sábado, 23 de novembro de 2019

O CONCEITO DE ANGÚSTIA (KIERKEGAARD): Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

"Por isso, quem se educa pela angústia em relação à culpa, só há de encontrar repouso na reconciliação".

Kierkegaard é um dos expoentes do pensamento luterano. Talvez ninguém tenha conseguido aprofundar tanto o sentimento luterano quanto ele. Esta sua obra, que irei comentar, é extremamente significativa: O Conceito de Angústia. Todos temos muito a aprender com ela.
O objetivo é abordar a origem psicológica do pecado, visto que a lógica não explica a irrupção do pecado, nem a dogmática, nem a ética; essas ciências analisam o pecado enquanto realidade efetiva. Para Kierkegaard, somente uma análise psicológica pode responder ao que acontece no homem antes de o pecado irromper.

O HOMEM COMO SÍNTESE
O homem é uma síntese de corpo e mente (alma), duas coisas muito contraditórias: o temporal e o eterno, o finito e o infinito. Quem opera essa síntese é o espírito.
Para Kierkegaard, o espírito é a consciência ou a individualidade. Sua nobre missão é conciliar o contraditório em nós, rumo à unidade de ser. Obviamente, não sem algum nível de perturbação ou inquietude.
O espírito avança conforme a individualidade avança. Regride conforme a individualidade regride. Daí a crítica que ele dirige à grande massa de pessoas que vivem como verdadeiros animais, tal é a supressão de espírito nelas.
Aquela pessoa que vive como um animal, só em função do prazer e dos instintos, é uma pessoa pouco ou nada dotada de espírito. Aquela pessoa que vai além do finito e avança em direção ao infinito é uma pessoa muito dotada de espírito.
Este é o ponto de partida.

"O homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo. Porém, uma síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo num terceiro. Este terceiro é o espírito. Na inocência, o homem não é meramente um animal. De resto, se o fosse a qualquer momento de sua vida, jamais chegaria a ser homem. O espírito está, pois, presente, mas como espírito imediato, como sonhando. Enquanto se acha então presente é, de certa maneira, um poder hostil, pois perturba continuamente a relação entre alma e corpo, que decerto subsiste sem, porém, subsistir, já que só receberá subsistência graças ao espírito. De outra parte, o espírito é um poder amistoso, que quer precisamente constituir a relação. Qual é, pois, a relação do homem consigo mesmo e com sua condição? Ele se relaciona como angústia".

Existe o espírito absoluto, imediato, que todo ser humano possui, mesmo um bebê recém-nascido. Existe o espírito posto, aquele que se manifesta através da consciência. O espírito manifesto é o despertar da consciência, é quando acordamos. É quando a luz da consciência é acesa! Isso acontece com todo ser humano normal, já logo ao início da infância. De repente existimos. E depois passamos a existir dentro de uma família, dentro da sociedade, dentro da humanidade. É assim que o indivíduo surge.
Para Kierkegaard, cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. Tudo o que diz respeito ao homem respeita ao indivíduo. Tudo o que acontece no indivíduo resvala no gênero humano. O percurso de cada indivíduo ocorre dentro do percurso da humanidade. A história do indivíduo se desenrola dentro da história da humanidade.

"A razão mais profunda de tal impossibilidade está naquilo que é o essencial da existência humana; que o homem é individuum e, como tal, ao mesmo tempo ele mesmo e todo o gênero humano, de maneira que a humanidade participa toda inteira do indivíduo, e o indivíduo participa de todo o gênero humano".

Dentro desse princípio ele analisa a figura de Adão. 
Adão é parte do gênero humano. Ele principia uma história que é a de todos nós e precisa ser essencialmente um de nós. Com isso, Kierkegaard critica a ideia de "justiça original", que dá a Adão um status especial, uma condição que homem algum nunca experimentou, que consiste no conhecimento perfeito de Deus e na capacidade plena de escolher entre o bem e o mal, como categorias. Adão era essencialmente um de nós!
Muita de nossa dificuldade em compreender Adão, a gênese do pecado e sua propagação pelo gênero humano se deve ao fato de colocarmos Adão fora do gênero humano, dotado de capacidades supra-humanas.

"Qualquer tentativa, portanto, de explicar o significado de Adão para o gênero humano como caput generis humani naturale, seminale, foederale, para lembrarmos expressões dogmáticas, confunde tudo. Ele não é essencialmente diferente do gênero humano; pois nesse caso o gênero humano nem existiria; ele não é o gênero humano, pois aí nem haveria o gênero humano; ele é ele mesmo e o gênero humano. Por isso, aquilo que explica Adão, explica o gênero humano, e vice-versa".

Adão é tão-somente o primeiro ente do gênero humano, em estado de inocência, isento da corrupção. No mais, é igual a nós.

O ESPÍRITO DE ADÃO

Kierkegaard, como bom luterano, nega enfaticamente o livre-arbítrio. Adão não conhece o mal. Também não conhece o bem, que só pode ser dialeticamente entendido a partir do mal. Ninguém conhece o bem como bem sem a antítese do mal. Isso é impossível!
Que Deus é o Sumo Bem, Adão só terá ciência disso quando se deparar com o mal. Enquanto o mal não se manifesta, Deus é somente Deus à consciência humana. 


Kierkegaard não entra neste mérito. Mas a não ser que concedamos poderes supra-humanos a Adão, este só chegará ao conhecimento mais profundo de Deus após a queda, que lhe permitirá conhecer o mal e, dialeticamente, o bem. Antes da queda bem e mal são, para Adão, um nada.
O espírito de Adão não tem diante de si o bem, nem o mal, nem o finito, nem o infinito, nem o absoluto, nem o relativo. Ele está posto diante do nada e esta é sua angústia. Angústia não no sentido de sofrimento, mas no sentido de expectativa, força contida, água  represada. A doce angústia da ignorância, que determina a busca.

