quarta-feira, 13 de julho de 2016

OLHOS NO ESPELHO

"Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros" (Romanos 7:22-23).


Há diferentes maneiras de dividir o homem, seguindo o padrão bíblico. O ser humano consiste em corpo e alma ou em corpo, alma e espírito. Encontramos nas Escrituras respaldo para as duas divisões da humanidade. É importante ressaltar que o homem é corpo e alma (ou corpo, alma e espírito). Não podemos afirmar, com base nas Escrituras, que uma alma seja homem, da mesma maneira como não chamamos um cadáver de homem. O ser humano é substancialmente corpo e alma ou corpo, alma e espírito, como queira. Ninguém olha para um cadáver e diz: ali está o homem, mas diz que ali está o corpo de um homem. 
Além dessa divisão do homem no que tange à sua essência, há uma outra: o homem é carne e espírito. Carne refere-se ao pecado inato, espírito refere-se à justiça adquirida. Essa divisão não é substancial, porque o pecado está no homem como acidente. Não é uma divisão do homem, mas do homem caído. Portanto, é uma divisão de interesse mais soteriológico que antropológico. 
Lutero trabalha muito essa divisão da humanidade caída. Toda vez que cita carne e espírito em seus textos, é nisso que ele está pensando. Também nos ensina a distinguir dessa maneira ambas as palavras sempre que forem colocadas em oposição nas Escrituras. 
Carne e espírito abrangem o ser humano como um todo: corpo e espírito, todas as suas faculdades, tudo o que ele é substancialmente, enquanto homem caído.
Carne (no grego, sarx) refere-se ao pecado que herdamos de Adão. É a inata rebeldia contra Deus, presente em absolutamente todo o nosso ser. Não praticamos nenhuma obra isenta de carne, ainda que sejamos os cristãos mais devotos do mundo, ainda que nossa obra seja tão esplendente quanto o martírio. Não há nada no homem que esteja livre do pecado de Adão. Por isso, ninguém pode apresentar uma obra perfeita a Deus. Igualmente, ninguém está imune ao erro, nem mesmo os apóstolos, pais e doutores da Igreja, como Lutero tanto enfatiza. A carne é a principal razão de não sermos justificados por nossas obras, visto que não está em nosso poder removê-la de tudo quanto fazemos, pensamos e somos. É por causa da carne que não temos absolutamente mérito algum perante Deus. A carne "é o pecado que habita em mim", nas palavras de S. Paulo. Lutero também designa a carne de homem exterior, seguindo Santo Agostinho.
Por que carne? Penso que a palavra carne tenha sido escolhida para designar pecado por ser algo amplamente visível. De fato, nosso pecado está sempre patente diante de nossos olhos a nos frustrar. Não precisamos de fé para chegarmos à conclusão que somos miseráveis pecadores. A razão simples tem trazido os homens a essa conclusão, sem necessidade das Escrituras. É por causa da percepção da carne que o homem é tão infeliz. 
Quanto ao espírito (no grego, pneuma), ele refere-se ao homem criado pelo Espírito Santo. Como disse Jesus a Nicodemos: "O que é nascido da carne (sarkos) é carne (sarx); e o que é nascido do Espírito (Pneumatos) é espírito (pneuma)" (São João 3:6). É a nova vida dada por Deus ao homem caído, que também é chamada de regeneração, nascer de novo, novo homem, novidade de vida, mente (noos), renovação da mente (noos) e homem interior (eso anthropon).
O espírito é a fé no Evangelho criada pelo Espírito Santo. Espírito é também a justificação, em que Deus declara o homem justo, imputando-lhe a justiça de Cristo. Deus declara que o homem é tão justo quanto Cristo ou une o homem a Cristo numa só pessoa. Portanto, espírito é Cristo em nós, apropriado pela fé. 
Ora, se Cristo está em nós, temos todos os seus méritos, tudo o que ele é. Isso é espírito.
A palavra espírito (pneuma) denota invisibilidade. É que a justiça cristã está oculta no Céu. Enxergamos com facilidade a carne, mas não o espírito. O espírito ganha visibilidade conforme crescemos na fé.
Deduz-se então que nem todo homem é carne e espírito. Por isso é que afirmei que essa divisão humana não é antropológica. Quem não crê, não tem a justiça de Cristo e é puramente carne. Quanto ao crente, ele é concomitantemente carne e espírito. 
O homem que crê é espírito em construção e carne em degeneração. Conforme o espírito vence a carne, ele vai ganhando corporalidade e começa a tornar-se visível. Entrementes a carne vai perdendo sua corporalidade e começa a ocultar-se, tornando-se igualmente matéria de fé. 
Mas veja bem: a carne continuará existindo em nós até o dia da ressurreição dos mortos. Ninguém conseguirá em vida exterminá-la por completo. Ainda que sua fé o faça transportar montes, não se esqueça que ainda é carnal.
Muitos não conseguem mais enxergar sua carne, por serem muito espirituais. Não enxergando a carne, deixam de crer na sua existência, quando são mortalmente atacados por ela, tornando-se presunçosos. Passam a depositar a confiança em suas obras e tornam-se juízes dos outros.
É por isso que a pregação da Lei continua tendo grande serventia aos cristãos verdadeiros. O espírito está absolutamente livre da Lei e desfruta a justiça perfeita de Cristo. A Lei não tem poder algum sobre o espírito, não é sua instrutora, muito menos sua senhora. Ela é o instrumento que o espírito utiliza para combater a carne. Aliás, tudo o que o espírito tem para destruir a carne e ganhar espaço no homem é a Lei. Caso nos tornemos espirituais o bastante para não enxergarmos mais nossa carne, devemos investir contra ela com a Lei: "Não cobiçarás". Se ela ainda permanecer oculta, devemos recorrer a outra Lei mais rigorosa: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força". Então veremos que ainda somos carnais e que há muito a ser destruído.
Hoje estou completando trinta e seis anos de vida e ponho-me a meditar: quanto espiritual já sou? Como já afirmei em textos anteriores, percebo o quanto sou espiritual quando identifico com nitidez minha carnalidade. Quanto mais pecador me sinto, quanto mais derrotado e vil me identifico, mais percebo que sou espiritual. Naqueles dias em que chego em casa abatido por causa de meus pecados e deito-me na cama triste, choroso, com o olhar cansado voltado ao crucifixo, então sou consolado pela consciência de ser um pouco mais espiritual que antes. Por outro lado, quando começo a me sentir livre da carne, então me perturbo, porque sei que ela está me conduzindo à soberba. Nessas horas eu recorro à Lei e a utilizo para ferir minha carne, dizendo a mim mesmo: Vem e obedece a esta Lei, se de fato és espiritual: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força". Essa Lei é o pior dos chicotes. 
Consola-me saber que um dia eu não serei mais carnal. Enquanto esse dia não chega, não permitirei ser iludido por minha carne. Toda vez que me sentir muito santo, quero dar ouvidos ao Jesus que pergunta três vezes: "Você me ama com o amor perfeito (Agape)?". Então responderei com S. Pedro: "Eu o amo com um amor deficiente e carnal (Philia)". Essa é a minha prece no dia de hoje.

"Assim, pois, se olharmos para o pecado, somos pecadores, se olharmos para o Espírito somos justos. E, desse modo, em parte somos pecadores e, em parte, somos justos" (Lutero).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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