sábado, 30 de julho de 2016

CRIPTOCALVINISMO E LITURGIA - PARTE 1

"Da Ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na Ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1530).

"No tocante à Ceia do Senhor, elas (isto é, nossas igrejas) ensinam que, com o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo são oferecidos aos que comem na Ceia no Senhor" (Confissão de Augsburgo, artigo X, versão de 1540).


Alguém consegue perceber qual a diferença entre as duas declarações acima? Não é coisa simples. Qualquer um concluiria que ambas as declarações afirmam a mesma coisa, com palavras diferentes. Ambas atestam que o corpo e o sangue de Cristo são recebidos por aqueles que participam da Ceia do Senhor. Ambas deixam claro que quem comunga o pão e o vinho eucarísticos comunga a substância de Cristo. Bem, para entender a diferença entre a versão de 1540 da Confissão de Augsburgo em relação à versão de 1530 terá que primeiro compreender a visão verdadeiramente luterana a respeito da Eucaristia e a visão calvinista. Quem não dominar ambas as visões, que são muito diferentes, não conseguirá perceber diferença alguma.
Lutero ensinava que as palavras de Cristo "isto é o meu corpo" e "isto é o meu sangue" deveriam ser interpretadas de maneira literal, ao pé da letra. A palavra "isto" (touto) refere-se ao que Jesus segurava em suas mãos, um pão. No entanto, ele chamou aquele pão de seu corpo e deu-o aos seus discípulos. Também refere-se ao cálice de vinho, que ele apresentou como seu sangue e deu aos discípulos para que o bebessem. Lutero teria crido que seus olhos e paladar o enganavam e preferiria afirmar que não mais existiam pão e vinho, mas somente corpo e sangue, não fosse a explicação clara de S. Paulo a respeito. São Paulo deixa claro que a substância do pão e do vinho permanecem (1 Coríntios 10:16-17 e 1 Coríntios 11:26-28). Engana-se muito quem afirma que Lutero concluiu racionalmente que pão e vinho permanecem. Não, ele foi bíblico. Não fosse a intervenção de S. Paulo, ele teria aderido ao ensinamento de Roma que o pão se transforma em corpo e que o vinho se transforma em sangue, pois violentamente ele costumava agredir sua razão com o azorrague da Escritura. Sola Scriptura!
Lutero professava que a substância do corpo de Cristo une-se à substância do pão de maneira milagrosa, sobrenatural ou celeste. Não propôs nenhuma explicação a respeito. Também professava a união da substância do sangue de Cristo ao vinho de maneira milagrosa, sobrenatural ou celeste. A isso ele chamou de União Sacramental. Para que não distorcessem seu pensamento, ele chegou a ponto de afirmar: "Por isso os fanáticos e a glosa no Direito Canônico procedem mal ao criticarem o papa Nicolau por haver forçado a Berengário a confessar que ele tritura e mastiga com os dentes o verdadeiro corpo de Cristo. Quisera Deus que todos os papas tivessem agido de maneira tão cristã em todas as questões como esse papa agiu
com Berengário nessa confissão" (Confissão da Ceia de Cristo). Pouca importância Lutero deu à questão se o corpo e sangue de Cristo estão presentes de maneira local ou não no pão e vinho, se ocupam espaço ou não. Para ele, o importante é que se mantenha a verdade que o corpo e sangue de Cristo estão substancialmente no pão e no vinho, no altar, nas mãos do ministro e na boca dos comungantes.
Ele acreditava que o corpo de Cristo e o sangue de Cristo estão presentes junto ao pão e ao vinho mesmo na boca de um ímpio. Não condicionou essa presença mística à fé do comungante, igualmente seguindo à Escritura: "Por isso, aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor, indignamente, será réu do CORPO e do SANGUE do Senhor" (1 Coríntios 11:27). Quem peca contra o pão não peca contra a pessoa de Cristo, mas especificamente contra seu corpo. O mesmo raciocínio é válido para o vinho. "Pois Paulo não diz: Quem comer este pão indignamente, este é réu de Cristo (...), do modo como se torna culpado diante do rei quem zombar de sua imagem. Pelo contrário, S. Paulo indica que a culpa acontece em relação àquelas partes de Cristo às quais se igualam pão e vinho e das quais são sinais, ou seja, é réu do corpo e sangue (...). S. Paulo (...) diz que se peca contra as partes, ou seja, contra corpo e sangue de Cristo. Isso é uma ofensa mais íntima e mais grave do que [pecar] contra a majestade e autoridade de Cristo" (Confissão da Ceia de Cristo).
