sábado, 4 de abril de 2015

Quia respexit humilitatem ancillae suae: ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes - Pois contemplou a humildade de sua serva. Por isso me considerarão bem-aventurada todas as gerações


"Alguns interpretaram a palavrinha humildade como se a virgem Maria tivesse apontado para a sua própria, vangloriando-se dela. Por isso, algumas pessoas de igreja também se chamam de "humildes", o que está muito longe da verdade. Diante de Deus ninguém pode vangloriar-se de alguma coisa boa sem cometer pecado e expor-se à perdição. Devemos envaidecer-nos tão somente de sua pura bondade e graça, que ele mostrou a nós, indignos (...). Ninguém, a não ser o mais arrogante, se considera humilde e se envaidece da humildade. Somente Deus conhece a humildade. Também só ele a revela e julga, de modo que a pessoa sabe menos da humildade quando ela é verdadeiramente humilde. 
Conforme a Escritura, "humilhar" significa "rebaixar", "anular". Por isso os cristãos são chamados, em muitas passagens bíblicas, de "gente pobre, sem valor, rejeitada"(...). Assim, a humildade nada mais é do que um estado ou uma condição de desprezo, insignificância e rebaixamento (...). A essa situação de rebaixamento nos referimos anteriormente quando dissemos que os olhos de Deus olham somente para baixo, enquanto os olhos humanos olham apenas para cima (...). Por isso, na Escritura, Jerusalém é chamada de lugar sobre o qual repousam os olhos de Deus. Isso quer dizer: a cristandade jaz no fundo do poço e é insignificante perante o mundo. Por isso, Deus volta seu olhar para ela e seus olhos repousam sobre ela constantemente (...). 
É uma característica de Deus olhar para as coisas insignificantes. Por isso traduzi a palavra humildade por "nulidade" ou "ser insignificante". Portanto, Maria quer dizer o seguinte: Deus olhou para mim, uma moça pobre, desprezada e insignificante. Ele poderia ter escolhido ricas, importantes, nobres e poderosas rainhas, filhas de príncipes e grandes autoridades (...). Porém ele olhou para mim por pura bondade e usou para esse fim uma moça humilde e desprezada. Diante dele ninguém deveria vangloriar-se de ter sido digno disso. Também eu tenho que confessar que se trata de pura graça e bondade. Não há merecimento ou dignidade nenhuma de minha parte.
Falamos antes suficientemente que a doce virgem, com seu ser e sua condição insignificante, mereceu a surpreendente honra do olhar de Deus em sua imensa graça. Por isso ela não se vangloria de sua dignidade, nem de sua indignidade, mas somente do olhar de Deus (...). Ela não se envaidece de sua virgindade, nem de sua humildade, mas unicamente da graciosa observação divina. Por isso a ênfase não está na palavrinha "humildade", mas em "contemplar". Não é sua humildade que deve ser louvada, mas a atenção por parte de Deus. Como quando um príncipe estende a mão a um mendigo: não se elogia a nulidade do mendigo, mas a misericórdia e a bondade do príncipe.
Vamos desfazer essa opinião falsa e saber distinguir a verdadeira humildade da falsa. Para isso queremos desviar um pouco do assunto e dizer algo sobre a humildade. Muitos enganam-se gravemente sobre isso. Em nossa língua, chamamos de humildade aquilo que S. Paulo chama de tapeinophrosyne, em grego. Significa uma inclinação ou uma sensibilidade para as coisas insignificantes e desprezadas. Agora, há muitas pessoas que carregam água para o poço. São pessoas que aparecem em roupas, posições, gestos e lugares e palavras humildes, estão convencidas disso e se ocupam com isso. No entanto, querem com isso que os grandes, ricos, sábios e santos e inclusive Deus as considerem gente que prefere ocupar-se com coisas humildes. Se soubessem que ninguém liga para essas coisas, elas desistiriam disso. Essa é uma humildade superficial(...).
Os verdadeiros humildes não pensam no resultado da humildade. Eles olham as coisas insignificantes de coração puro, gostam de lidar com elas e nunca ficam sabendo que são humildes. Aqui a água jorra do poço e gestos, palavras, lugares, pessoas e roupas humildes são uma consequência natural (...).
