sexta-feira, 14 de abril de 2017

O ESCÂNDALO DA MISERICÓRDIA

Há poucos dias o governo sírio cometeu outro atentado contra civis, em que de novo usou o gás sarin, matando muita gente e pior: seu próprio povo, o povo que devia proteger. Confesso que ao ver aquelas crianças mortas fui tomado de tamanha indignação que clamei a Deus por vingança, que não deixasse impune um crime tão bárbaro. 
Não sei se me arrependo por ter pedido isso a Deus. Não, não me arrependo e continuo desejando vingança.



Fato é que a vingança veio logo depois, por parte dos Estados Unidos. E eu senti prazer naquela revanche, porque de forma alguma poderia permanecer impune um crime como aquele. Considerei-a muito justa! 
De fato, a vingança é muito lógica e justa. É muito correto que cada qual pague por seu erro e que faça uma reparação à altura. Mesmo na Lei que Deus decretou a Israel percebemos a justiça sendo exercida pela vingança, das mais diversas maneiras, que podemos resumir com estas palavras: "Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe" (Êxodo 21:23-25).
Deus não é contra a vingança e a executa o tempo inteiro. Ele, inclusive, vale-se da lógica da vingança para exercer sua onipotência sobre os ímpios, pois é através da vingança humana que Deus vinga, depondo tiranos, permitindo que um ímpio mate outro ímpio, com o intuito de preservar a humanidade. Todos os dias presenciamos a vingança sendo exercida, embora somente os crentes saibam que Deus está por trás de tudo isso. O próprio inferno é a expressão máxima da vingança de Deus contra os maus. 
Seria muito ingênuo de nossa parte acreditar que nosso Deus não se vinga. "A mim me pertence a vingança, eu é que retribuirei" (Deuteronômio 32:35). Não fosse Deus vingador, no sentido de exercer a justiça, não teria havido encarnação, nem paixão, nem cruz, nem salvação. Portanto, deveria haver um temor no mundo ímpio em relação a esse Deus vingador, mas não há. Muito pelo contrário, o mundo se alegra e permanece seguro, como se não houvesse Lei, justiça e um Deus vingador. Enquanto isso, o braço invisível de Deus derruba governos, vinga os oprimidos e destrói os soberbos, os assassinos, aqueles que ameaçam a ordem pública e, por fim, condena ao inferno aqueles que não se arrependem. Parece que é o homem que se vinga e exerce a justiça, mas tudo isso procede da onipotência divina. 
A imagem do Deus vingador está incutida no pensamento humano. É uma imagem que causa temor e até terror na consciência, razão pela qual as religiões pagãs desenvolveram muitas obras com o intuito de apaziguar esse Deus e desviar sua vingança de nós.
É então que aparece Jesus, que nos revela algo novo acerca de Deus: ele é misericordioso. Embora o judaísmo e todas as religiões pagãs afirmem de Deus que ele é misericordioso, só os cristãos conhecem a dimensão dessa misericórdia, porque aqui Deus aparentemente luta contra a justiça, contra o que é correto e não vinga onde deveria vingar. De maneira que soa à razão humana que Deus está sendo injusto e transgressor da Lei. A razão humana encontra na misericórdia de Deus um enorme escândalo, porque a impunidade é algo injusto.
Nós, cristãos, sabemos que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Ele representa Deus perante os homens, assim como representa todos os homens perante Deus. Ensinamos que o homem Cristo assumiu todos os pecados da humanidade e foi punido por causa desses pecados, que não eram seus! Toda a vingança de Deus contra o pecado humano se voltou contra a pessoa de Cristo, que foi transformada por Deus em pecado. 
Então devemos perguntar: É lícito a Deus fazer isso? É uma manobra válida? Como pode Deus agir com justiça ao transferir os pecados de uma pessoa para a outra? Isso não soa justo e, com base na razão, não é. Ninguém consideraria justo que uma mãe fosse punida por crimes cometidos por seu filho, ainda que ela o desejasse do fundo do coração. Deus mesmo já havia se manifestado a respeito, com as seguintes palavras: "Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos, em lugar dos pais; cada qual será morto pelo seu pecado" (Deuteronômio 24:16). 



Cristo revela o significado profundo da Lei de Deus e da justiça, que está no amor. Ele ensina: "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas" (S. Mateus 22:37-40). 
Há quem pense que uma lei é cumprida quando uma regra ou preceito é cumprido. Os fariseus pensavam assim! Mas Cristo coloca o amor como verdadeiro cumprimento da Lei, estando acima de qualquer regra, preceito, texto ou ordem. O amor coloca a dignidade humana acima da letra, de maneira que colaborar com a preservação dessa dignidade nunca é errado, ainda que muitas regras sejam desobedecidas. Foi assim que Cristo cumpriu a Lei de Deus não cumprindo várias leis e passando por cima de muitos preceitos. Foi assim que o Pai passou por cima de sua Lei para, paradoxalmente, cumpri-la na carne de seu Filho. 
Quando se tenta cumprir a Lei sem amor, então ela é transgredida, ainda que visivelmente tudo transcorra de acordo com o que a regra estabelece. Se nos debruçarmos sobre várias passagens da vida terrena de Cristo, perceberemos facilmente que muitas vezes os judeus é que agiam de acordo com as regras e que Deus havia pecado. Entretanto, quando entendemos que sem amor não há justiça, concluímos que os judeus pecavam ao obedecer e que Deus cumpria a Lei ao transgredi-la, porque em seu coração há puro amor pelos homens e tudo o que fez e faz é para o verdadeiro bem do homem.
Se o amor cumpre a Lei invariavelmente, assim como a falta de amor sempre a transgride, que dizer da misericórdia? Porque a misericórdia é o extremo do amor. Misericórdia é o amor direcionado a quem não o merece, é todo dádiva, não envolve qualquer devolução ou permuta. Aliás, o amor é validado pela misericórdia! Só podemos dizer que amamos alguém quando esse amor tolera a fraqueza pessoal do outro, quando ele persiste diante da miséria do outro. Caso contrário, não é amor verdadeiro, mas uma ilusão. 
Sendo a misericórdia o extremo do amor, ela é o cumprimento máximo da Lei. É por isso que Cristo quer nos direcionar à misericórdia - e não à vingança - como o caminho para o cumprimento da Lei. Ele não nos pede um amor natural, mas o amor ao inimigo, que é misericórdia. Ele não quer que a mulher de má conduta seja punida com a morte, mas que seja perdoada, o que é misericórdia. Ele nos desafia a colocar a misericórdia acima do direito da vingança. Por fim, é misericórdia assumir voluntariamente todo o mal da vingança para isentar miseráveis indigentes dela. Foi isso o que Cristo fez por nós!
Aqui está o que há de mais santo e justo: assumir o mal da vingança com o intuito de proteger e salvar quem não tem condições de evitá-la. Se o amor cumpre a Lei, a misericórdia - que é o extremo do amor - cumpre maximamente a Lei, sendo que a misericórdia pode tudo e nunca erra. A misericórdia é o cumprimento abscôndito e perfeito da Lei, que o mundo e o diabo não conhecem e, por causa disso, crucificaram o Senhor da Glória. A misericórdia é a pedra na qual o diabo tropeçou para sempre!

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.



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