Lutero insistia que o milagre ocorre graças à Palavra de Deus, que tudo pode. Aquilo que Deus promete é cumprido, por mais absurdo que pareça. Não condicionou esse milagre à fé de ninguém.
Todavia, não desprezou a fé e posicionou-se contra a doutrina do ex opere operato (1), porque acreditava que somente a fé apreende a Palavra de Deus e faz uso dela. O ímpio, embora receba em sua boca a substância do corpo e a substância do sangue de Cristo, recebem-nos para sua própria condenação. 
Em momento algum Lutero arriscou palpitar sobre quando é que a união sacramental ocorre ou deixa de ocorrer. Sola Scriptura sempre! Entretanto, por compreender que pão e vinho consagrados são coisas santíssimas, ordenou que todo o pão fosse consumido no altar, bem como todo o vinho. Que nada restasse do rito eucarístico! 
Lemos em Hermann Sasse: "Quanto ao próprio Lutero, não pode haver a mínima dúvida de que ele jamais limitou a presença real ao instante da distribuição e do recebimento. Nunca abandonou a ideia de que, pelas palavras da consagração, o pão e o vinho "se tornam" o corpo e o sangue de Cristo. De outro modo, nem a elevação, que foi usada em Witenberga até 1542, nem a adoração de Cristo, que está presente nos elementos, poderia ter sido justificada. Sempre considerou zwinglianismo (2) negligenciar a diferença entre uma hóstia consagrada e uma não consagrada, e sempre foi o costume da Igreja Luterana consagrar nova porção de pão ou vinho ou ambos quando se faz necessário mais do que se providenciou originalmente" (Isto é o meu corpo, Editora Concórdia). No rodapé, o seguinte comentário: "Em 1543, Lutero e Bugenhagen (WA Br. 10, Número 3888) deram sua opinião numa controvérsia quanto a se as hóstias consagradas podiam ser preservadas juntamente com as não consagradas para outra consagração. Lutero critica o costume. Nada dos elementos consagrados deve ser guardado, mas deve ser consumido".
Então perceba que a visão de Lutero é puramente bíblica. Não é uma visão racional da Eucaristia, mas puramente bíblica. É próprio do verdadeiro luteranismo voltar as costas à razão natural e simplesmente crer na absurdidade da Palavra de Deus. Em seus textos, sermões e aulas, Lutero não se cansa de xingar a razão, enaltecendo sempre o texto da Escritura. Uma de suas críticas mais acerbas à razão é esta: "Assim, a razão julga todos os artigos da fé, pois não entende que o supremo culto é ouvir a voz de Deus e crer. Mas ela supõe que aquelas coisas que ela mesma escolhe e faz com boa intenção e devoção particular, como dizem, agradam a Deus. Quando Deus, portanto, fala, a razão julga que sua palavra é heresia e palavra do diabo, pois lhe parece um absurdo (...). Essa luta, com certeza, travou a fé com a razão em Abraão, mas a fé, nele, venceu, destruiu e sacrificou aquela inimiga mais violenta e perniciosa de Deus. Assim, todos os piedosos que penetram com Abraão nas trevas da fé, matam a razão, dizendo: 'Tu, razão, és tola porque não cogitas das coisas de Deus, por isso, não me importunes, mas cala-te, não julgues, mas ouve a Palavra de Deus e crê" (Comentário da Epístola aos Gálatas).
Como você acha que soou a doutrina luterana sobre a Eucaristia, bem como o asco que Lutero tinha da razão humana depravada e rebelde contra Deus, entre os humanistas de seu tempo? Com que desprazer os humanistas ouviram e leram Lutero chamar a razão de feiticeira e até de diabo. 
No Colóquio de Marburgo, Lutero foi acusado de docetismo (3) por seus oponentes, que declararam o óbvio: que afirmar que o corpo de Cristo está contido no pão é o mesmo que declarar que seu corpo não é verdadeiramente humano. 
É certo que a visão luterana sobre a Eucaristia, verdadeiramente bíblica, não haveria de durar muito tempo, exatamente por conta do humanismo, que exaltava a razão humana e o entusiasmo.
De fato, não durou mais do que vinte ou trinta anos, como veremos nas postagens seguintes. 

(1)Ex opere operato é a doutrina da Igreja de Roma que ensina ser o sacramento sempre eficaz, independentemente da fé de quem o realiza e de quem o recebe.
(2) Zwinglianismo é a doutrina de Ulrico Zwuínglio, que ensinava serem o pão e vinho eucarísticos meros símbolos do corpo e do sangue de Cristo.
(3) Docetismo é a heresia do primeiro século que negava ser o corpo de Cristo verdadeiramente humano.

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.


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