"A inocência é ignorância. Na inocência, o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem. (...) Neste estado há paz e repouso, mas ao mesmo tempo há algo de diferente que não é discórdia e luta; pois não há nada contra o que lutar. Mas o que há, então? Nada. Mas nada, que efeito tem? Faz nascer angústia. Este é o segredo profundo da inocência, que ela ao mesmo tempo é angústia. Sonhando, o espírito projeta sua própria realidade efetiva, mas esta realidade nada é, mas este nada a inocência vê continuamente fora dela".

"A angústia que está posta na inocência, primeiro não é uma culpa e, segundo, não é um fardo pesado, um sofrimento que não se possa harmonizar com a felicidade da inocência. Observando-se as crianças, encontra-se nelas a angústia de um modo mais determinado, como uma busca do aventuroso, do monstruoso, do enigmático".



Kierkegaard sempre vê a angústia como o estado de inquietação do espírito frente ao nada. Ela sempre antecede a pergunta: "E agora?"
Quando Deus ordena a Adão não comer do fruto do conhecimento e acrescenta a ameaça de morte, então o espírito de Adão não está mais diante do nada, mas de uma possibilidade. Ou melhor, o nada se transmuta em possibilidade.
A possibilidade é um nada, porque carece de conteúdo. É infinita, porque nela tudo cabe. Tudo é possível! O possível é retratado por Kierkegaard como um abismo.

"Angústia pode-se comparar com vertigem. Aquele, cujos olhos se debruçam a mirar uma profundeza escancarada, sente tontura. Mas qual é a razão? Está tanto no olho quanto no abismo. Não tivesse ele encarado a fundura!... Deste modo, a angústia é a vertigem da liberdade, que surge quando o espírito quer estabelecer a síntese, e a liberdade olha para baixo, para sua própria possibilidade, e então agarra a finitude para nela firmar-se. Nesta vertigem, a liberdade desfalece".


Agora diante do vazio da possibilidade, a angústia do espírito se intensifica ao máximo. Não está diante da possibilidade do bem e do mal, ou da obediência e da desobediência, ou de duas categorias bem definidas. A possibilidade é algo infinito e não pode ser mensurada, não pode ser expressa, não pode ser categorizada. A relação com a possibilidade não está dentro da lógica, mas é pura angústia.
A relação de Adão com a possibilidade infinita é antipática e simpática. "A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipática". Todos nós sabemos o que é isso: a atração do proibido sobre nós. Odiamos, não queremos, mas amamos e não fugimos. Um sentimento paradoxal em relação ao objeto proibido que nos faz andar em torno dele, flertando-o. Parafraseando Jesus, poderíamos arrancar os olhos, mas preferimos mantê-los e dar umas espiadinhas. E quanto maior a angústia, mais frequentes e prolongadas as espiadas. Até que caímos no laço.

"Falar de bem  e mal como objetos da liberdade, significa conceber de modo finito tanto a liberdade quanto os conceitos de bem e de mal. A liberdade é infinita e aparece do nada"

E curvado sob a angústia, Adão peca.
O pecado irrompe como um salto qualitativo. Da qualidade de não pecador à qualidade de pecador, do estado de inocência ao estado de culpabilidade. O pecado emerge como o súbito, como o salto. Adão se lança ao abismo!

"O primeiro pecado é a determinação qualitativa, o primeiro pecado é o pecado".

"O pecado entra, portanto, como o súbito, isto é, pelo salto; mas este salto põe ao mesmo tempo a qualidade; mas quando a qualidade é posta, no mesmo instante o salto está voltado para dentro da qualidade e é pressuposto pela qualidade, e a qualidade pelo salto"


O pecado não tem um gérmen. Ele surge do nada! Ele subitamente aparece, mas eticamente justificado pela angústia.

AS CONSEQUÊNCIAS DO PECADO

Ao pecado se segue a corrupção. 
Kierkegaard devolve a questão à dogmática. Não está no escopo de sua análise avaliar a corrupção.
A visão da Igreja sobre a corrupção é que ela é privação do bem. O homem continua essencialmente o mesmo, imagem de Deus, porém privado do bem e profundamente enfraquecido. O homem não sabe mais quem ele é!
O que Kierkegaard ressalta é que a angústia leva ao pecado e o pecado ocasiona a angústia. Então uma nova angústia surge após o pecado. 
Sobre esta única consequência do pecado é que Kierkegaard prosseguirá em sua análise.  

O DILEMA DA SEXUALIDADE

A sensualidade, entendida como aquilo que é agradável aos sentidos, existe em toda a criação. Ela está na beleza, na harmonia, nas formas, na melodia, no sabor e nos odores.
O espírito inocente, em seu estado de ignorância, não é capaz de apreendê-la como tal e, por isso, não a recusa. Quando, porém, o espírito é posto (e isso aconteceu por causa do pecado), então ele percebe o sensual e o recusa.
A sensualidade é alheia ao espírito. Um espírito bem determinado recusa o prazer temporal como algo animalesco e indigno do homem. Para o espírito, só o eterno é digno do homem.
Ao recusar o sensual, o espírito estabelece dialeticamente um novo princípio: a sensualidade. Mas a sensualidade como pecado! Daí o pudor que sobrevêm a Adão e Eva, levando-os a cobrirem as partes pudendas e a esconderem-se de Deus.
O reconhecimento do sensual como algo que deve ser expulso gera angústia e determina tensão entre os gêneros. O espírito posto vê no corpo a animalesca sensualidade masculina ou feminina. E pior: detecta uma pulsão do masculino para o feminino e vice-versa, que é a libido. E quanto maior a angústia, maior a libido!
O ato sexual que, no estado de inocência, deveria ser um ato puramente racional, torna-se agora um instinto procriativo quase impossível de refrear.
É, então, que o pecado transforma os gêneros em instinto procriativo. E é desse instinto procriativo que a história começa, pois dele vêm todos nós. 

