sábado, 30 de julho de 2016

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 2



João Calvino (1509-1564) foi um teólogo humanista, de extraordinária inteligência e disciplina, que sistematizou a doutrina cristã de maneira similar ao que fez Tomás de Aquino. À sua teologia sistemática deu o nome de Institutas da Religião Cristã.
Como humanista, Calvino não conseguia ater-se à interpretação literal da Escritura, porque soava irracional e absurda muitas vezes. Por outro lado, não ousou ir contra os Pais da Igreja. Para um humanista, a filologia é muito importante. Portanto, Calvino deu muito mais valor ao que ensinaram os Pais da Igreja que o próprio Lutero.
Também buscou harmonizar entre si doutrinas contraditórias à razão humana. O resultado de seu trabalho é uma teologia extremamente lógica, de natureza escolástica, perante a qual a teologia luterana não poderia subsistir.
Sobre a Eucaristia, Calvino queria manter a presença do corpo e do sangue de Cristo nos elementos, porque assim ensinaram os Pais, mas é evidente que não acreditava nisso. Seu pensamento era essencialmente zwingliano. Para ele, pão e vinho são símbolos ou representações do corpo e do sangue de Cristo. Entretanto, a opinião dos Pais da Igreja não poderia ser desprezada e claramente opunha-se ao zwinglianismo.
Então estabeleceu uma interpretação que preservava o zwinglianismo, por mais que os calvinistas hoje recusem isso, mas oculto nas palavras da Instituição e nos ensinos dos Pais. Sua doutrina sobre a Eucaristia lhe permitia citar livremente os Pais da Igreja, embora não em seu sentido correto, obviamente.
Para Calvino, o pão consagrado continua pão e o vinho continua vinho. São representações ou símbolos de Cristo. Para ele, o homem Jesus Cristo não se encontra neste mundo, no altar, nas mãos do ministro, nem na boca do comungante, mas está em um lugar chamado Céu, de maneira local ou circunscrita. Nenhuma novidade em relação a Zwínglio. Todavia, não negou que quem recebe o pão também recebe o verdadeiro corpo de Cristo e que quem recebe o vinho igualmente recebe o verdadeiro sangue de Cristo, parecendo concordar com os Pais da Igreja. Havia, porém, um detalhe: o corpo e o sangue de Cristo não estão inclusos nos elementos, mas estão no Céu. Para ele, a Eucaristia é uma comunhão espiritual do crente com o corpo e com o sangue de Cristo, que estão no Céu. Os elementos são meros sinais de uma bênção secreta, operada pelo Espírito Santo. 
Vejo platonismo nessa visão, porque Calvino separou o mundo sensível, onde estão os elementos eucarísticos, do mundo das Ideias, onde estão o corpo e sangue de Cristo. O mesmo ele fez na eclesiologia, ao distinguir a Igreja Visível da Igreja Invisível.
Portanto, sua visão não é puramente bíblica, mas filosófica. Se Tomás de Aquino usou a filosofia de Aristóteles para explicar a presença de Cristo na Eucaristia, Calvino utilizou Platão.
Para Calvino, o ímpio não recebe o corpo e sangue de Cristo, porque não crê. Em última análise, não é a Palavra de Deus que estabelece o sacramento, mas a fé de quem comunga.
Essa sua visão sobre a Eucaristia é muito plástica e aceita por verdadeira qualquer declaração sobre a presença real ou substancial do corpo e do sangue de Cristo na Eucaristia, embora não passe de zwinglianismo, por mais que seus adeptos o neguem. 
Foi então que muitos luteranos incautos passaram a adotar a doutrina eucarística de Calvino como sendo um desenvolvimento da doutrina luterana. Daí surgiu o criptocalvinismo, em que Calvino foi adotado secretamente pelos luteranos.
Na verdade, a interpretação calvinista da Eucaristia foi um desenvolvimento do zwinglianismo. Foi uma maneira de adequar Zwínglio aos Pais da Igreja, livrando-o da acusação de estar introduzindo doutrina nova.
Há, porém, algo que retira o criptocalvinismo das sombras: a liturgia. E é sobre ela que iremos falar na última postagem desta série.
Quero colocar alguns trechos das Institutas de João Calvino, que expõem sua visão sobre a Eucaristia: "Digo que Cristo é a matéria, ou, se preferes, a substância de todos os sacramentos, uma vez que nele eles têm toda sua solidez, e fora dele absolutamente nada prometem (...). Quando o pão nos é dado como símbolo do corpo de Cristo, imediatamente se deve imaginar esta similitude: como o pão nutre, sustenta, conserva a vida de nosso corpo, assim o corpo de Cristo é o alimento único para revigorar e vivificar a alma. Quando vemos o vinho proposto como símbolo do sangue, deve-se ter em mente quais benefícios o vinho traz ao corpo, para que reflitamos que os mesmos nos são espiritualmente conferidos pelo sangue de Cristo, a saber, alimentar, restaurar, fortalecer, alegrar (...). Digo, pois, que no mistério da Ceia, mediante os símbolos do pão e do vinho, Cristo se nos exibe verdadeiramente, e deveras seu corpo e sangue, nos quais cumpriu toda obediência, no interesse de conseguir nossa justiça, para que, com efeito, primeiro com ele nos unamos em um só corpo; então, feitos participantes de sua substância, em plena participação de todos os seus benefícios, também sintamos seu poder (...). Ora, pois, como estamos longe de disputar que, de conformidade com a perpétua consistência do corpo humano, o corpo de Cristo seja finito e se mantém no Céu, onde foi uma vez recebido, até que retorne para o Juízo, assim julgamos ser absolutamente absurdo trazê-lo de volta sob esses elementos corruptíveis ou imaginá-lo por toda parte presente. Evidentemente, tampouco isso se faz necessário para que dele usufruamos de participação, quando o Senhor nos prodigaliza este benefício através de seu Espírito: que nos tornamos com ele um só corpo, espírito e alma. Portanto, o vínculo desta conjugação é o Espírito de Cristo, de cujo nexo somos ligados e é como, por assim dizer, o canal pelo qual nos advém tudo quanto o próprio Cristo não só é, mas inclusive tem (...). Com efeito, se com os olhos e a mente somos alçados ao céu, para que ali busquemos a Cristo na glória de seu Reino, assim como todos os símbolos nos convidam a ele, assim também, sob o SÍMBOLO do pão, seremos alimentados de seu corpo, sob o SÍMBOLO do vinho nos será distintamente dado a beber de seu sangue, para que, enfim, usufruamos de todo ele integralmente (...). Não é Aristóteles, mas o Espírito Santo, que ensina que o corpo de Cristo, desde quando ressuscitou, é finito e está circunscrito ao Céu até o último dia (...). Uma vez que este seja um mistério celeste, não é necessário que Cristo seja trazido para baixo a fim de estar unido a nós (...). Objetam que os indignos não deveriam ter sido por Paulo feitos culpados do corpo e do sangue de Cristo, a menos que fossem participantes deles. Eu, porém, respondo que eles são condenados não porque comiam, mas somente porque profanavam o mistério, calcando aos pés o penhor da sacra união com Deus, que deviam receber reverentemente".
 


Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

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