Como já disse, a verdadeira humildade nunca sabe que é humilde. Se soubesse, se tornaria arrogante ao observar essa bela virtude. Ao contrário, ela se agarra às coisas insignificantes de coração e mente, com todos os sentidos. Seus pensamentos estão sempre ocupados por essas pequenas coisas. Com os olhos voltados para elas, a humildade não pode ver, nem reconhecer a si própria. Muito menos ainda pode dar-se conta das coisas elevadas. Por isso, a honra e a glorificação vão surpreendê-la ocupada com pensamentos alheios a ambas. Lucas 1:29 diz que Maria estranhou a saudação do anjo e ficou matutando que saudação seria aquela (...).
Por outro lado, a falsa humildade nunca se dá conta de que é arrogante (se soubesse, logo se tornaria humilde, ao observar esse defeito horrível) (...).
Não adianta ensinar a humildade, colocando coisas insignificantes e desprezadas diante dos olhos. Contrariamente, ninguém se torna arrogante porque coisas elevadas são colocadas diante de seus olhos. Não são as imagens que devem ser afastadas, mas o olhar (...).
A humildade é algo tão delicado e precioso, que ela não suporta olhar para si mesma. Contemplar está reservado apenas ao olhar divino, conforme diz o Salmo 113:6: "Ele contempla os humildes no céu e na terra" (...).
Em resumo: esse versículo nos ensina a reconhecer Deus corretamente, ao revelar que ele olha para os humildes e para os desprezados (...).
Maria havia louvado Deus, seu Salvador, com espírito desinteressado e puro, sem atribuir-se qualquer de seus bens, e cantou devidamente a sua bondade. Agora a mãe de Deus passa a louvar também suas obras e bens na ordem certa. Como já foi dito, a pessoa não se deve prender aos bens de Deus, nem apropriar-se deles. Através deles, deve subir até Deus, agarrar-se somente a ele e valorizar sua boa vontade. Depois também deve louvá-lo em suas obras, nas quais revelou bondade para amar, confiar e louvar (...).
No entanto, Maria começa por si própria e canta os feitos de Deus com ela. Ela nos ensina duas lições. A primeira: Cada qual deve preocupar-se com as coisas que Deus faz com ele, mais do que com todas as obras que Deus realiza com outro. A bem-aventurança de ninguém consistirá no que Deus realiza em outros, mas no que realiza em você (...). Cada um deve reparar cuidadosamente em si mesmo e em Deus, como se ele e Deus estivessem sozinhos no céu e na terra e como se Deus estivesse tratando unicamente com ele. Depois também poderá observar as obras dos outros.
A segunda lição que Maria nos ensina é esta: cada um deve ser o primeiro no louvor de Deus e deve divulgar as obras de Deus realizadas nele. Depois terá que louvar também a obra de Deus realizada em outros (...).
Hoje há muitos que não louvam a bondade de Deus porque constatam que não têm tanto quanto S. Pedro ou qualquer outro santo, ou este ou aquele na terra. Alegam que também louvariam e amariam Deus se tivessem tanto. Desprezam as bênçãos que Deus derramou sobre eles e não as reconhecem, tais como corpo, vida, razão, bens, honra, alegria, além de serviços que lhes presta o sol com todas as criaturas. Mesmo que eles possuíssem todos os bens de Maria, ainda assim não reconheceriam Deus neles, nem o louvariam (...).
Um passarinho canta e se alegra com o que é capaz e não reclama por não saber falar. Um cachorro salta alegre e está satisfeito, embora não tenha motivo. Todos os animais ficam satisfeitos com aquilo que têm e são e servem a Deus com amor e louvor. Somente o olho mau e egoísta do ser humano não se satisfaz nunca (...).
Maria reconhece o "contemplar" como a primeira obra de Deus realizada nela. Esta também é a obra maior, na qual se baseiam todas as demais e da qual procedem. Quando Deus volta seu rosto para alguém, aí reinam a pura graça e a bem-aventurança (...). A própria Maria considera isso muito importante e o expressa: "Por causa desse contemplar, gerações me considerarão bem-aventurada"(Lucas 1:48).