"A sensualidade não é então a pecaminosidade, mas no momento em que o pecado foi posto e no momento em que é posto, ele transforma a sensualidade em pecaminosidade (...). Ao comer do fruto do conhecimento, introduziu-se a diferença entre bem e mal, mas também a diversidade sexual enquanto instinto (...). O sexual não é pecaminosidade, mas - por um momento falarei de modo acomodatício e tolo -, se Adão não tivesse pecado, então o sexual jamais teria existido como instinto. Um espírito perfeito não se deixa pensar como definido sexualmente. Isso está em harmonia com a doutrina da Igreja a respeito da condição dos ressuscitados, em harmonia com as representações da Igreja sobre os anjos, em harmonia com as definições dogmáticas a propósito da pessoa de Cristo".
 

"A pecaminosidade não é então a sensualidade, de jeito nenhum; mas, sem o pecado, não há sexualidade e, sem sexualidade, nenhuma história".

O PECADO HEREDITÁRIO
O mesmo processo espiritual descrito em Adão ocorre em cada indivíduo. Todos nós nos angustiamos diante da possibilidade infinita, todos nós demos o salto qualitativo, todos nós introduzimos o pecado e a culpa no mundo. 
Kierkegaard se recusa a enxergar o pecado hereditário como uma doença contagiosa que é transmitida dos pais aos filhos. Para ele cada indivíduo cai individualmente. Cada indivíduo tem responsabilidade completa e infinita sobre sua própria queda.

"Não há porque se incomodar: a pecaminosidade não é uma epidemia que se propague como a varíola no gado, e 'toda boca seja fechada'. É bem verdade que uma pessoa pode dizer, com profunda seriedade, que nasceu na miséria e que sua mãe a concebeu em pecado; mas, a rigor, só poderá afligir-se com razão quando ela mesma tiver trazido o pecado ao mundo e colocado tudo sobre seus ombros, pois é uma contradição entristecer-se esteticamente pela pecaminosidade"
Há, porém, um "algo a mais" que nos diferencia de Adão, em seu primeiro pecado: nossa individualidade surge dentro de uma história de pecaminosidade, o pecado nos antecede. Ninguém antes de nós resistiu ao salto qualitativo. Fomos concebidos em meio à loucura da libido. Desde cedo fomos educados como meninos e meninas, roupas foram postas sobre nossas genitálias e crescemos em uma sociedade amplamente erotizada. Fomos individualmente constituídos sob um regime da fraqueza, que é a corrupção humana, a qual Kierkegaard não nega. Até porque é óbvia e salta aos olhos!
Cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. Cada indivíduo está fadado a carregar em si os pecados de todo o gênero humano como se fossem seus, e de fato são!
Todo esse contexto torna a angústia perante a possibilidade algo muito mais intenso e irresistível. É um contexto por demais cruel e ninguém escapa a ele. Entretanto, não se deve excluir o indivíduo de uma participação positiva na culpa. Ele próprio é a causa de seu pecado. Não deve buscar em Adão o responsável, nem em qualquer outro, senão em si próprio! Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa!
A ideia de queda individual pode ser confundida com a heresia pelagiana. É a primeira coisa que nos vêm à mente, enquanto estudamos a tese. Mas Kierkegaard deixa claro que o pelagianismo erra por colocar cada indivíduo fora do gênero humano, descontextualizado, como se fosse uma ilha.
O pecado avança, então, quantitativamente ao longo da história humana: mais um, mais um, mais um, como um sorvedouro. Entretanto, o salto qualitativo sempre acontece ao nível do indivíduo.

"O gênero humano tem sua história; nesta, a pecaminosidade tem sua determinação quantitativa contínua, mas invariavelmente a inocência só se perde pelo salto qualitativo do indivíduo"

O DILEMA DO PECADO E A REDENÇÃO

A angústia é sempre a tensão do espírito perante a possibilidade infinita. Ela sempre envolve o espírito perante o nada infinito, o incomensurável vazio. 
Conforme a história do gênero humano avança e, com ela, o pecado, essa angústia vai assumindo formas diferentes. E essas formas de angústia históricas ocorrem também ao nível do indivíduo, porque cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano. O nada da possibilidade transmuta-se ao longo do tempo, embora seja o mesmo nada.
Para os pagãos, o vazio da possibilidade é o destino. Na ausência de uma Providência divina, o homem está entregue ao nada do destino e precisa viver intensamente cada instante, porque o destino inexorável se aproxima. Ninguém tem o poder de alterá-lo. Na melhor das hipóteses, é possível conhecê-lo. Daí os oráculos.
Para os judeus, o vazio da possibilidade é a "possibilidade da culpa". O judeu já tem a Providência Divina e não está sujeito ao destino. E agora avista a possibilidade da culpa e angustia-se. Ele não teme a culpa em si, mas o sentir-se culpado. Daí os sacrifícios e as diversas interpretações da Torá, que objetivam abolir o sentimento de culpa, embora não a culpa em si.
Para o cristão, o vazio da possibilidade é a culpa consumada. Ele teme SER culpado. Já não é uma questão de sentir-se culpado, mas de SER essencialmente e infinitamente culpado. Culpado de tudo!
A culpa se torna o distintivo do cristão. Os mais santos se destacam não pela perfeição das obras, mas pela intensidade da culpa vivenciada. Quanto mais angústia perante a culpa, mais cristão se é.
Uma vez consumada a culpa, o arrependimento vem, recriando uma liberdade. O cristão se perde na culpa e é reencontrado no arrependimento. 
Neste momento é impossível não se lembrar de Lutero!

