terça-feira, 16 de agosto de 2016

FÉ: OBRA HUMANA OU DIVINA?

"E é evidente que, pela Lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé" (Gálatas 3:11).


A doutrina central do cristianismo é a justificação somente pela fé, sem a participação das obras. Cremos que somos declarados justos por Deus no momento em que cremos nele, o que chamamos de justificação. Nenhuma obra anterior ou posterior à fé colabora em nossa justificação. É Deus quem imputa ao homem a perfeita Justiça de Cristo, tornando-o tão justo quanto o próprio Cristo. Isso Deus concede ao que crê em Jesus Cristo, sem participação de qualquer obra humana. A fé também é dom de Deus, algo que nos é concedido através do Evangelho. Sob hipótese alguma o homem irá crer sem a mediação do Evangelho, que traz consigo o Espírito Santo, que opera a fé em nosso espírito. Esta é a doutrina da justificação somente pela fé, sem obras.
Com isso estamos negando a relevância das obras? Sim, estamos negando no que concerne à justificação e salvação. Aqui as obras são absolutamente inúteis. Não há livre-arbítrio, vontade, mérito, nada que nos predisponha à justificação. Também negamos que a fé seja uma obra humana; é uma obra divina no homem. A fé é concedida por Deus ao homem, através do Evangelho. Destarte, ninguém é justificado e salvo pela pregação da Lei, mas tão somente pela pregação do Evangelho, que traz consigo o Espírito Santo, que é o criador da fé. 
O objeto da fé é o Evangelho ou Cristo. A fé apropria-se de Cristo e torna-o nosso. É assim que recebemos a Justiça de Cristo e somos salvos COM ele. Lutero afirmou o seguinte: "A fé, portanto, justifica porque se apropria e se apossa desse tesouro, a saber, do Cristo presente (...). Cristo forma e impregna a fé (...) ele é a forma da fé" (Comentário da Epístola aos Gálatas. Tradução: Prof. Paulo Flor).
Quando então vêm as obras? Elas vêm como consequência da fé. Só são aceitáveis a Deus quando realizadas pela fé. Portanto, é necessário crer e ser justificado por Deus primeiro, para depois praticar obras aceitáveis a Deus. O inverso é condenado por S. Paulo, em que devemos praticar boas obras para merecermos a graça da fé. Qualquer obra, por mais excelente que pareça, se praticada sem fé e sem justificação, é abominável a Deus.
É sobre essa doutrina que S. Paulo está tratando em toda a epístola aos Gálatas. Sem a doutrina da justificação somente pela fé, o cristianismo se degenera em judaísmo, muçulmanismo, platonismo e aristotelismo. 
Lutero dizia que esta doutrina é fácil de ser entendida, fácil de ser confessada, mas muito difícil de ser colocada em prática, porque nossa razão pervertida sempre quer colaborar com nossa justificação. Eu mesmo ando assustado com o que tenho visto entre cristãos os mais ortodoxos, que estão transformando a fé em obra e estão apoiando sua justificação nessa obra. É sobre isso que desejo tratar neste texto. 
O que é uma obra? Obra é tudo aquilo que é realizado pelas habilidades humanas. Chamamos de obras às esmolas, orações e jejuns. Tudo isso é feito com ou sem fé, por nossas próprias habilidades. Quando realizadas por fé, são aceitas por Deus como coisas santas. Quando realizadas sem fé, são rejeitadas por Deus como rebeldia contra ele e hipocrisia. Portanto, uma mesma obra pode ser santa ou abominável, a depender da presença ou ausência de fé. 
No Decálogo encontramos diretrizes perfeitas para a realização de boas obras, que se resumem em amar a Deus e amar ao próximo. Todavia, o homem só cumpre o Decálogo a partir do momento em que crê. Sem a fé, até o Decálogo se torna um manual para obras exteriores, hipócritas e abomináveis perante Deus. 