Preste atenção! Maria não diz que vão falar muito bem dela, elogiar sua virtude, exaltar sua virgindade ou humildade ou, talvez, cantar um hino para engrandecer seu feito. Pelo contrário, falarão somente do fato de Deus ter posto os olhos nela. Será dito que ela é bem-aventurada por causa disso (...). Por isso, Maria aponta para o contemplar e diz: "Eis que agora em diante me dirão bem-aventurada, etc". Isto é, a partir do momento em que Deus contemplou minha nulidade, serei declarada bem-aventurada. Com isso não se louva Maria, mas a graça de Deus para com ela. Ela inclusive é desprezada e se torna desprezível ao dizer que Deus contemplou sua nulidade (...). Ela atribui tudo inteiramente ao fato de Deus ter observado sua nulidade (...). Ninguém pense que desagrada a Maria ouvir que ela é considerada indigna de tão grande graça. Sem dúvida, ela não mentiu quando ela mesma confessou essa indignidade e nulidade. De modo algum, Deus contemplou essa nulidade por causa de merecimento, mas exclusivamente por graça (...).
Maria não gosta de ouvir os charlatães inúteis, que pregam e escrevem muito a respeito de seu mérito (...). Todos aqueles que insistentemente atribuem a Maria tanto louvor e honra e lhe impõem tudo isso não estão longe de transformá-la em ídolo, como se ela desejasse ser honrada e se devesse esperar todo o bem dela. Maria rejeita tudo isso e quer que Deus seja honrado nela e que, por intermédio dela, todos sejam levados a confiar plenamente na graça de Deus.
Portanto, quem quiser honrar Maria devidamente não deve observá-la de forma isolada. Deve vê-la diante de Deus e muito abaixo de Deus, despindo-a de tudo e, como ela diz, contemplando sua nulidade. Então, sim, você ficará maravilhado com a superabundante graça de Deus que olha, recebe e abençoa ricamente e com tão grande misericórdia uma pessoa tão insignificante e nula (...). Na sua opinião, haveria algo mais bonito para ela do que se você, por meio dela, encontrasse Deus e aprendesse a confiar nele (...)?
Ó bem-aventurada virgem e mãe de Deus, que grande consolo Deus nos revelou em você por ter contemplado tão misericordiosamente sua indignidade e nulidade. Isso prova que, de agora em diante, Deus não desprezará a nós, pobres seres humanos nulos, mas nos olhará com misericórdia (...).
Mas agora há pessoas que buscam auxílio e consolo nela como num deus. Receio que, em nossos dias, exista idolatria demais no mundo (...).
Traduzi a versão latina "todas as gerações" por "filhos dos filhos". Essa expressão é demasiadamente confusa. Muitos fizeram um grande esforço para entender até que ponto seria verdade que todas as gerações chamariam Maria de bem-aventurada. Afinal, judeus, pagãos e muitos maus cristãos a insultam ou, pelo menos, se negam a chamá-la de bem-aventurada. Isso porque entendem "geração" como a totalidade dos seres humanos. Na verdade, significa o seguinte: a sucessão dos nascimentos por nascimento natural, onde um nasce depois do outro (...). Portanto, a virgem Maria quer dizer o seguinte: seu louvor há de durar de geração em geração e não haverá época em que ela não seja louvada (...).
Também o termo grego makariousin significa mais do que "dizer bem-aventurada". Significa "bem-aventurar" ou "tornar bem-aventurada". Mas isso não se deve limitar a palavras, ajoelhações, inclinação da cabeça, tirar o chapéu, fazer imagens, construir igrejas - os maus também fazem isso. Para tanto se deve usar todas as forças e se precisa de uma sinceridade total. Isso acontece quando, por sua nulidade e pelo misericordioso olhar de Deus, o coração é tomado de alegria e prazer em Deus, por meio dela, e quando se diz e pensa de todo o coração: Ó bem-aventurada virgem Maria! Este "bem-aventurar" é a maneira certa de honrá-la, como dissemos". (Dr. Martinho Lutero). Os grifos são meus.
Vídeo extraído do Youtube.

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