"Se então a liberdade teme a culpa, o que ela teme não é reconhecer-se culpada caso o seja, mas o que ela teme é tornar-se culpada, e é por isso que a liberdade reaparece, como arrependimento, tão logo a culpa é posta".


Quando o homem se lança à possibilidade infinita da culpa e entrega-se à angústia excruciante, dessa angústia irrompe a fé. Uma vez entregue à culpa, o homem é exercitado pela angústia a não mais esperar por nenhum alívio temporal.
A possibilidade da culpa é infinita e compreende todos os pecados possíveis, do menor ao maior. Todo indivíduo é possivelmente um assassino, um adúltero, um depravado, um ladrão, um blasfemo e um apóstata. Não há monstruosidade que a possibilidade não comporte. Quem se lança à possibilidade da culpa incorpora tudo isso em si e padece tudo o que tem de padecer.
Esse padecimento é de onde vem a verdadeira solidariedade. Pois que o cristão autêntico toma como pecado seu o pecado do próximo, toma como infortúnio seu o do próximo. A calamidade é a realidade do outro e a possibilidade minha.
A culpa leva o princípio de que cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano até às últimas consequências. Eu sou o ladrão, o assassino, o lascivo, o cruel. O que o outro é na realidade, eu sou na possibilidade. E a possibilidade é sempre muito pior que a realidade. 
Então eu sou o que o outro é e muito pior, porque ninguém está tão fundo que não possa afundar mais! A calamidade do outro é finita, a minha é infinita! Se ele adulterou uma vez, eu POSSO adulterar mil vezes. Se ele roubou uma vez, eu POSSO roubar mil vezes. E assim por diante.


"Conta-se de um ermitão hindu que vivera por dois anos só de orvalho, que ele certo dia foi à cidade, provou vinho e caiu no vício da bebida. Pode-se entender esta história, como qualquer outra semelhante, de diferentes maneiras. Pode-se fazê-lo à maneira cômica, pode-se fazê-lo à maneira trágica, mas a individualidade que é formada pela possibilidade terá muito que fazer com uma única história desse gênero. No mesmo instante identifica-se absolutamente com esse infeliz, não conhece nenhuma escapatória da finitude que lhe permita evadir-se. Agora, a angústia da possibilidade o tem como presa, até que possa entregá-lo, salvo, aos braços da fé; noutro lugar ele não encontra repouso, pois qualquer outro ponto de repouso não passa de conversa fiada, ainda que seja prudência aos olhos dos homens. Eis por que a possibilidade é tão absolutamente formadora".



Uma vez o espírito se enxergue o pecador máximo, então não há para ele redenção possível neste mundo. Não há destino, não há sacrifício, não há erudição, não há boas obras, não há indulgências, não há nada de temporal ou finito que lhe sirva de lenitivo.
E dessa total nulidade é que surge a fé, que agarra a possibilidade infinita da redenção.
O herói da fé é aquele que mergulha no nada da culpa, angustia-se ao extremo, assume essa angústia essencialmente e se deixa moldar por ela. Enquanto é moldado pela angústia, não segura em nada que seja finito, mas na fé. É a fé que não o deixa perecer.

"Da finitude pode-se aprender muita coisa, mas não a se angustiar, a não ser num sentido muito medíocre e corrompido. Por outro lado, aquele que aprendeu a angustiar-se de verdade pode mover-se como na dança logo que as angústias da finitude começam a ressoar e quando o aprendiz da finitude perde a razão e a coragem".


Autoria: Carlos Alberto Leão
Imagens extraídas da internet
Trechos retirados de "O Conceito de Angústia", Editora Vozes.






sábado, 5 de outubro de 2019

IGREJA CATÓLICA OU IGREJAS CATÓLICAS? - PARTE 3

"Faz parte também desse resultado o 'Corpo de Cristo, que é a Igreja': visível, definida e articulada, assim como era o seu corpo físico. Vista de fora, ela se assemelha a uma associação humana qualquer, com suas condições de admissão e demais estatutos. Em uma perspectiva interior, ela é a Sua presença real na Eucaristia, com todo o organismo impregnado pelo Seu Espírito".

"Antes de tudo, é necessário estabelecer um princípio: A Igreja, infelizmente, é uma só, possui uma realidade histórica tanto quanto o seu Fundador, e não há nenhuma possibilidade de apelação a uma Igreja ideal e melhor, em detrimento de uma Igreja empírica, ineficiente e escandalosa. Infelizmente, a Igreja ideal não é real senão na empírica. E o uso traz consigo o 'ab-uso', que, ainda que não possa ser suprimido, deve ser combatido, para que possa voltar a ser digno de uso". (Hans Urs von Balthasar, A Verdade é Sinfônica).

Autoria: Carlos Alberto Leão.
Imagem extraída da internet.

sábado, 23 de março de 2019

IGREJA CATÓLICA OU IGREJAS CATÓLICAS (PARTE 2)

Dando prosseguimento ao texto anterior, iremos apresentar agora aqueles elementos que definem a Igreja Católica.




1 - Fé na Trindade: 
A Igreja Católica professa a existência de uma só essência divina em três hipóstases: Pai, Filho e Espírito Santo. Os três são Deus, porém não três deuses idênticos. O que uma das hipóstases é substancialmente, todas são, porém sem multiplicidade. É de fato, um grande mistério.

