colocado num presépio e suspenso na madeira da cruz. Este Verbo é a Sabedoria e o Filho do Pai, e nos revelou qual é a vontade do Pai conosco. Aquele que, tendo posto de lado este Filho e segue suas cogitações e especulações, este se escondeu da majestade de Deus e desespera".





Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagens extraídas da internet.


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