Representação alegórica
da Santa Ceia ou Eucaristia luterana. O sangue de Cristo, que escorre de Suas
feridas na cruz diretamente para a fonte sobre o altar, simboliza a doutrina da
presença real: para a Igreja Luterana, o Cristo inteiro (corpo e espírito) está
presente no Sacramento da Eucaristia.
A
relação entre o Luteranismo e a mística sempre foi uma questão controversa,
indo desde a aceitação relativa até a rejeição completa. Essa ambiguidade
remonta ao pensamento do próprio Lutero, que, se por um lado criticou
abertamente luminares da mística cristã, como São Dionísio Areopagita e São
Boaventura [1], por outro foi responsável pela publicação e divulgação do
tratado místico conhecido como Theologia
Germanica. A presença de símbolos típicos da literatura mística medieval
também é um traço marcante nas obras do reformador. Por exemplo, nesse trecho do
Tratado sobre a liberdade cristã,
Lutero descreve a união entre Cristo e a alma nos termos de um “noivado
místico”, simbolismo constante na literatura cristã antiga e medieval desde a
época de Orígenes:
“[...] a alma é copulada com Cristo como a noiva com o noivo, sacramento
pelo qual (como ensina o apóstolo) Cristo e alma são feitos uma só carne. Sendo
eles uma carne, é consumado entre eles o verdadeiro matrimônio, sim, o mais
perfeito de todos, enquanto os matrimônios humanos são figuras tênues desse
matrimônio único. Daí se segue que tudo se lhes torna comum, tanto as coisas
boas quanto as más, de modo que a alma fiel pode apropriar e gloriar-se de tudo
que Cristo possui como sendo seu, e de tudo que tem a alma Cristo se apropria
como se fosse seu.” [2]
Como
se pode ver, o relacionamento de Lutero com o legado da espiritualidade
medieval era mais complexo do que se poderia imaginar à primeira vista. Longe
de querer fazer tabula rasa da tradição
mística católica-romana, seu objetivo era adaptar os símbolos e temas dessa tradição
para o contexto de uma espiritualidade que não fosse mais monástica e ascética,
mas que pudesse ser vivenciada em meio às preocupações mundanas. Para isso, em
contraste com o training espiritual
que caracteriza a mística católica-romana e ortodoxa, Lutero enfatiza a
simplicidade e a espontaneidade evangélicas. A ascese se concentra no “templo
interior”, morada do Espírito Santo, e não tem necessidade de se exteriorizar
por meio de votos monásticos, celibato, etc.. No
entanto, se Lutero abriu as portas para a possibilidade de uma mística
acessível a todo cristão de boa vontade, esses novos horizontes também trouxeram
consigo novos desafios. Afinal, se o monasticismo foi a instituição responsável
pela consolidação e florescimento da mística cristã, como seria possível que
ela se manifestasse fora dos muros dos mosteiros? Não podendo mais se amparar nas
práticas ascéticas que dão o tom da mística católica-romana, a espiritualidade
luterana se fundamenta na leitura bíblica, na oração e na participação na vida
sacramental da Igreja. Como já notamos acima, existe no Luteranismo uma
tendência ao despojamento, uma redução da espiritualidade ao seu núcleo essencial,
que também se manifesta na simplicidade dos suportes externos para o processo
de santificação. O
primeiro deles, a leitura bíblica, se mostra de forma evidente desde o início
da Reforma Luterana. Como se sabe, a leitura do texto da Epístola aos Romanos provocou um impacto duradouro na alma de
Lutero e estimulou o início de sua atividade reformadora. Muito mais do que um
compêndio de doutrinas, o texto bíblico, para ele, era fonte de profundas
intuições espirituais:
“Pois
o que para nós é ‘o bem’ está oculto, e tão profundo que vem a ficar justamente
debaixo do que é o contrário do ‘bem’. Assim, nossa vida está escondida sob a
morte, o amor a nós sob o ódio a nós, a glória sob a ignomínia, a salvação sob