2 - Fé na Encarnação do Filho: 
A Igreja Católica crê que o Filho tornou-se homem, cujo nome é Jesus. Ele é verdadeiro Deus, gerado do Pai e consubstancial a ele. Também é verdadeiro homem, gerado de Maria e consubstancial a ela. Não há mistura das naturezas divina e humana. Jesus é Deus e homem em uma só pessoa indivisa: corpo, alma e Divindade. Destarte, Maria é mãe de Deus, pois na pessoa de Jesus não há divisão alguma.

3 - Fé no pecado original: 
A Igreja Católica ensina que o pecado do primeiro homem, Adão, acarretou uma corrupção profunda de sua natureza, produzida pela privação da Divindade. Afastando-se o homem da fonte, definhou e morreu. Afastando-se da luz, foi tomado por densas trevas. Tal corrupção foi legada a todos os homens, indistintamente, já sendo real à concepção. 
Uma vez privado da Divindade e corrompido por sua privação, o homem segue pecando e não consegue mais aproximar-se de Deus por meios próprios. 
A Igreja Católica ensina que os pecados são uma grave ofensa ao Criador, pois destroem aquilo que ele fez com muito amor, sobretudo a sua Imagem, que é o homem. Também ensina que o pecado atrai sobre nós o domínio do diabo, que subjuga o homem através de sua fraqueza, incitando-o ao pecado e, como consequência, enfraquecendo-o cada vez mais. Quando o diabo é chamado de "deus deste século", por "século" a Igreja quer significar a humanidade corrompida pelo pecado, que encontra-se sob o cativeiro satânico.
Ressalte-se que a Igreja não aceita a ideia de corrupção da substância humana. Esta permanece tão santa como no dia de sua criação. A corrupção é, antes, uma privação do Bem. A substância está sob trevas, mas não é treva. Em si mesma, permanece o que é: Imagem de Deus.
A ideia de uma existência positiva do mal ou de uma natureza humana infectada pelo pecado não faz parte do pensamento católico. Para a Igreja Católica, o mal é sempre um não-ser ou privação do ser. A visão positiva do mal está associada à heresia gnóstico-maniqueísta.
Até mesmo a ideia de "ofensa", com suas implicações legais, deve ser compreendida no sentido negativo. Ao ofender, o homem não produz, mas destrói. E as implicações legais advêm dessa destruição.

4 - Fé na redenção: 
A Igreja Católica prega que o Verdadeiro Filho de Deus tornou-se verdadeiro homem, gerado de Maria, para redimir o homem. É Jesus Cristo, o segundo Adão, aquele que veio para restabelecer a comunhão entre homem e Deus. Ele é de fato um mediador entre Deus e o homem, porque possui ambas as naturezas, sem qualquer mistura, em perfeita harmonia. Em Jesus Cristo, Divindade e humanidade se unem eternamente. 
Jesus Cristo é chamado segundo Adão porque representa todos os homens, em sua obediência e satisfação. Obedeceu à Lei eterna de Deus, em seu sentido mais profundo. Graças a ele é que se pode dizer que um homem cumpriu a Lei! Satisfez pela culpa na cruz, sendo o único sacrifício aceitável por Deus para expiação dos pecados. 
Essa satisfação é entendida pela Igreja Católica de várias formas, que se complementam. Num sentido metafísico, a crucificação de Jesus significa a morte da carne ou a morte da morte. Num sentido legal, Jesus foi morto injustamente pela Lei, tornando-a transgressora de si mesma e, por conseguinte, esta perdeu o direito de reivindicar. Se a Lei transgredida é a base do domínio satânico, a Lei transgressora é o direito que Deus obtém para desbancá-lo. Num sentido expiatório, a condenação de Jesus é entendida como a justa punição de todos os pecados humanos. Somente uma obra infinita, padecida pelo próprio Deus, poderia satisfazer por tão infinita ofensa e restabelecer a ordem cósmica. 
Entretanto, toda a compreensão humanamente possível da obra de Cristo exige que este seja verdadeiro homem e verdadeiro Deus. É o Deus que vence a morte e a Lei, que reivindica a pena. É o homem que morre, que cumpre a Lei e que é castigado.

5 - Fé na justificação somente pela fé: 
A Igreja Católica confessa categoricamente que a Justiça não é conquistada pelo homem, mas lhe é concedida por Deus, por meio da fé. Quando o homem crê, é-lhe imputada a Justiça de Cristo, por meio da qual ele é plenamente justificado. As boas obras não tornam o homem justo perante Deus, mas decorrem dessa justiça outorgada. A Igreja também confessa que nenhum mérito humano é capaz de gerar a fé. A fé é um dom gratuito de Deus. Ela apreende a  verdadeira Justiça, que também é dom de Deus. Dessa justiça provêm as verdadeiras obras e delas, os méritos. Portanto, os méritos são procedentes da fé, não precedentes. A Igreja também confessa unanimemente que a perseverança na fé é outorgada por Deus. Deus é a fonte de onde a Igreja extrai a sua vida.
A Igreja também ensina que os mandamentos são cumpridos somente pelo amor, mais precisamente pelo amor a Deus, que denominamos Caridade. Essa Caridade não é algo que nossa natureza enfraquecida é capaz de produzir, mas é infusa em nossos corações, por ação do Espírito Santo. 
A Igreja não adota os mandamentos que foram ordenados ao povo judeu, na Antiga Aliança. Ela se atém a dois mandamentos somente: amar a Deus e amar ao próximo. A obediência exterior e servil dos judeus é  um simulacro muito rudimentar da verdadeira obediência, que consiste no amor. Somente o amor infuso nos corações é capaz de levar-nos a praticar o verdadeiro bem. Por conseguinte, a Igreja não obedece por coação ou medo, mas livremente e por amor. Amor este que não provém dela, mas é infuso pelo Espírito Santo.
Como sinal de rompimento com a Lei dos judeus, a Igreja nunca observou o sábado, como se verifica em escritos de Santo Irineu. Também adota o uso de imagens como testemunho de seu rompimento com a Lei. A Igreja Católica não é iconoclasta. Ela é livre quanto ao uso de imagens, mas não quanto à proibição. 