Tudo o que o homem faz sem fé e sem Cristo é rebeldia contra Deus, ainda que pareça muito bonito aos olhos humanos e melhore a situação de muita gente. Quando o homem faz qualquer obra sem fé e sem Cristo, ele está querendo ser o seu próprio mediador, seu próprio Cristo. Em outras palavras, ele está querendo ser Deus. É o antigo veneno que herdamos de Adão e Eva. 
Portanto, uma mesma obra pode ser fruto da razão e pecaminosa, ou fruto da fé e santa. Uma mesma obra! Mas fica estabelecido que obra é tudo aquilo que é operado pelas habilidades humanas.
Bem, o intelecto é uma habilidade humana. Aqui reside o perigo. Porque o intelecto pode fabricar uma pseudofé ou uma fé histórica, passível de ser ensinada e aprendida, que pode ser transmitida por via oral ou documental. Tem muita gente que acha que fé é um livro, um catecismo, a ortodoxia ou uma confissão de fé. Vez ou outra alguém diz: "Cada qual tem sua fé e eu a respeito". Na verdade, essa pessoa está se referindo a determinada teologia ou confissão de fé, que está erroneamente chamando de fé. 
Então o que é fé? Para começar, fé é uma só: "há um só Senhor, uma só fé, um só batismo" (Efésios 4:5). Embora haja diversas confissões de fé e teologias dentro da cristandade, há somente uma fé, que irmana a todos os cristãos. Fé é algo que se tem ou não se tem. Se ela está presente, há plena justiça e salvação. Se ela não está presente, há somente hipocrisia, judaísmo e muçulmanismo. 
A fé é obra exclusiva de Deus: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus" (Efésios 2:8) e "olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus" (Hebreus 12:2). Deus Espírito Santo é quem opera a fé no homem, através da pregação do Evangelho. Não existe fé sem a mediação do Evangelho, conforme aprendemos abundantemente de S. Paulo, como no texto a seguir: "Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura, o faz pelas (ex) obras da lei ou pela (ex) pregação da fé?" (Gálatas 3:5). 
A pregação do Evangelho traz consigo o Espírito Santo, que opera a fé no coração. Essa fé, por sua vez, tem um objeto, que é o próprio Evangelho. Portanto, o Evangelho traz consigo o Espírito Santo, que opera a fé no Evangelho.
O que é o Evangelho? Aqui não podemos colocar nosso catecismo ou confissão de fé. O Evangelho é a Promessa de remissão gratuita de pecados ao que crê. O Evangelho é algo eterno. O Evangelho é o próprio Cristo, que é a Promessa de Deus. 
Também aprendemos com S. Paulo que a fé não é obra do intelecto, mas obra de Deus, que ocorre no espírito: "Porque com o coração (kardia) se crê para justiça" (Romanos 10:9). Portanto, não busque sua fé em seu intelecto, mas no coração, na alma, no espírito. 
Não podemos simplificar o conceito de fé. É algo por demais sublime! Assim como não conhecemos a natureza de nosso espírito e onde se encontra ele, também não conhecemos a natureza da fé. Podemos conhecer os seus frutos, mas não a sua essência. Fé é algo sobrenatural ou místico. Somente algo sobrenatural ou místico pode apreender a Promessa de Deus, que é Cristo. Somente algo sobrenatural ou místico pode comungar a essência de Cristo, que é sumamente sobrenatural e mística. Nenhuma mente pode compreender quem é Cristo. O espírito, porém, captura Cristo, através da fé. Então tudo o que pertence a Cristo é transmitido ao seu portador. Isto é ser justificado (ou tornado justo) através da fé.