a perdição, o reino sob o desterro, o céu sob o inferno, a sabedoria sob a
insensatez, a justiça sob o pecado, o vigor sob a debilidade. E assim, de forma
muito geral, toda nossa afirmação de um bem qualquer está oculta sob a negação
do mesmo, a fim de que a fé encontre seu lugar em Deus, o qual é de uma
essência, bondade, sabedoria e justiça totalmente distintas, e que não pode ser
possuído nem tocado por homem algum, a não ser que neguemos todas as nossas
afirmações. De tal sorte, ‘o reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido
no campo’ (Mt 13:14). O campo é algo que tem a ver com a sujeira. É o contrário
do tesouro, porque o campo é pisoteado, mas o tesouro é escolhido. E, não
obstante, o campo esconde o tesouro. Assim também a nossa vida ‘está escondida
com Cristo em Deus’ (Col. 3:3), ou seja, na negação de tudo quanto se possa
sentir, possuir e entender.” [3]
Nesse trecho, retirado do Comentário aos Romanos de 1515-1516, podemos ver como Lutero se apropria e transforma um dos temas mais importantes da mística cristã, a teologia negativa. Para ele, Deus só pode ser conhecido pela negação de todas as nossas afirmações. Porém, esse Deus absconditus não é a “divindade superior à divindade” de Dionísio Areopagita, o Deus inefável transcendente ao Ser e à linguagem. O “Deus oculto” é o Deus que se esconde sob o Cristo na cruz, que encobre a glória sob a ignomínia, o vigor sob a debilidade, a vida sob a morte. Toda a vida de Cristo na terra é uma ocultação de Sua glória, que só pode ser apreendida pela fé, a “negação de tudo quanto se possa sentir, possuir e entender”. Se o monge experimenta o contato íntimo com Cristo por meio de uma vida de privações, para Lutero a fé é suficiente para descobrir o Cristo glorioso por baixo do Cristo humilde e desprezado [4]. Daí a importância que a Bíblia assume na espiritualidade luterana: se a fé deve se apropriar do Cristo, a Escritura Sagrada é o lugar por excelência para encontrá-lo.
Segundo pilar, a oração, inclui não só as petições individuais, mas também as orações canônicas (o Pai Nosso e os salmos) e também as orações jaculatórias, que nunca deixaram de ter o seu lugar na prática espiritual luterana [5]. Nesses dois últimos casos, a oração não se articula a partir de palavras escolhidas a esmo pelo homem, mas a partir da linguagem do próprio texto sagrado ou a partir do nome divino, como acontece com a Oração de Jesus. Ocorre, assim, um descentramento, que é a grande vantagem das preces canônicas e jaculatórias em relação à prece individual: ao invés de se concentrar em seus próprios interesses particulares, o fiel permanece totalmente passivo diante da Palavra divina, disposto a ser moldado por ela.
Por fim, a terceira baliza da espiritualidade luterana é a participação na vida sacramental da Igreja. O Cristianismo não é uma religião individualista: o cristão é chamado a fazer parte da vida comunitária da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Como tal, a Igreja é também beneficiária da vida divina do Cabeça, a qual é distribuída aos fiéis por meio dos sacramentos [6]. Assim, no sacramento do batismo, o crente inicia sua vida cristã unindo-se ao Cristo; no sacramento da Santa Ceia, o crente consolida seu crescimento espiritual reafirmando essa união. Assim, a leitura individual da Palavra escrita, a Bíblia, é equilibrada pela participação na Palavra encarnada, a Santa Ceia.
É a partir desse tripé que a espiritualidade luterana se desenvolve e, com ela, a possibilidade da experiência mística, compreendida aqui como uma interpretação e uma vivência mais profundas da Bíblia, da oração e da vida na Igreja. Nos próximos posts dessa série, veremos como isso se realizou historicamente dentro do Luteranismo.