6 - Fé nos sacramentos: 
A Igreja Católica confessa que os sacramentos do Batismo e da Eucaristia não são meros ritos. Eles são os instrumentos usados por Deus para infundir fé, Caridade e Justiça no homem. Portanto, aquilo que Deus concede ao homem com o intuito de salvá-lo, Deus não o faz imediatamente, mas por meio dos sacramentos. Os sacramentos inserem o homem no mistério de Cristo, em sua vida, morte, ressurreição e assunção. Em outras palavras, os sacramentos comunicam ao homem o que é próprio de Cristo.
Para a Igreja Católica, o homem é devolvido à verdadeira vida por meio do Batismo. Depois é aperfeiçoado ou imortalizado pelo sacramento da Eucaristia. O Batismo é o início, a Eucaristia é o meio, a ressurreição é o fim. Portanto, o sacramento final e definitivo é a ressurreição da carne.
Como os sacramentos são necessários à salvação, ninguém deve ser privado deles, nem mesmo as crianças. 

7 - Fé em um só Batismo: 
A unicidade da Igreja depende da unicidade sacramental. Os eventos de nossa Salvação foram únicos: um único nascimento, uma única paixão, uma só morte, uma ressurreição somente e uma única assunção. Portanto, é necessário que os sacramentos que nos ofertam esses eventos únicos também sejam únicos. Segundo Santo Ambrósio: "Ora, uma só vez foi Cristo crucificado, uma só vez 'morreu pelo pecado'; por isso há um só Batismo, e não muitos" (Sobre a Penitência). Consoante a isso, a Igreja Católica tem somente um Batismo e jamais rebatiza alguém.

8 - Fé na Eucaristia: 
A Igreja Católica ensina que Cristo está presente substancialmente nos elementos consagrados: pão e vinho. Não é uma ascensão do intelecto aonde Cristo está, mas um descenso dele até nós. É por isso que a Igreja Católica usa o termo "transformação", para indicar que não subimos ao Céu, mas que Cristo desce e vem ao nosso encontro com seu corpo e sangue. O pão se transforma em corpo, porque o corpo desce e vem a nós. O vinho se transforma em sangue, porque o sangue desce e vem a nós. Então, a ideia central da "transformação" é que o Verbo, assim como um dia desceu do Céu ao ventre virginal de Maria, ele novamente desce ao pão e ao vinho. Os elementos eucarísticos tornam-se como que o ventre onde Jesus é abrigado.
A Igreja Católica também confessa que a Eucaristia é um sacrifício de louvor universal. É o cumprimento da profecia: "Pois, de onde nasce o sol até onde ele se põe, o meu nome é glorificado entre as nações, e em todo lugar se oferece a meu nome um sacrifício puro, porque meu nome é glorificado entre as nações - diz o SENHOR dos exércitos" (Malaquias 2:11). É um testemunho ao mundo que Cristo padeceu e morreu para nos salvar. Este caráter sacrifical é sinalizado pelas palavras de Cristo: "em memória de mim". Ele quer ser louvado e anunciado por meio da Eucaristia.  
A Eucaristia é um sacrifício expiatório no sentido estrito de que ela nos concede o Cristo imolado, conferindo-nos o perdão que emana de seu sacrifício único. Há um movimento bilateral: um sacrifício expiatório, em que o Cristo imolado é dado ao povo, para o perdão dos pecados. Um sacrifício de louvor, em que o povo louva a Deus e o proclama entre as nações. A ênfase da Igreja sobre um movimento ou outro pode variar ao longo do tempo, mas não é católico negá-los.
Ressalte-se que a Igreja não é capaz de colaborar com sua expiação. Ela somente a recebe pela fé e dá graças (passividade). Portanto, a visão de um sacrifício expiatório realizado pela Igreja, mais especificamente pelo sacerdócio, é estranha ao verdadeiro catolicismo. A obra eucarística se limita ao louvor e anúncio, contanto que haja fé

9 - Fé na ressurreição: 
A Igreja Católica ensina que o homem morto haverá de ressurgir com seu mesmo corpo. Os elementos que constituem o corpo humano separam-se através da morte e serão reunidos através da ressurreição. Não haveremos de receber um novo corpo, mas teremos este nosso mesmo corpo refeito, sem a corrupção do pecado.
A ressurreição do corpo é uma das mais eloquentes provas de que a substância humana permanece intacta e que o mal é uma realidade negativa, posto que nada de nosso ser será rejeitado.
A doutrina da ressurreição também não se limita ao corpo humano. A Igreja ensina a ressurreição cósmica, em que todo o universo será purificado da desordem promovida pelo pecado. A Igreja não prega um Céu afastado deste mundo, mas ensina que este mundo será santificado pelo poder divino, tornando-se novos céus e nova terra.
A ressurreição não é somente um evento futuro que se aguarda. A ressurreição do corpo é o clímax de algo que acontece hoje, de forma muito concreta. Quando o homem é unido a Cristo pelo Sacramento do Batismo, recebe a luz que provém dele, a qual dissipa as trevas do pecado. A luz de Cristo penetra a escuridão da ausência de Deus, devolvendo às superfícies sua verdadeira cor. A santificação é a ressurreição hoje, em que a natureza humana assume gradativamente sua verdadeira condição e vocação. Através da luz de Cristo, o homem é capaz de ver o homem.
A Igreja também ensina que as verdadeiras obras consistem em lançar luz sobre condições escurecidas pela privação de Deus. Quando um cristão chega a algum lugar, ali também chega o próprio Deus, trazendo claridade ao que é escuro, restauração ao que está corrompido, novidade ao que é obsoleto. É por isso que Cristo chama a Igreja de "luz do mundo" e "sal da terra".
O que Deus faz hoje veladamente, por meio de cristãos fracos, ele irá fazer às claras, no chamado último dia, em que Jesus Cristo haverá de voltar, para julgar os vivos e os mortos.