É claro que a fé terá seus frutos, porque é portadora de Cristo e Cristo não descansa. Ela misteriosamente opera através de nossas habilidades, santificando nossas obras. Como disse Lutero: "Não devemos, portanto, duvidar que o Espírito Santo habita em nós, mas devemos admitir firmemente e reconhecer que somos 'santuário do Espírito Santo', como afirma Paulo. Pois se alguém sente amor pela Palavra e com prazer ouve, fala, pensa, leciona e escreve a respeito de Cristo, este deve saber que isso não é obra da vontade humana ou da razão, mas é dom do Espírito Santo, pois é impossível que essas coisas aconteçam sem o Espírito Santo" (Comentário da Epístola aos Gálatas). A fé opera através de nossa razão ou intelecto, através de nossa vontade, de nossos membros. Enfim, opera através de todas as habilidades humanas, de maneira a gerar OBRAS agradáveis a Deus. Uma dessas OBRAS é a teologia. Igualmente são OBRAS da fé os credos, catecismos, ortodoxia e confissões de fé. Toda essa papelada que nos acompanha, que estudamos, aprendemos, ensinamos e defendemos são OBRAS ou frutos da fé. Transformamos fé em obra, algo divino em algo humano, Evangelho em Lei toda vez que confundimos fé com teologia, credos, catecismos, ortodoxia e confissões de fé.  
Então você é contra a teologia, credos, catecismos, ortodoxia e confissões de fé? Sim, a partir do momento em que todas essas OBRAS substituem o Evangelho ou Cristo. Sim, toda vez que sua compreensão substituir a verdadeira fé em Cristo.
Se a fé for a aceitação intelectual de uma teologia ou de uma só doutrina, então a fé é obra. Vou além: se minha justificação decorrer dessa minha "fé" em uma teologia ou em uma só doutrina, então sou justificado por uma obra. 
É assim que escorregamos facilmente da justiça da fé para a justiça das obras, quando começamos a atribuir a justificação e salvação a determinada confissão, ameaçando com o inferno quem confessa coisa diferente. 
Quer ser justificado por obra aquele que atribui sua justificação ao fato de ser fiel ao catolicismo romano. Quer ser justificado por obra aquele sectário que espera ser justificado por "crer" em determinada confissão de fé.
Pessoas que assim "creem" gostam de trovejar contra os "papistas" e contra os "protestantes", ameaçando-se mutuamente com a condenação do inferno, repousando seguras sobre a justiça precária de suas confissões e em uma "fé" histórica ou intelectual. Assumem a postura inflexível própria dos moralistas, que decaíram da verdadeira fé.
Desgraça pouca é bobagem, vejo também que muitos não só querem transformar sua teologia em Evangelho, sua intelectualidade em fé, buscando na intelectualidade sua justiça e condenando ao inferno quem pensa diferente, como também estão agregando à sua teologia elementos não teológicos, como temas da sociologia e filosofia. Você já deve ter visto cristãos sendo ameaçados com a condenação do inferno por serem socialistas. Desde quando é impossível crer em Jesus e ser socialista? Por acaso não pode a verdadeira fé santificar todas as coisas, até o socialismo? Quer dizer que a justiça consiste em opor-se ao socialismo? Sim, o critério usado para condenar pode ser usado, inversamente, para justificar. 
Ah, meus amigos, não queiramos reduzir a essência da fé a tal ponto! Quero concluir que sou justificado somente pela fé. Essa minha fé não é obra do meu intelecto, mas obra de Deus. Fosse obra minha, já não seria justificado pela fé, mas por uma obra. O objeto da fé não é um livro, mas o próprio Cristo. Por isso, a fé não pode ser ensinada ou aprendida. Confesso também que somente a fé é capaz de apropriar-se de Cristo e de sua Justiça, tornando-nos possuidores desse Cristo e de sua Justiça. A partir de então as verdadeiras obras aparecem, como frutos santos de uma árvore santa, como obras do próprio Cristo, pois quem assim crê está preenchido por Cristo e Cristo vive nele e opera através dele. 
Confesso igualmente que ninguém é salvo pelo que pensa e que ninguém é condenado pelo que não pensa, ou vice-versa, mas que todos somos salvos pela fé em Cristo e condenados pela incredulidade. 
A fé é uma só e é o elemento unificante da Igreja, que é um mosaico de teologias, catecismos e confissões de fé. Somente essa fé estabelece o cristianismo autêntico, não o papa, não o catecismo, não a ortodoxia, não a confissão de fé. 

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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