Nesse trecho, retirado do Comentário aos Romanos de 1515-1516, podemos ver como Lutero se apropria e transforma um dos temas mais importantes da mística cristã, a teologia negativa. Para ele, Deus só pode ser conhecido pela negação de todas as nossas afirmações. Porém, esse Deus absconditus não é a “divindade superior à divindade” de Dionísio Areopagita, o Deus inefável transcendente ao Ser e à linguagem. O “Deus oculto” é o Deus que se esconde sob o Cristo na cruz, que encobre a glória sob a ignomínia, o vigor sob a debilidade, a vida sob a morte. Toda a vida de Cristo na terra é uma ocultação de Sua glória, que só pode ser apreendida pela fé, a “negação de tudo quanto se possa sentir, possuir e entender”. Se o monge experimenta o contato íntimo com Cristo por meio de uma vida de privações, para Lutero a fé é suficiente para descobrir o Cristo glorioso por baixo do Cristo humilde e desprezado [4]. Daí a importância que a Bíblia assume na espiritualidade luterana: se a fé deve se apropriar do Cristo, a Escritura Sagrada é o lugar por excelência para encontrá-lo.
Segundo pilar, a oração, inclui não só as petições individuais, mas também as orações canônicas (o Pai Nosso e os salmos) e também as orações jaculatórias, que nunca deixaram de ter o seu lugar na prática espiritual luterana [5]. Nesses dois últimos casos, a oração não se articula a partir de palavras escolhidas a esmo pelo homem, mas a partir da linguagem do próprio texto sagrado ou a partir do nome divino, como acontece com a Oração de Jesus. Ocorre, assim, um descentramento, que é a grande vantagem das preces canônicas e jaculatórias em relação à prece individual: ao invés de se concentrar em seus próprios interesses particulares, o fiel permanece totalmente passivo diante da Palavra divina, disposto a ser moldado por ela.
Por fim, a terceira baliza da espiritualidade luterana é a participação na vida sacramental da Igreja. O Cristianismo não é uma religião individualista: o cristão é chamado a fazer parte da vida comunitária da Igreja, que é o Corpo de Cristo. Como tal, a Igreja é também beneficiária da vida divina do Cabeça, a qual é distribuída aos fiéis por meio dos sacramentos [6]. Assim, no sacramento do batismo, o crente inicia sua vida cristã unindo-se ao Cristo; no sacramento da Santa Ceia, o crente consolida seu crescimento espiritual reafirmando essa união. Assim, a leitura individual da Palavra escrita, a Bíblia, é equilibrada pela participação na Palavra encarnada, a Santa Ceia.
É a partir desse tripé que a espiritualidade luterana se desenvolve e, com ela, a possibilidade da experiência mística, compreendida aqui como uma interpretação e uma vivência mais profundas da Bíblia, da oração e da vida na Igreja. Nos próximos posts dessa série, veremos como isso se realizou historicamente dentro do Luteranismo.
Autoria: Rodrigo Moreira de Almeida.
NOTAS:
[1] Numa das Conversas à mesa, Lutero chama a
teologia mística de São Boaventura de “fantasia inútil”. Já a mística de São
Dionísio Areopagita é acusada de ser “uma mera fábula e mentira”.
[2] Obras selecionadas de Lutero, Vol. 2: o programa da Reforma:
escritos de 1520. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, p. 442.
[3] Comentarios de
Martin Lutero: Romanos. Barcelona:
Clie, vol. I, pp. 309-310.
[4] Podemos ampliar essa interpretação
a partir da referência de Lutero à parábola do “tesouro escondido” (Mt 13:14):
o campo representa a terra, que, na cosmologia antiga, era considerado o
elemento mais baixo e mais inferior. Entretanto, é dentro dele que está oculto
o tesouro, isto é, o ouro, o mais nobre dos metais e também um símbolo da
glória divina, que é descoberta pela fé. Por outro lado, essa analogia também corresponde
à tendência da espiritualidade luterana de buscar no mundo (e não fora dele) o
ouro escondido da santidade.
[5] O Pai Nosso e alguns
salmos são parte integrante da liturgia do culto luterano. Sobre as orações
jaculatórias, veja o texto de Carlos Alberto Leão sobre o terço luterano, neste mesmo
blog: http://itinerariodeumluterano.blogspot.com.br/2016/08/o-terco-luterano.html
.
[6] Embora não seja um
sacramento, a pregação pública da Bíblia também é um meio instituído por Deus
para dispensar Sua graça aos homens. Por esse motivo, a Igreja é definida no
artigo VII da Confissão de Augsburgo como “a congregação de todos os crentes,
entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são
administrados de acordo com o evangelho.”