10 - Fé no julgamento final: 
A Igreja considera impossível que os homens todos tenham o mesmo destino, seja a morte ou a salvação. Não podemos imaginar um Deus que seja menos justo que nós. Enquanto distinguimos os erros, procurando agravantes e atenuantes, discutindo racionalmente todos os elementos que aumentam ou diminuem a culpa, não podemos esperar menos da natureza de Deus. A razão humana é imagem da razão divina. 
A Igreja Católica confessa que Deus haverá de julgar todos os demônios e homens. A própria misericórdia de Deus tem um respaldo legal, pois se baseia na satisfação de Cristo. A Igreja não crê em uma misericórdia mole e injusta. Também não assume a postura fatalista dos ateus e agnósticos, que ensinam um só destino para todos os homens, independentemente do que fizeram.

Esses elementos compõem a substância do catolicismo. Eles são facilmente identificados nos credos apostólico e niceno. Entretanto, uma explanação é necessária porque os cristãos que não são católicos podem usá-los levianamente contra a Igreja Católica, dando-lhes uma interpretação não ortodoxa.
De Santo Estêvão a nós hoje, com menor ou maior elegância e propriedade, todos os católicos de todos os tempos confessamos todos esses elementos, conforme a explicação dada aqui.
Para concluir, busquemos a analogia de uma árvore de Natal. Imaginemos que a árvore seja o catolicismo e que os enfeites sejam acréscimos doutrinários. Evidentemente, não são os enfeites que definem a árvore de Natal, eles servem apenas para diferenciá-la de outras. Uma árvore pode ter muitos enfeites, outra, poucos. Entretanto, são unas no que dizem respeito à árvore. Assim também acontece com as diferentes igrejas católicas. Elas são unas na essência, no que lhes é elementar. Diferentes quanto aos acréscimos. Algumas igrejas católicas possuem poucos acréscimos. Outras possuem muitos acréscimos. No entanto, são todas elas uma só e santa Igreja Católica. Podemos dizer isto com relação à Igreja de Roma, às igrejas ortodoxas orientais, à Igreja Anglicana e à Igreja Luterana.
Recapitulando, ser Igreja é crer no Evangelho. Ser Igreja Católica é confessar seus elementos doutrinários imutáveis. Se ser Igreja é algo bom, ser católico é estupendo

Autoria: Carlos Leão.
Imagem extraída da internet.




quarta-feira, 6 de março de 2019

IGREJA CATÓLICA OU IGREJAS CATÓLICAS? (PARTE 1)

O que é a Igreja? Para alguns, uma instituição. Para outros, algo inteligível, não palpável. Não é uma pergunta fácil de se responder.
Igreja é, segundo o pensamento luterano, a sociedade dos fiéis. Aqueles que creem em Cristo compõem uma sociedade que se chama Igreja. Nela se encontra o Evangelho. Este é seu grande distintivo.
Entretanto, há uma Igreja que é católica, uma só! A Igreja é uma coisa mais ampla que a Igreja Católica. É perfeitamente possível ser Igreja, sem ser católico. Então é necessário que analisemos o que significa ser Igreja Católica.






O termo "Igreja Católica" aparece pela primeira vez nos escritos de Santo Inácio de Antioquia. Ela designa a concretude daquilo que foi anunciado pelos profetas: a conversão dos gentios, o amor de Deus difundido entre as nações, o sacrifício de louvor prestado em toda parte, não só dentro dos muros de Jerusalém. Tem, portanto, uma conotação inicial de universalidade do culto. Para essa universalidade apontam os quatro cantos da cruz de Cristo, no dizer de São Gregório de Nissa: Cristo reinando no centro do cosmos sobre as potestades, sobre os infernos e sobre a terra inteira, do oriente ao ocidente.
Além da ideia de universalidade do culto, o termo expressa também a unidade de pensamento ou a unidade doutrinária. Quando os hereges começaram a surgir, ameaçando a unidade da Igreja, o termo "católico" passou a designar a doutrina correta ou verdadeira, em oposição ao que era herético ou mentiroso. Assim, a unicidade católica tem a ver com a unicidade da verdade, porquanto não há duas verdades, mas uma só! Sempre haverá quem está certo e quem está errado. A busca da verdade não comporta um talvez, é um esforço pelo absoluto.
Temos aqui um lindo testemunho sobre o que é a Igreja Católica, por São Cipriano de Cartago:

"A Igreja é uma, embora compreenda uma multidão sempre crescente com o aumento de sua fecundidade. Assim, como há uma só luz nos muitos raios de sol, uma árvore em muitos ramos, um só tronco fundamentado em raízes tenazes, muitos rios de uma única fonte, assim também esta multidão guarda a unidade de origem, se bem que pareça ser dividida por causa da abundância inumerável dos que nascem com prodigalidade" (A Unidade da Igreja Católica).

A Igreja Católica teve seu território muito bem delimitado no primeiro milênio da Era Cristã, quando então o Império Romano ainda existia e a Igreja estava ligada ao Estado. O esfacelamento do Império Romano e o Cisma do Oriente atingiram a unidade visível da Igreja Católica. Por conseguinte, tornou-se necessário crer nessa unidade. É o que professamos no Credo Niceno: "Creio em uma Santa Igreja Católica e Apostólica". Um artigo de fé não menor que os demais.
A catolicidade da Igreja é algo tão imutável quanto a verdade. Não posso admitir que somos hoje mais católicos que Santo Estêvão ou São Tiago. O que eles tinham de católicos, nós temos hoje, sem qualquer variação. Sendo assim, não posso conectar a catolicidade às tradições e ritos, que sempre foram variados e que mudam ao longo do tempo. Não posso também conjugá-la ao episcopado, pois este também se dividiu. Hoje temos diferentes episcopados de sucessão apostólica que arrogam a si o genuíno catolicismo. Mas como pode ser católica uma das partes e a outra não, se derivam de um todo católico? Se o todo católico se dividir em duas partes, ambas serão católicas ou nenhuma! É assim que se pode contemplar a problemática envolvendo católicos romanos e ortodoxos. Também não posso conectar o catolicismo ao magistério evolutivo da Igreja, pois este é, obviamente, mutável e não consensual.
Temos, então, de partir do pressuposto que a Igreja Católica é um ser que nasceu pronto e não muda. Em outras palavras, os elementos constitutivos do catolicismo necessariamente existem desde os tempos apostólicos e não podem sofrer variação. Muda-se a forma, não a essência. Compreende-se mais e melhor, sem alteração de conteúdo. 
Definir os elementos constitutivos de um ser não é tarefa simples. Procurar intelectualmente aquilo que constitui o ser é tarefa árdua. Ouso levantar alguns elementos que unem nosso catolicismo ao de Santo Estêvão, sem ter a presunção de, em poucas linhas, esgotar o tema. Longe disso, aliás!
Na próxima postagem, iremos tratar dos elementos distintivos da Igreja Católica.

Autoria: Carlos Alberto Leão
Imagem extraída da internet.




sábado, 23 de fevereiro de 2019

SACRAMENTOS: VALIDADE E EFICÁCIA

Sempre houve na cristandade duas situações: sacramentos válidos e sacramentos eficazes. Um sacramento pode ser válido ou não. Uma vez válido, ele pode ou não ser eficaz. Este artigo pretende discutir sucintamente esta questão tão importante.

Um sacramento consiste em um sinal visível ao qual é acrescida a Palavra de Deus. O Pai une o seu Verbo Eterno, seu bom propósito para o homem, suas estupendas promessas a uma coisa material, que nossos sentidos podem apreender. Enquanto os sentidos captam os sinais e remetem ao intelecto o que significam, o espírito apreende o Verbo eterno de Deus, por meio da fé. Acontece algo na esfera material, envolvendo sentidos e razão. Paralelamente, ocorre outra coisa muito mais sublime no âmbito espiritual, em que espírito e Verbo ocultamente se encontram e unem-se, por meio da fé.
Aos textos e prédicas que chegam pelos olhos e ouvidos ao intelecto, Deus une seu Verbo eterno, alimento da alma. À água que toca o corpo e é rememorada pela mente, Deus une sua graciosa Promessa de salvação. Ao pão e vinho consagrados que ingerimos, Deus une a substância de seu Filho unigênito.
Para que um sacramento seja válido, é necessário, portanto, que ele contenha os sinais instituídos por Deus, sem nenhuma adulteração. Também é fundamental que a Palavra de Deus seja proferida sobre eles. Logo, uma Eucaristia com pão e água, como se verificou entre os encratitas, não é válida, porque não contém os sinais que Deus instituiu. Também não é válida a Eucaristia em que o vinho é substituído por suco de uva. Igualmente, uma vez omitida a Palavra de Deus, ou modificada maliciosamente, também não haverá sacramento.
Uma vez o sacramento seja válido, tanto em seus sinais, quanto no uso da Palavra, resta-nos saber se é ou não eficaz. A eficácia do sacramento depende sempre da fé. O sacramento é uma oferta de Deus que precisa ser aceita, o que se dá mediante a fé. Destarte, o Batismo é eficaz enquanto se crê nele. O mesmo se deve afirmar acerca da Eucaristia. 
Repudiamos veementemente o Ex opere operato (*). A Graça é o conteúdo, a fé é o continente. Deus dá, a fé aceita.
A principal objeção é a suposta ausência de fé nos infantes batizados. Bem, as Escrituras revelam com clareza que não só bebês creem, mas embriões e fetos também. Lemos no Salmo 22: "A ti fui entregue desde o meu nascimento; TU ÉS O MEU DEUS desde o ventre de minha mãe". São João Batista creu ainda no ventre de sua mãe (S. Lucas 1:41). Cristo coloca as crianças como exemplo a ser seguido, certamente não de obras, mas de fé (S. Mateus 18:3-4). De fato, é da fé que procedem as obras que o Senhor elogiou. Logo, os infantes creem, e é com base nessa fé que são batizados. Um dia terão condições de compreender e confessar a fé, mas o mais importante é que creem e são modelos de fé.
Concluindo, a garantia da validade dos sacramentos está na Palavra e nos sinais. Os sacramentos são, por assim dizer, a Graça divina revestida de matéria. Quer se creia, quer não se creia, os sacramentos são válidos quando sobre os sinais corretos se proclama a Palavra de Deus. Entretanto, a eficácia depende da fé. Onde ela não existir, não será possível a apropriação da Graça sacramental.

(*) Doutrina tomista que ensina o sacramento ser eficaz quando executado segundo os preceitos da Igreja, independentemente da fé.

Autoria: Carlos Alberto Leão.